PRÓLOGO
A Espia Alemã e a Filha de Mussolini
31 de agosto de 1939 – 5 de fevereiro de 1943
Onde está o Ciano? A mesa do jantar tinha sido levantada. Galeazzo Ciano era esperado. Os convidados tomavam uma bebida após o jantar. Nesta última noite de agosto de 1939, o ar estava quente e parado mesmo àquela hora tardia. Como sempre em Roma no final do verão.
Porém, a cidade para lá dos muros da villa já estava irreconhecível. O café era racionado desde a primavera. Os trabalhadores faziam agora uma pausa para um caffè corretto – uma mistela amarga de chicória «corrigida» com aguardente. Donas de casa iradas resmungavam palavras que equivaliam a insurreição enquanto esperavam em longas filas à porta das lojas, para descobrirem por fim que não havia carne de vaca ou manteiga. A circulação de automóveis particulares era proibida e uma bicicleta passando a ranger por uma rua vazia à noite levava vizinhos curiosos a espreitarem às janelas escurecidas. Pairava a ansiedade no ar. Os homens de negócios que se encontravam no salão da villa naquela noite sabiam que as secretárias nos seus escritórios tinham máscaras de gás enfiadas discretamente nas gavetas, juntamente com o pó de arroz e o batom. As pessoas diziam umas às outras, em privado agora, que a verdadeira escassez ainda estava para vir.
Por toda a cidade de Roma, apenas os mais afortunados não sentiam as agruras da austeridade. No entanto, nas casas grandiosas dos ricos e bem posicionados como esta, com acesso aos corredores do poder, só o estado de espírito se alterara substancialmente. Os convidados estavam sombrios e preocupados, e concentravam-se apenas numa coisa: em Ciano.
Todas as pessoas em Itália conheciam Ciano.
O conde Gian Galeazzo Ciano – com o seu cabelo preto penteado para trás e lustroso com brilhantina, as suas roupas elegantes; dandy, vaidoso e, ao fim e ao cabo, um tonto – era o segundo homem mais poderoso na Itália fascista. Era genro do ditador Benito Mussolini, assim como, aparentemente, seu herdeiro político, e, com a nação a aproximar-se do precipício da guerra naquela noite, Galeazzo Ciano era também ainda o homem encarregado das instáveis relações internacionais: o ministro dos Negócios Estrangeiros de Itália.
Uma única questão mantinha a Itália de respiração suspensa: Haveria guerra na manhã seguinte? Ciano dir-lhes-ia.
* * *
Apenas Benito Mussolini detinha mais poder, e a guerra não era o que ele queria, embora dissesse o contrário. Manifestara o seu apoio ao Terceiro Reich de Hitler e agora, a não ser que os Aliados cedessem, a Itália arriscava -se a ser arrastada para um conflito liderado pelos alemães que Mussolini sabia que os italianos não desejavam e que as suas forças militares não seriam capazes de suportar. Mesmo assim, Mussolini sentia -se otimista. Os Aliados barafustariam e queixar-se-iam. Contudo, acabariam por não fazer nada. Não tinham feito nada quando Hitler se apoderou do controlo da Áustria e depois da Checoslováquia. Não combateriam agora pela Polónia.
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Galeazzo Ciano não tinha tanta certeza. De facto, Galeazzo tinha muitas dúvidas, tanto sobre uma guerra como sobre o Terceiro Reich. Desde o início do ano, Galeazzo escrevia um diário. Os pontos de vista sem censura nem discrição que registava nessas páginas não pintavam imagens lisonjeiras do seu sogro ou dos alemães. Desprezava particularmente o seu homólogo alemão, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Hitler, Joachim von Ribbentrop, um homem magro e cruel com olhos inquietantemente pálidos, com uma sede de poder e uma propensão para lamber botas politicamente que lhe granjeavam o desprezo de quase todas as pessoas que o conheciam. O diplomata americano Sumner Welles comentou bastante pouco diplomaticamente sobre Ribbentrop que «A pomposidade e o absurdo dos seus modos não poderiam ser exagerados». Um colega alemão observou que «Não se podia falar com Ribbentrop, ele apenas se escutava a si mesmo»; outro descreveu-o como «uma casca sem miolo». Era o tipo de homem que planeava uma vingança simplesmente porque o nome de outro desafortunado tenente tinha sido mencionado antes do seu num qualquer documento burocrático. Muitas pessoas do círculo próximo de Hitler se sentiam já ansiosas por ver Ribbentrop tropeçar. A sua queda do poder seria bem-vinda. Nas páginas do seu diário, Galeazzo resumiu Ribbentrop com duas simples palavras: «canalha repulsivo».
