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As mesquitas portuguesas, este mês, ganham uma luz especial, a da lua, que passa a ditar os horários da rotina dos muçulmanos por todo o mundo. As orações substituem os momentos de prazer - a comida, o álcool, o tabaco e o sexo - e abre-se espaço para o serviço aos outros.
Este é o mês que corresponde à primeira revelação de Alá ao profeta Muhammad (Maomé), numa caverna no monte Hira, perto de Meca, na Arábia. As interpretações do Alcorão são diferentes nas várias congregações islâmicas, mas há atividades que se mantêm.
Samir Aboobaker nasceu no centro de Lisboa, mas os seus pais são de Moçambique. “Sou mais português que muitos portugueses”, brinca, enquanto fala sobre a forma como sempre comemorou o Ramadão. A sua relação com a tradição islamita começou na Mesquita Central de Lisboa, onde os pais se casaram.
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Caminhando pelos corredores e salas de oração, Samir Aboobaker, do departamento de comunicação, conta ao SAPO24 que durante o dia os seguidores do islamismo são convidados a jejuar e a refletir sobre os seus comportamentos ao serviço da comunidade e da sua fé em Deus, Alá. “Não devem comer, nem beber, entre o amanhecer e o anoitecer, mas também não andamos a vigiar quem o faz”.
Abrem-se exceções para os idosos, as grávidas ou menstruadas, os doentes e os viajantes. O jovem muçulmano admite que os primeiros dias "são mais dolorosos", mas é “um compromisso que todos temos com o islão”. Além do esforço físico, durante o Ramadão os seguidores do islão dedicam-se mais à sua fé, as mulheres fazem as suas orações no piso de cima, e os homens no de baixo, no grande salão.
Zohora Pirbhai, responsável pelo departamento de educação religiosa da Fundação Aga Khan, é portuguesa e também comemora o Ramadão, na congregação ismaili. A tradição é semelhante: ao pôr do sol, milhares de muçulmanos sentam-se à mesa, comem uma tâmara e bebem um copo de água, o mesmo ritual que “o nosso profeta” fazia, explica Samir Aboobaker.
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Este momento é muitas vezes reservado à família. Para quem está sozinho em Portugal, a Mesquita disponibiliza 2 mil refeições diárias para a quebra do jejum, por volta das 19h, na cantina, além das refeições distribuídas por hospitais, escolas, centros de dia e prisões.
“Muitas vezes há confusão, porque as pessoas estão com fome e ficam mais facilmente irritáveis”, revela Samir Aboobaker, que explica que há voluntários para as refeições, que dividem mulheres e homens em espaços da Mesquita diferentes. “Quem não tem família encontra aqui conforto, esse é também o papel da Mesquita e da religião”.
Além de não comer, não fumam ou têm relações sexuais antes da lua voltar a aparecer no céu. O principal objetivo do exercício de autocontrolo é o de "agradecer pela nova oportunidade dada por Deus, marcada pelo início de um novo mês", explica Zohora Pirbhai. O tempo dedicado à reflexão e às orações permite olhar para o Ramadão "como uma plataforma de oportunidades para alterar comportamentos que se devem manter durante todo o ano".
No final, estes trinta dias de serviço físico, pela privação da comida e outros prazeres, "são um lembrete para adotar comportamentos que mantemos para o resto da vida". Esse comportamento tem sempre em vista "o serviço para os outros", lembra, “um valor universal, comum a qualquer religião”.
O caminho pelos jardins do Centro Ismaili, o cenário paradisíaco e o cheiro hipnotizante a incenso, reforçam os valores de reflexão, comunidade e espiritualidade que Zohora Pirbhai salienta como fundamentais desta comemoração.
A solidariedade no Ramadão como exemplo “para a vida toda”
De facto, essa é a premissa que orienta os devotos do islamismo durante este mês. Na Mesquita Central de Lisboa, a solidariedade e o voluntariado são focos de atenção durante o Ramadão. Além da realização de palestras pedagógicas e eventos culturais, a distribuição de roupa e comida aos fins de semana contribuiu para a concretização destes valores.
