
O Infarmed aprovou esta segunda-feira o financiamento público do primeiro medicamento com escetamina, um psicadélico, para ser usado em meio hospitalar em adultos com depressão grave, no mesmo dia em que surgiu um documento com as orientações clínicas para o uso de substâncias psicadélicas.
A tentativa de usar clinicamente psicadélicos para o tratamento de condições mentais não é novidade. Mas tem havido sempre algum preconceito. "São analgésicos potentes, alguns até dados em outras áreas de atividade da medicina, até particularmente com animais, como potentes anestésicos. Nos anos nos 60 e 70 foram objeto de grande investigação, mas os investigadores acabaram por abandonar a ideia pela pressão que sofriam na altura, com a chamada contracultura e, portanto, pelo seu abuso e pela sua má utilização", começa por explicar ao SAPO24 o psiquiatra João Curto.
"Esta investigação destas substâncias foi desbloqueada agora, mas durante muitas dezenas de anos esteve associada a umas denominações um bocado pejorativas, até pela utilização ilícita, hoje em dia muito ligadas ao tráfico de estupefacientes. São substâncias que sempre foram comercializadas na rua. Alteram a consciência das pessoas, permitem fazer aquele tipo de viagens que as pessoas com dependência procuram. Alteram, de facto, a psique, o estado mental da pessoa, e provocam aquelas visões, aquelas percepções alteradas, um estar fora da realidade", nota.
E é precisamente por isto que podem ter potencial para tratar depressões graves, em que o doente precisa de sair de si para perceber o que se passa consigo — mas com acompanhamento médico.
"Com a alteração da consciência, procura-se que a pessoa e o espírito possam abrir mais, digamos, para que a pessoa consiga aperceber-se, embora de uma forma controlada. Psicologicamente, têm de ser acompanhadas de perto nestes tratamentos", justifica o psiquiatra.
Desta forma, o objetivo "é proporcionar a este tipo de doentes uma espécie de abertura da sua percepção mental para que mais facilmente se desinibam e possam expor os seus problemas", mas ao mesmo tempo "evitar problemas com os próprios efeitos da substância".
Em causa está "um tratamento psicológico" que permite que "a pessoa possa romper com as suas defesas e libertar um pouco mais as suas percepções reais, os seus sentimentos vivenciados com dificuldade e, portanto, expor-se mais, conseguir ser conduzido por um terapeuta que tem que estar presente nestas sessões, para evitar exatamente os efeitos nefastos".
"O perfil destes doentes tem de ser altamente selecionado, com especialistas, e as sessões têm que ser muito bem conduzidas por especialistas que tenham formação para esta área", acentua.
Contudo, a utilização de psicadélicos não é uma primeira linha de ataque a situações clínicas como a depressão, mas uma "terceira linha de tratamento, isto é, só se utilizam depois de outros tipos de tratamento falharem".
"Estamos a falar concretamente da depressão, mas talvez possam vir a ser utilizados nas outras doenças, como nas dependências". É preciso ver "o histórico do doente, se já teve tratamentos ou outros que não resultaram, como é que foi, o que é que não resultou", diz João Curto.
Até porque "as depressões moderadas ou ligeiras têm outros tipos de tratamentos que normalmente são utilizados, ou farmacológicos, ou psicoterapêuticos também, ou então os dois juntos, que é o que mais resultado tem dado".
Assim, esta nova hipótese vai surgir apenas em casos muito específicos. "A pessoa tem um histórico em que provavelmente a gravidade das depressões é de tal ordem que a recaída é mais frequente: Normalmente, a utilização de fármacos resulta numa determinada altura, noutra altura já não resulta. Todas estas condições têm de ser avaliadas para que depois se possa promover este tipo de tratamento, se o perfil do doente o permitir".
Já existem psicadélicos a ser usados ‘off label’
Face à decisão do Infarmed, as ordens dos médicos, psicólogos e farmacêuticos juntaram-se ao Conselho Nacional de Ética num grupo de trabalho e apresentaram um conjunto de recomendações para o uso clínico de psicadélicos, defendendo a regulação de psicadélicos em uso clínico, baseados na “melhor evidência científica” com rigor e ética, e a formação específica dos profissionais de saúde.