Em troca, Ribbentrop odiava Galeazzo Ciano. Odiava os modos aristocráticos descontraídos do conde e a sua predileção descarada pelos ingleses. Odiava que Galeazzo não fingisse deferência e também a maneira como questionava com impertinência o bom senso do Führer. Quando chegasse a hora da vingança – e Joachim von Ribbentrop adorava vingar -se – teria grande prazer em destruir o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano.
Se, na opinião de este último, Ribbentrop era um tolo e um bajulador, também já não restavam ilusões a Galeazzo Ciano quanto a Hitler no verão de 1939. Apenas algumas semanas antes, encontrara -se com o Führer, e, no seu regresso, confidenciou perigosamente ao seu diário: «completamente repugnado com os alemães, com o seu líder... estão a arrastar-nos para uma aventura que nós não quisemos... Não sei se desejar uma vitória à Itália ou uma derrota à Alemanha... Não hesito em despertar em [Mussolini] todas as possíveis reações anti-alemãs... eles são traidores e nós não devemos ter quaisquer escrúpulos em os largar. Mas Mussolini continua a ter muitos escrúpulos.»
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Mussolini mostrava-se evasivo. Num momento, fartava-se de falar sobre guerra e honra e mostrava-se decidido a provar a Hitler que se sentia tão ansioso pela expansão imperial como os alemães. Os italianos eram os herdeiros do Império Romano. Sonhava com o regresso a uma grandeza abrangente. No momento seguinte, porém, a realidade pressionava Mussolini. A Itália não estava preparada para aquele tipo de guerra, e Mussolini perorava contra a pressão que os nazis estavam a exercer sobre ele. Ao longo de todo esse dia, Galeazzo estivera a trabalhar febrilmente nos bastidores para evitar um desastre e a eclosão do conflito na Europa. A anuência dos britânicos à última hora para participarem numa conferência de paz com os alemães demorara todo o serão a arrancar-lhes. Não resolveria nada, mas proporcionar -lhes -ia algum espaço de manobra. Quando Mussolini acedeu por fim, Galeazzo estava já várias horas atrasado para o jantar a que prometera assistir.
Quando entrou por fim em grandes passadas pelas portas do salão, rostos ansiosos viraram-se para ele, e Galeazzo Ciano sorriu alegremente. Era um homem do espetáculo. Aquele era o seu palco. Poderiam dormir sossegados, garantiu aos convivas, rindo-se confiante: «tranquilizem -se... A França e a Inglaterra aceitaram as propostas do Duce». Os britânicos tinham cedido, afinal. É claro. Apaziguamento era mais uma vez a palavra do momento. Não haveria guerra nessa noite. Os convivas riram-se contentes e voltaram a encher os copos antes de se retirarem lentamente para os seus respetivos quartos.
Por um breve momento naquela noite, Galeazzo sentiu-se tão aliviado como todos os outros. A sensação não durou muito tempo. À meia-noite, a paz estava novamente a desfazer-se. Galeazzo regressou num automóvel do ministério, com o motorista elegantemente fardado a percorrer as ruas estreitas de Roma na direção de um gabinete com vista para a Piazza Colonna. Alguém passou uma folha de papel a Galeazzo. Ouviram-se passos rápidos no corredor. Chegavam notícias através de vias diplomáticas. Hitler não estava disposto a participar numa conferência de paz. Os títulos dos jornais matutinos em Berlim já estavam a ser impressos, anunciando a invasão da Polónia pela Alemanha. De madrugada, chegou a notícia de que a Polónia estava a render-se. Galeazzo sabia o que isso significava. Mussolini não se juntaria aos Aliados. A sua amizade com Hitler impediria a Itália de pegar em armas contra a Alemanha. Contudo, talvez Mussolini pudesse ser persuadido a não se envolver. Na tragédia que se avizinhava, a única esperança era, de alguma maneira, manter a Itália neutra.