O momento mais simbólico é celebrado também ao final do dia, na recitação do Alcorão pelos qaris. Um qarî é alguém que recita o Alcorão de forma correta e com a pronúncia adequada. A entoação tem uma sonoridade particular e harmoniosa, que incentiva a meditação e instrospeção, e, por isso, poucos são os que conseguem decorar todo o livro.
Este momento é realizado todas as noites, e atrai crentes de outros países. Além disso, os últimos dez dias do Ramadão são os mais importantes, especialmente devido à 'noite do poder', que acontece num destes dias e na qual se intensificam os momentos de adoração e tranquilidade espiritual.
No Centro Ismaili, Zohora Pirbhai descreve uma noite de múltiplas orações em congregação e convívio, “especialmente querido pelas crianças, que acham muita piada ficar até mais tarde acordadas”. Nesta noite, “dão-se umas bolachas e um chá nos intervalos das orações. Quem quiser, pode ficar na sala a fazer as suas orações individuais, ou ir para casa e voltar no próximo horário marcado”, refere.
Ao final do dia é também comemorada uma oração suplementar, como forma de aproximação do muçulmano com Deus. As orações são o segundo pilar do islão e fazem-se em cinco momentos diferentes do dia, ou seja, da posição do sol.
O islamismo é também português. “Todas as religiões em Portugal foram importadas, até o cristianismo”
Quando questionado sobre se sentia algum tipo de discriminação no mês do Ramadão, Samir Aboobaker respondeu afirmativamente que não: “Nunca senti nenhum tipo de distinção por ser muçulmano. Sou mais português que muitos portugueses”, brincou.
“Portugal é dos melhores países para emigrar”, referiu, depois das recentes acusações ao primeiro-ministro Luis Montenegro de relacionar as perceções de segurança do país à imigração. “Em certo momento, também o catolicismo foi imigrante em Portugal”, continua.
De acordo com Samir Aboobaker, são mais de milhares os imigrantes que encontram na Mesquita Central de Lisboa um espaço de conforto em Portugal. Além disso, “existem vários caucasianos a vir rezar”, conta, e “há mais mulheres do que homens a converterem-se”. Ao Centro Ismaili, chegam pessoas do Afeganistão, Moçambique e da Índia.
Segundo os Censos de 2021, budistas, hindus, judeus e muçulmanos somam 1,1% da população, com os muçulmanos em maior número neste grupo (0,4%). Além destes, há mais 24.366 pessoas (0,3%) que professam outra religião não cristã, citou a Rádio Renascença. O número de católicos em Portugal diminuiu 8,1%, passando de 88,3%, em 2011, para 80,2%, em 2021.
Para Zohora Pirbhai, o Ramadão pode ser uma oportunidade de educar sobre “a cultura islâmica, servir a população portuguesa, e criar pontes de diálogo entre diferentes religiões”. É com emoção no olhar que Zohora Pirbhai guia o caminho pelo Centro Ismaili e explica o propósito desta festividade, que se comemora “numa comunidade minoritária” e abre portas a todos os “que se sentam ao nosso lado, que podem ser nossos irmãos na religião, ou nossos irmãos na humanidade”.
E, no fundo, a linguagem das fés mantém-se a mesma. A mobilização destas comunidades em movimentos de solidariedade é acima de tudo muito português. "Desde doar sangue, fazer voluntariado, promover mais conhecimento, e dar espaço a novos artistas interessados na divulgação do seu trabalho", são algumas das atividades solidárias feitas ao longo do ano pelo Centro Ismaili de Lisboa, explica Zohora Pirbhai ao SAPO24, responsável pelo departamento de educação religiosa.
Soma-se o trabalho indispensável que é feito na integração de emigrantes e refugiados. Zohora faz também parte do Grupo de Trabalho para o Diálogo Inter-Religioso (GTDIR), que se juntou à Agência para a Integração, Migrações e Asilo para criar um programa de atividades de partilha e reflexão, através também do convívio, para fomentar o conhecimento mútuo e o espírito de diálogo. “Temos pena que estas iniciativas não tenham a mesma visibilidade”, termina.
Em entrevista ao SAPO24, Saeed Ahmed, partilha algumas dicas para quem quer ser mais empático durante este ritual religioso. Entre as mencionadas, refere os momentos de refeição, organização dos horários e ainda o mau hálito por não comer.
*Edição por Gonçalo Lopes
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