“As manobras da aeronave realizadas com atitudes de voo pronunciadas a baixa altitude, associadas à falta de treino e qualificação em voo acrobático do piloto instrutor, demonstraram-se fatores-chave para o desfecho do evento”, indica o relatório final do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), a que a agência Lusa teve hoje acesso.
Pouco depois das 15:10 de 09 de junho de 2019, a aeronave ligeira, modelo Bristell, descolou do Aeródromo de Leiria com dois pilotos, ambos de nacionalidade portuguesa, que tinham combinado realizar um voo de demonstração e treino.
O relatório diz que o piloto sentado à direita, de 67 anos, tinha como objetivo demonstrar as características do ultraleve ao outro piloto, de 43 anos, em adaptação e que teria manifestado interesse na aquisição da aeronave ao proprietário, tendo acordado que o negócio seria fechado após o voo e a realização do necessário treino e adaptação.
“A falta de controlo da aeronave pelos pilotos ao realizarem uma manobra não aprovada a baixa altitude” é apontada pelos investigadores como a principal causa para a queda do aparelho, que se incendiou após embater no solo e originou um incêndio na floresta adjacente.
O GPIAAF acrescenta que “uma crença exagerada em torno da performance e qualidade da aeronave terá potenciado o já conhecido excesso de confiança e atitude de invulnerabilidade do piloto”, que demonstrava as potencialidades do ultraleve, o que, segundo os investigadores, terá também contribuído para o desastre.
“O piloto que demonstrava a aeronave evidenciou um comportamento de excesso de confiança na repetida execução de manobras não aprovadas para o modelo de aeronave”, concluíram os investigadores.
Em relação a este piloto, registos a que a investigação teve acesso, revelam que somava, em 23 de julho de 2017, cerca de 216 horas de voo em ultraleves.
De acordo com o depoimento de testemunhas, este piloto “terá realizado um número de horas significativo na aeronave acidentada entre 2017 e 2019”. Além disso, acrescenta o relatório, “o piloto voava há longos anos aeronaves ligeiras, fazendo uso da sua licença com qualificação de instrutor, tendo estado envolvido em alguns incidentes nessa categoria de aeronaves”.
“De registos e testemunhos, a investigação apurou que o piloto esteve diretamente envolvido em diversos acidentes/incidentes no passado, evidenciando desrespeito pelas regras de segurança operacional e atitudes temerárias em voo. Não foi evidenciado qualquer treino acrobático”, sublinha o GPIAAF.
Quanto à experiência do piloto que teria manifestado interesse em adquirir o ultraleve, a investigação teve acesso aos registos pessoais realizados até maio de 2018, data do exame para a obtenção da licença PU (Piloto de Ultraleve), onde totalizava cerca de 45 horas de voo.
A investigação constatou que a sua formação foi efetuada numa aeronave ultraleve avançada (WT9 - Dynamic) e que terá realizado algumas horas de voo entre maio de 2018 e a data do acidente em aeronaves de complexidade e performance inferior à aeronave acidentada.
O GPIAAF concluiu ainda que “foram constatadas discrepâncias nas características físicas da aeronave acidentada, como a massa máxima à descolagem e envergadura, relativamente aos dados fornecidos para obtenção da autorização de voo”.
“Situação que não foi detetada pela autoridade de certificação nacional, à data, o INAC [Instituto Nacional da Aviação Civil]”, frisa este organismo.
O relatório diz também que, embora o aparelho “tenha provavelmente sido operado além dos seus limites de projeto, dados de acidentes ocorridos nos últimos anos com o modelo da aeronave acidentada sugerem que o modelo poderá não cumprir com alguns dos parâmetros de certificação ASTM [entidade de normalização dos EUA] declarados pelo fabricante”.
Investigação apela aos pilotos particulares para que adotem “postura responsável” em voo
A entidade que investiga acidentes aéreos apela à comunidade de pilotos particulares para que adote “uma postura responsável” em voo e pede às autoridades que “atestem e validem” as declarações de conformidade de fabricantes e proprietários das aeronaves.
O relatório do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), a que a agência Lusa teve hoje acesso, refere ainda que a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), entidade de certificação, não detetou “as discrepâncias nas características físicas da aeronave acidentada, como a massa máxima à descolagem e envergadura, relativamente aos dados fornecidos para obtenção da autorização de voo”.
“O processo de investigação identificou um conjunto de fragilidades no projeto, certificação e operação da aeronave. Tais fragilidades devem ser analisadas e tratadas pelos diferentes intervenientes dentro das suas responsabilidades. Não se mostrou eficaz a emissão de recomendações atendendo ao quadro regulatório da atividade e ao tipo de operação, contudo a investigação não pode deixar de comentar e alertar para a aprendizagem que resulta dos achados da investigação nas suas dimensões várias”, lê-se no documento.
Para os investigadores, este acidente “revelou importantes lições a serem retiradas, proporcionando oportunidades de melhoria aos fabricantes, autoridades de certificação e, não menos importante, à comunidade de pilotos para adotar uma postura responsável na operação das suas aeronaves”.
Aos operadores, proprietários e comunidade de pilotos, o GPIAAF sugere que seja feito “um trabalho de desenvolvimento do conhecimento técnico das aeronaves que operam, cada vez mais complexas e com performances não permeáveis a desvios ou a possíveis atitudes de pilotagem irrefletidas”.
Os investigadores apelam a “uma postura de transparência e de parceria com as autoridades no processo de aprovação dos modelos das aeronaves” e a “um respeito absoluto” na sua operação, “cumprindo com as limitações operacionais dos modelos específicos (aeronaves como um todo e seus equipamentos constituintes)”.
Às autoridades que emitem autorizações e/ou certificados de voo de aeronaves é pedido para que, além de trabalharem em conjunto no sentido de uniformizar critérios, “atentem e validem as declarações de conformidade dos fabricantes e dos proprietários, no sentido de garantir que o equipamento está conforme e a operação é realizada debaixo dos pressupostos regulamentares”.
“Uma atitude de cooperação e um papel formativo para com os proprietários e operadores de aeronaves em modelo autodeclarativo é, portanto, essencial, não só à construção de uma confiança mútua, mas sobretudo no apoio técnico aos proprietários, por vezes não totalmente conhecedores das aeronaves que pretendem operar”, defende o GPIAAF.
Quanto aos fabricantes, estes “são encorajados a estudar em detalhe as características dos seus produtos e a divulgar de forma clara pelos operadores e proprietários as limitações operacionais determinadas nas fases de ensaio e teste”.
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