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Durante quase mais um ano – até junho de 1940 – Galeazzo Ciano e os seus aliados em Roma conseguiriam esse feito. Hitler sabia perfeitamente quem culpar por essa inércia em Roma. Diria mais tarde sobre Galeazzo Ciano: «Não compreendo como Mussolini pode fazer a guerra com um ministro dos Negócios Estrangeiros que não a quer e que escreve diários nos quais diz coisas horríveis e vitupérios sobre o nazismo e os seus líderes.» Esses diários estavam já a incomodar seriamente Hitler.
Por fim, Mussolini deixou de poder ser apaziguado. Era ao mesmo tempo demasiado fraco e demasiado orgulhoso. A beligerância estava demasiado entranhada no seu caráter. Aos dez anos, Benito Mussolini fora expulso da escola por esfaquear um colega da turma. Aos vinte, esfaqueou uma namorada. Aos trinta, foi o fundador do Partido Nacional Fascista, que subiu ao poder através do simples estratagema de assassinar sistematicamente milhares de adversários políticos para que não restasse ninguém que se opusesse a ele. Aos quarenta anos, Benito Mussolini arrancara o poder das mãos do rei de Itália através da força de um culto de personalidade, um ato que inspirou Adolf Hitler, mais jovem e cheio de admiração, e o fez tentar um golpe semelhante na Alemanha, o Putsch da Cervejaria. Daí a um ou dois anos, em 1925, já pusera de lado qualquer fingimento e governava como ditador fascista, levado na onda de apoio populista, estimulado por invetivas e uma retórica arrogante e convencida de nacionalismo e nostalgia que empolgava os seus seguidores e aterrava os seus críticos.
O machismo era o cerne da reivindicação de poder de Mussolini. No mundo que ele criara, os «verdadeiros homens» não viravam costas a uma luta e «os verdadeiros italianos», homens que eram herdeiros do Império Romano que conquistara o mundo, não cediam perante ninguém. Essa visão criava um dilema político que era claro para ele: «Os Italianos, tendo ouvido a minha propaganda de guerra durante dezoito anos... não conseguem compreender como posso tornar-me um arauto da paz, agora que a Europa está em chamas... exceto a falta de preparação militar do país [pela qual] sou considerado responsável.» Mussolini não queria a guerra. Mas também não queria perder a face.
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Galeazzo Ciano lutou de todas as maneiras que conhecia para impedir que a Itália entrasse na Segunda Guerra Mundial ao lado dos alemães. Agora, pela perspetiva do século XXI, isso talvez possa até considerar-se um ato de valentia. No entanto, seria excessivo considerar Galeazzo Ciano uma espécie de herói. Moveu outras guerras, contra forças muito menos equipadas do que a França e a Grã-Bretanha, com poucos escrúpulos; considerava-se geralmente, e talvez corretamente, que, tal como o seu sogro, desempenhara um papel na execução extra-judicial de adversários políticos; enriqueceu à custa do seu posto, enquanto a maior parte da Itália passava fome; a sua política, mesmo quando anti-alemã ou anti-nazi, não era ainda anti-fascista. Era, de acordo com a maioria dos relatos contemporâneos, frívolo, indiscreto nos seus mexericos e um mulherengo incorrigível. Joseph Kennedy, então embaixador americano em Roma, comentou sobre ele em 1938: «Nunca conheci um imbecil tão pomposo e vaidoso como ele. Passou a maior parte do tempo a falar sobre mulheres e não conversou seriamente com ninguém, por medo de perder de vista as duas ou três raparigas de que andava atrás. Deixei-o com a convicção de que teríamos obtido mais dele se lhe tivéssemos enviado uma dúzia de raparigas bonitas do que um grupo de diplomatas.» Os americanos não foram os únicos a tirar essa conclusão. O fraco de Galeazzo por mulheres atraentes também chamara a atenção dos alemães.