A exigência é maior porque já existem psicadélicos aprovados no mercado a ser usados sem fundamentação científica. Em declarações à Lusa, Albino Maia, diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Champalimaud, dá o exemplo da cetamina, que está aprovado como anestésico, mas também está a ser usado (‘off label’) para alguns casos de depressão.
A cetamina é um anestésico dissociativo que pode alterar a percepção da realidade, e por isso, para “que demonstre o benefício e o risco dessa substância ativa em determinar a indicação terapêutica”, tem de estar devidamente sustentada pela evidência, defendeu.
“Do ponto de vista da utilização destas substâncias como medicamento, não devemos ter um regime de exceção”, referiu o investigador, acrescentando: “O que estamos a dizer é o que fazer ao abrigo de princípios de precaução quando ainda não há evidências suficientes para as entidades regulamentares se pronunciarem”.
Quais as recomendações dos profissionais?
“O que nos parece essencial é que, para serem utilizadas com fins terapêuticos, estas substâncias têm (…) de ter evidência clínica robusta, evidência científica robusta. Isso ainda não existe, apesar de tudo o que tem sido a investigação realizada”, disse a presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos (OM) na apresentação do conjunto de recomendações multidisciplinares sobre o uso clínico de substâncias psicadélicas, no Auditório da Fundação Champalimaud, em Lisboa.
Manuela Silva manifestou também a preocupação de que, quando forem comercializadas, estas substâncias devem ser enquadradas como medicamentos.
De acordo com Manuela Silva, as substâncias devem estar “enquadradas em legislação e em regulamentação” com informação “muito clara” sobre a sua eficácia e eficiência, bem como o seu perfil de segurança.
“Para que estas substâncias sejam utilizadas na clínica, quando forem, julgamos que o papel dos profissionais médicos é central e têm de ter formação específica e complementar (…) para utilizar estas substâncias”, afirmou, acrescentando que os médicos “são essenciais no processo de tomada de decisões em relação (…) à indicação clínica” na prescrição.
A presidente do Colégio de Psiquiatria da OM reforçou que deve haver contributos para que “a formação dos psiquiatras seja de qualidade”, realçando que a literacia e a informação que a população tem acesso devem ser melhoradas.
Já a bastonária da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), Sofia Ramalho, que interveio por videoconferência, disse reconhecer “o potencial terapêutico” das novas substâncias, defendendo “um caminho pautado pela ética, pela ciência e pelos direitos das pessoas”.
“O uso de psicadélicos não é apenas uma dimensão, um método farmacológico, mas assenta em intervenções médicas e psicológicas bastante complexas e exige uma formação especializada, para que se assuma a responsabilidade profissional dos associados a estas profissões”, observou.
Sofia Ramalho sublinhou que “é necessário salvaguardar a autonomia, o consentimento informado, a dignidade humana”.
“Isso implica estarmos alerta e definirmos regrar para reduzir os riscos, por exemplo, da banalização, da própria mercantilização, e também da desigualdade no acesso à intervenção médica e psicológica, porque este acesso deve ser equitativo e orientado, acima de tudo, para aquilo que é o interesse público”, ressalvou.
Também o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos (OF), Helder Mota Filipe, considerou que, do ponto de vista da utilização clínica, não há “muitas opções de abordagem destas substâncias relativamente ao tratamento de uma indicação terapêutica”.
“A legislação europeia é clara e a legislação europeia aplica-se a Portugal. E diz que qualquer substância que sirva para diagnosticar, tratar ou prevenir uma doença e que atua por via farmacológica, imunológica ou metabólica, não pode ser outra coisa senão medicamento. E portanto, as substâncias psicadélicas atuam desta forma e portanto não podem ser outra coisa senão medicamentos”, destacou.
Sendo assim, segundo Helder Mota Filipe, “há um conjunto de regras” que devem ser aplicadas às substâncias psicadélicas, de modo a promover uma utilização adequada.
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