Introdução

O movimento de oposição católica ao Estado Novo teve em José da Felicidade Alves (1925‐1998) um dos seus protagonistas. Pároco de Santa Maria de Belém entre 1956 e 1968, o padre Felicidade, como era conhecido, chega à igreja dos Jerónimos, em Lisboa, portador de credenciais de excelência e distinção, acumuladas enquanto seminarista e, mais tarde, como professor nos Seminários de Almada e dos Olivais. Um passado que não fazia pre‐ ver os episódios — incómodos para a hierarquia da Igreja Católica e para o governo portugueses — que começa a protagonizar na viragem para a década de 1960. Gestos esporádicos que se multiplicam com a passagem do tempo, atingindo o ponto de rutura em 1968, ano em que Felicidade Alves apresenta ao Conselho Paroquial de Santa Maria de Belém um documento intitulado «Perspetivas atuais de transformação nas estruturas da Igreja. Sentido da responsabilidade na vida política do país» — páginas que encerram duras críticas à Igreja Católica portuguesa e ao Estado Novo.

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

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Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

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É na sequência deste gesto que eclode o designado «caso de Belém», que redundaria na suspensão a divinis de Felicidade Alves para o exercício das funções sacerdotais, decretada pelo cardeal-patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, a 2 de novembro desse mesmo ano. Finda a vida eclesiástica, não cessa porém a atividade contestatária do pároco deposto. Entre 1969 e 1970 integra e coordena o movimento GEDOC — acrónimo de Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informações e Experiências —, cuja face visível era o projeto editorial designado Cadernos GEDOC. A publicação assumia como missão ser espaço de partilha de informação e de debate sobre a Igreja no pós‐Vaticano II, produzida por um grupo informal de crentes que se autointitulava de «vanguarda cristã». Mas, para lá das pretensões do debate estritamente religioso, os Cadernos GEDOC eram uma tribuna de reflexão política e social, proposta tida por intolerável pelo regime ditatorial vigente. Assim, em maio de 1970, José da Felicidade Alves é preso pela Direção‐Geral de Segurança (DGS), sob a acusação de envolvimento em «atividades contrárias à segurança do Estado», processo pelo qual seria julgado em tribunal plenário e absolvido mais de três anos depois, a 6 de novembro de 1973.

Resumido em escassas linhas um esquisso cronológico dos acontecimentos que colocaram Felicidade Alves no centro de uma polémica que assumiu contornos ora de exemplar fenómeno ora de censurável escândalo, consoante o ponto de vista, importa salientar que para a sua notoriedade no universo da oposição católica ao Estado Novo contribuiu uma particular conjugação de fatores. Entre estes, de referir o confronto entre o estatuto de promissor «delfim» do cardeal Cerejeira, de que gozou até finais da década de 1950, e o inusitado desassombro com que protagonizou o chamado «caso de Belém» e agiu ao longo das sequelas deste acontecimento. Para a notabilidade do padre Felicidade Alves enquanto oposicionista político concorreu ainda o precoce destaque que assumiu no esforço de renovação da Igreja em Portugal, buscando uma aproximação às orientações dimanadas do Concílio Vaticano II, esforço que se mostrava árduo à luz do conservadorismo da hierarquia eclesiástica nacional. Ou a vitalidade carismática que o envolvia, expressiva aura reforçada pela inteligência que lhe era consensualmente reconhecida como extraordinária — por apoiantes e adversários — e por uma capacidade de produção intelectual incomum. Para a inusitada notoriedade que alcançou, contribuiu também a particular visibilidade que assumia o seu púlpito, o da Igreja de Santa Maria de Belém, integrada no Mosteiro dos Jerónimos. Tratava‐se da mais «governamental» das paróquias da capital, por acolher como paroquianos diversos elementos do regime estado‐novista ou próximos deste. Aliás, o posto acarretava o exercício das funções de capelão do chefe do Estado. A meteórica sequência «caso de Belém», suspensão a divinis, movimento GEDOC e prisão, a que se seguiu o casamento celebrado com Elisete Nunes de Ascensão em 1970 e subsequente excomunhão, exponenciou o eco público do nome Felicidade Alves nos derradeiros anos do Estado Novo.

Livro: "Padre Felicidade. O oposicionista praticante"

Autor: Ana R. Gomes

Editora: Tinta-da-China

Data de Lançamento: 2 de maio de 2024

Preço: € 17,90

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Não obstante a consensualmente reconhecida notoriedade — plasmada na historiografia relativa à oposição católica ao Estado Novo através da recorrente referência ao seu percurso e do particular enfoque na narração dos factos associados ao «caso de Belém» e ao movimento GEDOC —, o discurso e a ação contestatária do padre Felicidade Alves, na forma como emergiram, evoluíram, se modificaram e radicalizaram, continuam a carecer de estudo mais aprofunda‐ do. Reivindicam uma análise que vá para lá da interpretação do relativamente fugaz fenómeno — muito embora expressivo — e busque respostas para as causas, hesitações, reconfigurações e resoluções que pontuaram a atividade oposicionista de José da Felicidade Alves ao Estado Novo. A disponibilização pública do seu arquivo pessoal — entregue pela viúva à Fundação Mário Soares e Maria Barroso — possibilitou esta investigação.

Dessa possibilidade surgiu este livro, projeto editorial construído a partir da dissertação de mestrado concluída em 2021, sob orientação do Doutor Pedro Aires Oliveira e do Doutor João Miguel Almeida, e intitulada «Padre Felicidade: da militância católica à oposição praticante ao Estado Novo» — uma narrativa académica aqui revista e aumentada de forma a melhor revisitar a figura e a atividade de José da Felicidade Alves. O ponto de partida para esta aventura — como acontece com todas as outras — foi a curiosidade. A vontade de des‐ cobrir e de dar a conhecer o padre Felicidade, oposicionista ao Estado Novo, personalidade carismática e controversa, intelectual movido por uma incessante inquietação. As linhas que se seguem procuram integrar parte do muito que ficou de fora das páginas da dissertação, por motivos de limitação de espaço. E, nesse resgate, conferir traço mais fino ao retrato biográfico, à cronologia de pensamento e ação, à relevância que o pároco nascido numa freguesia das Caldas da Rainha viria a assumir nos contextos nacional da oposição católica ao Estado Novo e internacional de uma vaga de catolicismo de esquerda que se distingue no palco global pós‐conciliar.

Se a curiosidade ditou o arranque deste projeto, ela foi progressivamente alimentada pelas interrogações que lhe servem de motor, perguntas que povoam este livro e às quais as páginas que se seguem procuram responder. Indagação primeira foi a de avaliar como surgiu e evoluiu o pensamento e a ação do padre Felicidade enquanto oposicionista ao Estado Novo. Ponto de partida a partir do qual se multiplicaram as questões que solicitavam esclarecimento: Qual o lugar do religioso e do político no trajeto contestatário que percorreu (e como se foram reposicionando no correr do tempo)? Como se conjugam os papéis de oposicionista político e de paladino da renovação eclesiástica da Igreja em Portugal? Foram as reivindicações por uma reforma da Igreja, no espírito do Vaticano II, e as críticas à hierarquia eclesiástica nacional — nomeadamente quanto à postura colaborativa que mantinha com o Estado Novo — que conduziram à emergência do oposicionista político?