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Seria exigir ainda mais à credulidade das pessoas apresentar a mulher de Galeazzo Ciano, Edda, como uma heroína nesta história, embora este livro seja indubitavelmente sobre ela e sobre a coragem, a inteligência e a determinação espantosas que demonstrou no que viria a suceder.
Em 1939, Edda era também conhecida por todos os italianos. Todos a conheciam, pelo menos durante aqueles dezoito anos do reinado de Mussolini, primeiro como a filha mais velha favorita do governante autocrático italiano e uma jovem rebelde, e de seguida, após o casamento com o famoso Ciano, em 1930, como a sofisticada e espampanante condessa Ciano. Com vinte e oito anos nas vésperas da guerra – 1 de setembro de 1939 seria, por coincidência, o dia em que fez vinte e nove – a reputação de Edda não era impecável, e diplomatas por todo o mundo também a mantinham debaixo de olho.
O embaixador britânico em Roma, Sir Percy Loraine, comunicou ao primeiro-ministro Neville Chamberlain nessa primavera que Edda «se tornou uma ninfomaníaca e, numa névoa de álcool, leva uma vida de promiscuidade sexual bastante sórdida». Bebia demasiado gin e jogava póquer bastante mal e com apostas altas. Enquanto o tom de voz de Galeazzo era agudo e nasalado e ele falava interminavelmente sobre a sua paixão por cerâmica antiga — não propriamente a ideia de machismo de Mussolini —escandalosamente, Edda vestia calças de homem, fumava, usava maquilhagem e conduzia um carro desportivo com o marido no lugar do passageiro. Enquanto Galeazzo levava para a cama numa atitude de «amá-las e deixá-las» tantas das amigas aristocráticas da sua mulher às quais as pessoas em Roma se referiam simplesmente como as «viúvas do Ciano», os gostos de Edda no que dizia respeito a cama eram por homens mais novos, desportivos e em boa forma física, como o aristocrático marchese Emilio Pucci, um esquiador olímpico de vinte e quatro anos e condutor entusiástico de automóveis de corrida (assim como, mais tarde, designer de moda de nomeada). Ninguém tem a certeza absoluta sobre quando a ligação intermitente entre os dois começou. Provavelmente, iniciou-se a dado momento em 1934 nas pistas de esqui de Cortina. Em 1939, Emilio Pucci estava de regresso a Roma e mais uma vez encontrava-se com Edda, embora ninguém pensasse que era o seu único amante.
Por que razão os diplomatas estrangeiros se interessavam tanto pela vida dissoluta da mulher do ministro dos Negócios Estrangeiros italiano e filha de Mussolini? Muito simplesmente: devido à influência que exercia sobre o pai. Mussolini adorava a sua filha mais velha e, ao contrário do seu marido, Edda era entusiasticamente pró-guerra e pró-Alemanha. Galeazzo escreveria mais tarde no seu diário que, no momento crucial da primavera de 1940, na véspera da invasão da Bélgica e da Holanda:
Vi [Mussolini] muitas vezes e, infelizmente, descobri que a sua ideia de entrar em guerra estava a tornar-se cada vez mais forte. Também a Edda tem estado no Palazzo Venezia e, ardente como é, disse ao pai que o país quer guerra e que continuar com a nossa atitude de neutralidade seria desonroso para a Itália. Esses são os discursos que Mussolini quer ouvir, os únicos que leva a sério... A Edda vem ver -me e falar sobre intervenção imediata, sobre a necessidade de combater, sobre honra e desonra. Escuto-a com uma cortesia impessoal. É uma pena que ela, tão inteligente, também se recuse a ver a razão.
A Itália entrou, por fim, na guerra em 10 de junho de 1940, juntando a sua sorte à da Alemanha de Hitler. Galeazzo Ciano viu que apenas poderia terminar em desastre. Edda admitiu que se tratava de uma jogada. Porém, tal como o seu pai, sentia-se empolgada com a demonstração de audácia. O perigo fazia Edda sentir-se revigorada. Além disso, no final da primavera de 1940, tanto a Edda como ao seu pai parecia decididamente que a Itália estava a apostar num vencedor certo: Hitler.
