No relatório “Ninguém veio ao nosso socorro”: A nova normalidade das políticas de migração da União Europeia no Mediterrâneo central”, hoje divulgado, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) documenta vários casos em que os Estados com costa para o Mediterrâneo colocaram “conscientemente a vida de pessoas em risco”.
Segundo a organização, que baseou o relatório em dados médicos e operacionais recolhidos a bordo do seu navio de resgate ‘Geo Barents’, os Estados costeiros atrasam deliberadamente ou não coordenam eficazmente os resgates e “facilitam a repulsão [dos migrantes] para locais inseguros”.
“Com quase 2.200 crianças, mulheres e homens dados como desaparecidos ou mortos no Mediterrâneo central este ano, 2023 já conquistou o recorde nada invejável de ser o ano mais mortal desta rota de migração desde 2017”, apontou a MSF.
Este ano, “o número de pessoas que chegaram à costa italiana através da rota do Mediterrâneo central mais do que duplicou em comparação com o mesmo período do ano passado, com a Tunísia a ultrapassar a Líbia como principal ponto de partida. Este aumento significativo nas partidas, juntamente com a falta de capacidade de resgate do Estado, resultou em mais barcos em perigo e naufrágios”, acusou a organização médica.
“Desde o início do ano, uma média de oito pessoas por dia perdeu a vida ou desapareceu no Mediterrâneo central”, sublinhou a MSF.
O documento descreve os “níveis extremos de violência” que os sobreviventes relataram às equipas da MSF a bordo do ‘Geo Barents'”.
A organização, que realizou 3.660 consultas a sobreviventes [a bordo do] ‘Geo Barents’ entre janeiro e setembro, adiantou que as pessoas resgatadas “sofriam frequentemente de problemas de saúde diretamente relacionados com as perigosas travessias marítimas, incluindo queimaduras de combustível, envenenamento por combustível, hipotermia e desidratação”.
Além disso, muitos sobreviventes “também enfrentavam problemas médicos relacionados com condições de vida precárias e desumanas durante o seu cativeiro na Líbia, tais como infeções de pele e feridas não tratadas”, relatou, acrescentando que 273 pacientes apresentaram traumas graves causados por violência, incluindo cicatrizes de ferimentos de balas ou de espancamentos.
Muitos dos refugiados resgatados pelo navio da MSF foram ainda alvo de “gravidezes indesejadas causadas por violência sexual ou apresentavam níveis preocupantes de sofrimento psicológico, como ansiedade, pesadelos e ‘flashbacks'”, refere o relatório.
“Durante mais de dois anos, as equipas de MSF a bordo do ‘Geo Barents’ trataram os impactos das políticas migratórias europeias na saúde física e mental”, referiu o responsável pela busca e resgate da MSF, Juan Matias Gil, citado no documento.
“As feridas e as histórias dos pacientes refletem a escala de violência a que foram submetidos no seu país de origem e ao longo da sua jornada, inclusive na Líbia e na Tunísia”, adiantou.
Para este responsável da MSF, a União Europeia e os seus Estados-membros mostraram-se “indiferentes ao imenso sofrimento que se desenrola à sua porta”, tendo mesmo investido “ainda mais em políticas, leis e práticas de migração prejudiciais que demonstram pouca ou nenhuma consideração pelo valor da vida humana”.
Juan Matias Gil lamentou que, “embora a equipa da MSF no mar Mediterrâneo continue a testemunhar retornos forçados à Líbia, [os países europeus decidiram fazer] novos acordos com países terceiros”.
O acordo com a Tunísia neste verão e, mais recentemente, com a Albânia, são “as mais recentes tentativas da Europa de se furtar à obrigação dos Estados de ajudar e proteger pessoas”, criticou.
“Mais uma vez, a dissuasão e a contenção ganham prioridade em relação aos direitos e à vida das pessoas”, lamentou Gil.
No início deste ano, o Governo italiano também adotou novas regras que impedem as organizações não-governamentais (ONG) de salvar vidas no mar, “limitando a assistência humanitária e ampliando o vazio nas operações de resgate no Mediterrâneo central”, apontou a MSF no relatório hoje divulgado.
Nos primeiros nove meses de 2023, as autoridades italianas detiveram, ao abrigo da nova lei, seis navios de resgate de ONG, incluindo o ‘Geo Barents’.
No total, isto significa que durante 160 dias — mais de cinco meses — os navios das ONG estiveram parados e incapazes de salvar vidas, denunciou a organização internacional médica.
Além disso, a prática de atribuir portos de desembarque remotos a navios de ONG forçou o ‘Geo Barents’ a viajar mais 28.000 quilómetros — o que equivale a cerca de 70 dias de navegação — para chegar e regressar.
“Além de atrasar o acesso dos sobreviventes a ajuda médica adequada, proteção e serviços de acolhimento em terra, aqueles foram dias em que fomos deliberadamente impedidos de ajudar pessoas em perigo no mar. Embora as novas regras italianas visem as ONG, o preço real é pago por quem foge através do Mediterrâneo central”, alertou Juan Matias Gil.
A bordo do ‘Geo Barents’, a MSF “também testemunhou, em primeira mão, violações flagrantes de direitos, com a Itália e Malta sem conseguirem coordenar os resgates e garantir assistência às pessoas em risco de afogamento, provocando resgates atrasados ou impedindo-os” de acontecer, apontou.
As autoridades italianas, acrescentou, “instruíram, em diversas ocasiões, navios de ONG para não ajudarem barcos em perigo e forçaram-nos a dirigir-se imediatamente para o porto.
Por seu lado, as consequências da “política sistemática de Malta de não-assistência no mar” foram testemunhadas pela MSF que, em junho passado, documentou pelo menos uma morte como resultado direto dessa estratégia.
A travessia do Mediterrâneo central é uma das rotas migratórias mais mortais do mundo, partindo da Líbia, Argélia e da Tunísia em direção à Europa, nomeadamente aos territórios italiano e maltês.
De acordo com dados da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira — Frontex -, esta rota registava, nos nove primeiros meses deste ano, a entrada na Europa de 131.630 pessoas, o que representa um aumento de 83% face ao mesmo período do ano passado.
As outras duas rotas do Mediterrâneo são a oriental (que parte sobretudo da Turquia em direção à Grécia) e a ocidental (de Marrocos para Espanha).
Segundo a OIM, mais de 17 mil pessoas morreram ou desapareceram nos últimos nove anos no Mediterrâneo central, enquanto a rota ocidental fez 2.300 mortos e a oriental cerca de 1.700.
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