Puxando a patilha, rasga-se o metal pelas fendas preparadas para o efeito. Dentro da lata, lascas de uma matéria meio castanha, meio cor-de-rosa. Vem banhada em água, azeite ou óleo vegetal. Na etiqueta diz que é atum — no prato diz só que casa bem com um arroz e uns ovos cozidos.
Meses antes, porém, esta massa disforme era um organismo vivo. Um imponente e majestoso animal, de pele reluzente, que explorava, qual navegador, a vastidão atlântica. Agora, jaz morto e enlatado numa despensa qualquer.
Brian Skerry não é um atum-rabilho, mas dedica a carreira a dar nome a espécies como estas. Um dos principais fotógrafos subaquáticos do mundo, este fotógrafo da National Geographic é também uma voz ativa pela conservação marinha. Através da fotografia, revela a degradação dos mares. As imagens premiadas deste norte-americano que sempre sonhou ser aquilo que hoje é, revelam as condições adversas em que as espécies marinhas se encontram — todavia, oferecem também esperança para a proteção da vida nos oceanos.
Algumas fotografias do norte-americano estiveram o ano passado no Oceanário de Lisboa na exposição “Sharks” [tubarões].
Skerry esteve agora no Porto para dar uma cara aos peixes. “Conhecemos os leões, os tigres, ursos pardos e lobos — mas não sabemos muito sobre o atum, nem pensamos nele”, disse o fotógrafo ao SAPO24.
“Foi uma grande parte daquilo que estava a tentar fazer com o trabalho das pescarias mundiais, porque há tantos danos a ser feitos e acho que as pessoas não pensam nos peixes como pensam nos mamíferos peludos da floresta. Pensam nos peixes como uma coisa de sangue frio; quando ouvem a palavra 'peixe', pensam num pedaço de carne à beira de alguns vegetais no prato. Não sabem muito sobre estes animais”, conta.
“Por isso”, diz, “histórias como esta são sempre sobre tentar aproximar os leitores desses animais, dar-lhes alguma personalidade”. Isto porque porque uma sardinha ou um bacalhau não são fofos: “é só comida”. “É importante saber mais sobre esses animais e as interessantes vidas que levam”, diz Skerry.
Até porque há uma grande diferença nos animais que pomos no prato. Os que vêm da terra são domesticados e produzidos em quintas. Com o peixe não é assim: “é vida selvagem”. “Algum peixe já vem de 'quintas' de aquacultura, mas em muitos dos casos, quando estamos a comer peixe e marisco estamos a comer vida selvagem”, lembra o fotógrafo.
“Seria como arrastar uma rede pela floresta para apanhar alguns esquilos e nesse processo matar todos os pássaros — é isso que se está a passar no oceano. Não pensamos nisto desta forma porque simplesmente não pensamos nisto”, lamenta.
Situação grave nos oceanos
Skerry passa mais de metade do ano debaixo debaixo de água. Mergulha oito meses por ano, muitas vezes em condições extremas sob o gelo do Ártico ou em águas infestadas de predadores. Ilustra algumas das mais importantes histórias da National Geographic, com fotografias dos últimos recifes de coral do planeta, a condição da baleia franca ou os tubarões ameaçados nas Bahamas.
Estas são as credenciais de um homem preocupado com o futuro dos mares. “Perdemos 90% dos grandes peixes nos oceanos — e pequenos peixes também”, revela.
“Onde vivo, na Nova Inglaterra, arrasámos com 99% da população de bacalhau. Estamos a fazer isto com o atum; estamos a matar cem milhões de tubarões; estamos a destruir os prados de ervas marinhas à beira da costa e os mangais para construir hotéis; os fertilizantes e químicos que usamos, por exemplo, em campos de golfe, e que vertem para os oceanos estão a destruí-los. Perdemos 50% dos recifes de coral no planeta”, afirma.
As consequências da catástrofe marinha são várias: “O oceano é o maior captador de carbono do mundo; recebe carbono e devolve-nos oxigénio. Ainda assim, saturá-mo-lo, está agora a tornar-se ácido, está a acontecer uma acidificação do oceano que vai promover a erosão de todo o cálcio no mar, como os recifes de coral ou tudo o que tenha conchas”, explica o fotógrafo.
A culpa é dos humanos e respetivo lixo. “Cerca de sete mil milhões de quilos de plástico são deitados no mar todos os anos. O oceano está a ser morto por vários problemas diferentes. É um problema sério. Acho que ainda podemos salvar o que resta, mas temos de agir depressa”, apela Skerry.
Fora de água, as apresentações e palestras do fotógrafo norte-americano mostram imagens premiadas e encontros próximos com a vida selvagem. “Inspiram reverência pelo reino marinho e oferecem esperança para a proteção da vida dos oceanos do mundo inteiro”, explica a National Geographic. “As suas imagens celebram o mistério das profundezas dos mares e os seus retratos de espécies marinhas são tão íntimos que às vezes parecem ter sido tirados num estúdio.”