Seria a primeira das jogadas impulsivas de Edda do tempo da guerra. Apenas quando já era demasiado tarde viria a compreender que as apostas eram mais elevadas do que imaginara e que confiar em Hitler era uma tolice.
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Não era óbvio que a Alemanha fosse perder a Segunda Guerra Mundial. Durante os dois anos e meio seguintes, de facto, parecia evidente que Edda Ciano e Benito Mussolini tinham tido razão, pelo menos genericamente falando. O império alemão e o império italiano expandiam-se a um ritmo constante. No final de 1942, Mussolini controlava já grandes territórios no Adriático Oriental, no Norte de África e no Mediterrâneo, incluindo áreas conquistadas à vizinha França quando este país se rendeu ao Eixo em 1940. O Terceiro Reich de Hitler atingira a sua maior extensão em 1942 e ia da Europa de Leste à Noruega e a Paris. A Europa Continental, com a exceção nominal da França Livre, encontrava-se efetivamente dividida entre três ditadores: Hitler, Mussolini, e, na Península Ibérica, Franco.
Porém, Galeazzo Ciano viu que a maré estava a mudar. Reconhecera em 1939 que aliarem -se a Hitler apenas poderia trazer ignomínia e derrota ao reino de Itália. O ano de 1942 não fora fácil para as potências do Eixo. Os Estados Unidos tinham entrado na guerra e houvera contratempos e frustrações para Hitler. Embora Galeazzo permanecesse convencido de que Mussolini estava a conduzir a nação para um desastre, confidenciava agora as suas preocupações principalmente aos seus diários. Sabia já que era preferível não dizer o que pensava demasiado abertamente ou com demasiada frequência. Presenciara a consequência dessa atitude para outro dos destacados céticos da guerra, Pietro Badoglio.
Galeazzo e Pietro Badoglio eram rivais há mais de uma década, disputando poder e influência, e nenhum dos dois se coibia de atacar o outro pelas costas. Não se odiavam com a intensidade apaixonada que Galeazzo reservava para o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Joachim von Ribbentrop, mas havia bastante antagonismo entre os dois. Galeazzo usara o poder da polícia secreta para recolher uma grande quantidade de informações embaraçosas e comprometedoras sobre Pietro Badoglio. Este sabia-o. Um dia, viria a fazer um ajuste de contas.
Contudo, Galeazzo Ciano e Pietro Badoglio concordavam numa coisa: Mussolini estava a dar ordens militares tontas e a travar uma guerra impossível de vencer e sem valor. Imprevidente, Badoglio partilhara esse ponto de vista com Mussolini demasiadas vezes e estava a passar a guerra em prisão domiciliária na sua villa faustosa nos arredores de Roma, privado do seu comando militar e com um poodle mimado por companhia. Galeazzo registava os seus pensamentos em privado e tinha o cuidado de fechar à chave os papéis todas as noites antes de sair do seu gabinete. A melhor coisa era simplesmente manter a boca fechada.
Nas suas memórias privadas, no entanto, Galeazzo não poupava as palavras. Ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, ocupava um lugar na primeira fila para assistir à tragédia de Itália que se desenrolava, e mantinha uma visão límpida tanto do seu homólogo alemão como das falhas do seu sogro. Tinha acesso a segredos de estado. As suas descrições privadas captavam os nazis em toda a sua malevolência brutal.
Herman Göring aparece nas páginas dos diários de Galeazzo Ciano como uma criança patética, desesperada por elogios e bugigangas, mas como o único nazi com um toque de vulnerabilidade. «[Ele] usava um grande casaco de pele de zibelina», escreveu Galeazzo sobre Göring em fevereiro de 1942, «algo entre o que os condutores de automóveis usavam em 1906 e o que uma prostituta de luxo leva à ópera. Se algum de nós tentasse usar uma coisa como aquela seria apedrejado nas ruas. Ele, pelo contrário, não só é aceite na Alemanha, mas talvez até amado por isso. Tal deve -se ao facto de ter uma ponta de humanidade.» Hitler, descrito não só como um bully, mas também como um gabarolas maçador, é criticado por fazer discursos intermináveis de auto-congratulação, que maçavam toda a gente. «Hitler fala, fala, fala» confidenciou Galeazzo nesse mês de abril, observando sardonicamente: «Mussolini aguenta – ele, que tem o hábito de falar, e que, em vez disso, praticamente tem de se manter em silêncio – os Alemães. Pobre povo. Têm de aguentar aquilo todos os dias.» O arqui-rival de Ciano, Joachim von Ribben-trop – choramingas, traiçoeiro e bajulador – aparece como um homem que faz de Hitler um tolo. Contudo, é Mussolini que é retratado à luz menos lisonjeira de todos: um ditador-fantoche, receoso de se impor ao homem mais novo que em tempos o considerara um herói e agora o tratava como um peão no xadrez da política mundial – e, como um peão, descartável.
Acima de tudo, Galeazzo registou nos diários, passo a passo, as quezílias políticas no núcleo duro do Terceiro Reich, com Himmler, Goebbels, Göring e Ribbentrop a competirem por poder e influência junto de Hitler, assim como a insistência implacável dos alemães numa guerra cujos objetivos eram simplesmente dominar e saquear. Nas mãos de qualquer um desses nazis, o diário de Ciano teria todo o poder de uma arma. Teria igualmente o poder de desferir um golpe mortal contra Mussolini aos olhos do Führer.
Escrevendo o seu diário, Galeazzo Ciano não se apercebia do perigo. Também não era discreto. Era um mexeriqueiro inveterado, incapaz de guardar um segredo, especialmente de uma mulher bonita. Tagarelava descuidadamente sobre os seus diários com toda a gente, de diplomatas estrangeiros ao seu sogro. E, mesmo quando as tensões entre a Itália e a Alemanha começaram a tornar-se explosivas, continuou a escrever.
* * *
Na véspera do Dia de Ano Novo em 1942, Hitler reconheceu às forças armadas alemãs que tinha sido um ano desafiador e que continuavam a deparar -se com desafios. «Hitler parece cansado», comentou Galeazzo. «Os meses de inverno na Rússia pesaram fortemente nele. Vejo pela primeira vez que tem muitos cabelos brancos.» Hitler estava cansado, mas também «forte, decidido e falador». «O ano de 1943 talvez venha a ser duro, mas certamente não mais duro do que o que acabámos de deixar»,18 admitiu Hitler às tropas, prevendo cheio de confiança uma vitória decisiva do Eixo no horizonte próximo.
Um passo nesse ímpeto renovado para a vitória foi uma reestruturação nos serviços de segurança alemães no final de 1942. Embora a estrutura organizacional do regime nazi fosse notoriamente complexa, dito de modo simples o Reichssicherheitshauptamt ou RSHA era a principal agência de segurança da Alemanha. Fora chefiada temporariamente por Heinrich Himmler desde o assassínio de Reinhard Heydrich em junho. O chefe da RSHA supervisionava as operações de duas sub-agências, a Sicherheitsdienst (SD) e a Gestapo. A missão da SD era descobrir inimigos do Terceiro Reich. Cabia à Gestapo, o «implementador» da Alemanha nazi, prender e interrogar esses inimigos, e as suas táticas geralmente incluíam a tortura.
No final de 1942, Himmler seria promovido a ministro do Interior e chefe das forças policiais do Estado alemão, e delegou a liderança da RSHA a um advogado austríaco que passara a pertencer às SS, um homem chamado Ernst Kaltenbrünner. Em janeiro de 1943, este, por seu turno, promoveu uma jovem aspirante a espia, que, na avaliação que viria a ser feita pelos serviços secretos americanos, se revelaria «uma das operacionais da guerra mais destacadas da RSHA».19 Esta jovem agente, promovida ao cargo de chefe executiva da secção estrangeira dos serviços secretos em Roma, uma divisão conhecida como Amt VI (Gabinete Seis), não tardaria a ser encarregada especificamente de, ao serviço dos alemães, lidar com a questão de Galeazzo Ciano.