Parecem, mas não são. E isso nota-se no trabalho dele: a poluição é omnipresente, “vêmo-la em todo o lado”, diz o fotógrafo. Como se isso não bastasse, “as mudanças climáticas estão a afetar a previsibilidade das coisas”.
“Faço pesquisas sobre uma dada espécie antes de a ir fotografar e percebo que a melhor altura para ir aos Açores ver cachalotes é julho — por exemplo, estou a inventar uma data —, e agora vamos lá e as baleias podem não estar, porque a temperatura está diferente ou algo mudou. Por isso, é muito difícil prever qual a melhor altura e lugar para ir fotografar”.
“Não comecei com o objetivo de fazer histórias sobre o ambiente, mas senti que tinha de o fazer, porque é tão grave e tendo-me sido dada esta oportunidade. Não sei se está, em si, a afetar as coisas que estou a fazer, mas tenho a certeza de que a algum nível será prejudicial e está a degradar os ecossistemas”, conta, à beira da frondosa praça de Mouzinho de Albuquerque.
Confiar em peixes, desconfiar de políticos
Como se convence um peixe a confiar num homem armado com uma câmara? “Bom, essa é uma boa pergunta”, atira Brian. “Como fotógrafo, nunca posso usar objetivas de longo alcance debaixo de água, tenho de estar muito próximo dos meus retratados; nunca consigo nadar rápido o suficiente para apanhar um peixe, uma baleia, uma foca ou um golfinho”.
Assim, nem a biologia, nem a tecnologia estão do lado dele. Sobra a retórica e a diplomacia inter-espécies: “a forma como consegues convencê-los a confiar em ti é estando calmo. Não podes ser demasiado agressivo, não os podes perseguir. Muito animais são curiosos, por isso serão eles a ir ter contigo — só tens de ter paciência, passar muito tempo à espera”, explica.
Todavia, diferente será ter um carapau miúdo a escorregar em direção a nós, e um tubarão-tigre a investir na nossa direção. O que fazer ao medo? Para Brian, “parte do medo é diminuída fazendo alguma pesquisa, falando com especialistas que dedicaram a vida ao estudo destes animais, a percebê-los”.
Contudo, “nunca nos livramos do medo — e acho que não te queres ver livre dele. Acho que vais querer sempre ter uma dose saudável de medo porque isso te vai fazer ser um pouco mais prudente e vais querer estar sempre consciente de que isto podem ser situações perigosas”.
“Aquilo que faço tem riscos — estás sempre a pôr-te em perigo, mas fazes tudo aquilo que podes para o tornar o mais seguro possível”. “Já fui obrigado a fugir da água algumas vezes por tubarões ou crocodilos. Porém, há poucas coisas perigosas, mas muitas experiências fantásticas — e é dessas que me prefiro lembrar”, conta Skerry.
No currículo de Brian Skerry está também um mergulho nas águas cristalinas do Hawai com o então presidente dos Estados Unidos da América Barack Obama. Foi Obama que o quis por perto. Skerry foi chamado pelo lusodescendente Pete Souza e saltou para dentro de água com um presidente e uma câmara.
“Obama percebeu”, explica Skerry. Todavia, o anterior presidente norte-americano é caso raro. Para o fotógrafo, é mais difícil convencer políticos do que peixes. “O Obama percebeu o problema, mas acho que muitos políticos só vão fazer aquilo que lhes é politicamente conveniente”.
Assim, "as pessoas têm de eleger líderes que partilhem as suas visões — e as pessoas vão ter a perspetiva certa da situação se tiverem boa informação”. Cabe, então, a repórteres e fotógrafos ajudar a mudar isso: “temos de fazer um bom trabalho na divulgação, temos de ter uma boa ciência e temos de ter boas narrativas, bom 'storytelling'. Depois, esperemos, as pessoas vão querer fazer as coisas necessárias para proteger o planeta e eleger líderes que ajam e façam aquilo que é preciso”, acredita.
Podem os esforços individuais podem ter impactos globais? “Sem dúvida!”, atira. “Temos de procurar pessoas dedicadas e grupos dedicados para mudar o mundo e liderar. É isso que é preciso. As ações do consumidor — não usar plástico descartável, não comer atum ou tubarão, por exemplo — importam e um consumidor e eleitor poderoso e informado pode ter um verdadeiro impacto”.
“Ainda há tempo para salvar o planeta, mas temos de agir já. As decisões que tomarmos hoje vão determinar o nosso futuro — e se não tivermos, pode ficar demasiado tarde, mas acho que ainda não é tarde demais”.
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