O nome desta espia alemã era Hildegard Burkhardt. Tinha vinte e três anos em janeiro de 1943. Viria a ser conhecida na História, na sequência do seu casamento nessa primavera com um oficial alemão de alta patente chamado Gerhard Beetz, pelo seu nome de casada: Hilde Beetz. Hilde era excecionalmente inteligente e tinha a vantagem de possuir uma beleza acima do comum. De acordo com ficheiros governamentais, tinha olhos azuis e cabelo louro-escuro e media um metro e sessenta e dois. Ao contrário de muitas raparigas alemãs nos anos de 1930, Hilde tivera uma excelente educação. No liceu na sua cidade natal, Weimar, onde apenas um punhado de raparigas estudava, destacou -se especialmente em línguas estrangeiras. Falava fluentemente italiano e um inglês excelente, assim como, é claro, alemão. Estava filiada no partido nazi.
Hilde entrara para os serviços secretos dois anos antes, primeiro como funcionária da secção do correio e depois como tradutora. Progredira rapidamente para o cargo de secretária executiva de um homem chamado Helmut Löss, um assistente especial do adido da polícia na embaixada de Roma, cujo gabinete pertencia a uma secção dedicada à espionagem no Vaticano, onde um certo número de padres católicos – entre eles um homem chamado padre Guido Pancino, que era o confessor de Edda Ciano e do seu pai – se posicionava como parte da rede alemã de informadores da SD. O gabinete de Hilde estava encarregado das escutas telefónicas da cidade-estado papal.
Helmut Löss tinha a reputação de ser um excelente encarregado de agentes, e foi o primeiro a reconhecer que Hilde, com o seu rosto inocente e a sua sagacidade, daria uma excelente espia. Por sua recomendação, o «chefão», Ernst Kaltenbrünner, oficializou a transição de Hilde para os serviços secretos, atribuindo-lhe a responsabilidade de organizar todas as informações ultra-secretas que entravam e saíam no gabinete dos serviços secretos em Roma, no momento em que as preocupações dos alemães em relação a Galeazzo Ciano começavam a tornar -se sérias.
Os primeiros indícios de que Galeazzo Ciano estava a tornar-se um problema apareceram na secretária de Hilde, no seu papel de chefe-executiva do Amt VI em Roma, quase imediatamente após a sua nomeação para o lugar. Constava-se que o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano andava a recusar-se a fazer a saudação fascista aos oficiais alemães. Desde o outono de 1942, circulavam boatos não confirmados de uma conspiração interna para depor Mussolini e de que Galeazzo Ciano estaria envolvido nela. Os relatos que chegavam naquele momento eram mais substanciais: alguns agentes andavam a ouvir dizer que Galeazzo estava a colaborar nos bastidores com uma coligação dentro do Partido Nacional Fascista para derrubar o seu sogro e o substituir por um novo líder, um líder que procuraria a paz com os Aliados.
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O telegrama que trouxe tudo a lume chegou ao gabinete de Hilde durante a última semana de janeiro ou nos primeiros dias de fevereiro. Continha informações ultra -secretas intercetadas nos canais de comunicação americanos e confirmava as suspeitas alemãs sobre Galeazzo Ciano. A mensagem intercetada fora escrita por um jovial diplomata de carreira de meia-idade chamado Allen Dulles, que chegara à Suíça no início de novembro de 1942 e se instalara em Berna. Republicano ferrenho com uma carreira bem sucedida na advocacia e uma tentativa fracassada de ser eleito para o congresso no seu currículo, Allen Dulles estava ostensivamente a trabalhar como assistente especial do embaixador americano, embora os jornais suíços não tardassem a noticiar que desempenhava o papel de agente especial do presidente Roosevelt no país. Nada disso era verdade. Allen Dulles trabalhava de facto secretamente como chefe do recém-criado American Office of Strategic Services (OSS), o precursor da atual Central Intelligence Agency (CIA), a partir de um apartamento alugado num rés do chão na pitoresca zona medieval de Berna.
Os alemães somente viriam a descobrir a existência do OSS em 1944, mas sabiam o suficiente para encarar com preocupação este recém-chegado. Dulles transpirava autoridade, e entre o seu porte e os boatos que circulavam em Berna, os alemães identificaram-no rapidamente como um homem do governo americano cujos movimentos e comunicações valia a pena vigiar. Essa vigilância não tardou a render dividendos. Em janeiro de 1943, os alemães decifraram o código transatlântico de Dulles. Catastroficamente, passar-se-iam meses até Dulles se aperceber de que todas as suas comunicações ultra-secretas com Washington estavam a ser lidas pelos nazis. Nessa altura, já seria demasiado tarde para Galeazzo Ciano. Allen Dulles viria a perguntar-se, quando ficou a saber que o código tinha sido decifrado, até que ponto a culpa do que aconteceu a seguir – do bom e do mau – seria sua.
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O telegrama intercetado era uma comunicação secreta enviada por Dulles ao departamento de estado contendo a confirmação com provas: um grupo de ativistas anti -alemães próximos de Mussolini apoiava efetivamente um golpe e poderia fazer passar o exército e a marinha italianos para o lado dos Aliados. Dizia-se que Galeazzo Ciano, juntamente com o seu rival exilado Pietro Badoglio, um homem chamado Dino Grandi e uma série de destacados líderes militares que se opunham à guerra, se encontrava entre os membros do partido que conspiravam para destituir Mussolini e implementar a saída da Itália do conflito. Galeazzo, de facto, já contactara secretamente os americanos em 1941, na sequência da entrada da Itália na guerra, propondo «o derrube do Duce e uma paz italiana separada» aos Aliados.28 Hitler ordenou que uma cópia do telegrama decifrado fosse enviada a Mussolini no início de fevereiro. Quando Mussolini o leu, compreendeu imediatamente que Hitler esperava que fossem tomadas medidas.
Em 5 de fevereiro de 1943, um ou dois dias depois de receber a informação secreta intercetada, Mussolini chamou o genro ao seu gabinete. Não houve qualquer preâmbulo. Mussolini ia purgar o seu governo. Todos eram suspeitos. Todos teriam de sair. «O que vais fazer agora?», foi tudo o que Mussolini perguntou. Galeazzo compreendeu imediatamente que estava a ser demitido.
Mussolini apresentou ao seu genro a opção de uma série de outros postos governamentais sem importância, idealmente localizados fora de Itália, numa concessão à família. «Eu [escolhi] ser embaixador de Itália na Santa Sé», registou Galeazzo teimosamente no seu diário. O Vaticano era um país estrangeiro, afinal. «Deixar o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde durante sete anos – e que sete anos – dei o meu melhor», admitiu, «é certamente um duro e triste golpe».
Galeazzo Ciano não era um homem de instintos políticos apurados. Se fosse, teria tido o bom senso de aceitar o conselho do seu sogro e partir de Itália nesse inverno. Se não teve o bom senso de fugir, teve pelo menos o bom senso de se preocupar. Tinha entre os seus amigos mais leais uma jovem chamada Susanna, embora toda a gente lhe chamasse Suni. Era a filha de vinte e um anos do industrial da FIAT Giovanni Agnelli – um nome bem conhecido em Itália – e pertencia a uma das famílias mais abastadas da Europa. Enquanto muitos dos outros amigos de Ciano se afastaram depois da sua despromoção pública, Susanna manteve-se do seu lado. Permanecer -lhe -ia leal mais tarde, mesmo quando passou a ser perigoso ser amiga de Galeazzo e Edda. Susanna Agnelli registou nas suas memórias após a guerra que recordava as suas visitas naquele inverno e na primavera à residência palaciana da família Ciano em Roma. «Galeazzo tinha caído em desgraça e já não era ministro dos Negócios Estrangeiros», recordou. «Andava preocupado, nervoso e envolvido em conspirações, como toda a gente.»
* * *
Alguns dias após a sua demissão, Galeazzo foi novamente contactado por Mussolini. Este queria saber pelo seu genro a resposta a uma pergunta diferente, uma pergunta que deveria ser ainda de mais mau presságio: O conde ainda tinha os seus diários, e esses papéis estavam todos em ordem?
«Sim», respondeu Galeazzo. «Tenho-os todos em ordem, e recorde -se de que, quando chegarem os tempos difíceis – porque é agora certo que chegarão tempos difíceis – poderei documentar todas as traições perpetradas contra nós pelos alemães, umas atrás das outras.»
A resposta poderia ter aplacado Mussolini, mas estava mal formulada para tranquilizar a pessoa que realmente a fizera: Hitler.
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