São os próprios moradores que descrevem como “um buraco” a Quinta do Lavrado, bairro no centro de Lisboa onde foram realojados no início do século, queixando-se de que ali tudo falta e pouco funciona.

Portas arrombadas, elevadores parados, campainhas arrancadas, caixas de correio abertas, quadros elétricos ao alcance de crianças, falta de iluminação e poças de água nos corredores e escadas dos prédios. A lista de problemas é longa em cada um dos dez lotes da Quinta do Lavrado, que, para quem lá mora, será sempre, como antes, a Curraleira.

É um bairro literalmente sem saída, porque ficou por fazer a cobertura de uma estação de tratamento de águas residuais (etar) a céu aberto, mesmo ali ao lado, por cima da qual passaria o resto da estrada que permitiria circundar os prédios e regressar à rotunda que liga as Olaias e a Penha de França.

Quando chove, a água também não tem para onde correr, os esgotos estão entupidos. Agora, o rego que ali corre está seco e ocupado por lixo.

“Deixaram-nos aqui num buraco”, arremessa Adelino Miguéis, nascido e criado na Curraleira, há 47 anos.

Reconhecendo que o Programa Especial de Realojamento (PER), criado há 30 anos para erradicar as barracas das zonas metropolitanas de Lisboa e Porto, lhe deu a hipótese de mudar para uma casa melhor, Adelino sublinha, porém, que o bairro “já está a ficar muito degradado” e que a manutenção das casas tem sido “zero”.

As entidades competentes, quando aparecem, “arranjam aos bocados”, conta. “Temos de ameaçar que não pagamos a renda para virem cá (…). Depois de umas três ou quatro tentativas, vêm”, relata.

Com três filhas, Adelino lamenta a inexistência de espaços de lazer adequados para crianças: “Elas, brincar, brincam em casa, não gostam de estar aqui na rua”.

Faltam também supermercados. “A gente precisa de coisas e temos de nos deslocar lá acima”, situa, como se vivesse fora da cidade.

Carla Alves foi realojada em 2001, quando tinha 18 anos, e lembra-se de ter achado “maravilhoso” ter uma casa nova. Não levou muito tempo a perceber que os prédios retiravam “liberdade” às pessoas.

“Vivíamos em comunidade, porta com porta, não fechávamos as portas. Se a vizinha precisasse de alguma coisa podia vir, se nós precisássemos íamos pedir. Éramos como uma família, nunca estávamos sós”, recorda.

Com o realojamento, “não houve um cuidado de referenciarem quem é que estava ao lado de quem”, critica, desfiando casos de pessoas que tiveram problemas de saúde e não foram atempadamente ajudadas. “Na Curraleira, era impossível alguém ter passado mal e que o vizinho do lado não detetasse”, compara.

Os habitantes partilhavam alegrias e tristezas e não precisavam de campainhas, chamavam-se aos gritos. “Viveram 50 anos ali e, de repente, são arrancados dali, são colocados dentro de um apartamento, onde têm de subir e descer elevadores que eles não conhecem e não sabem utilizar”, observa. Carla recorda a “tia Aurora”, que “não saía de casa enquanto alguém não a fosse buscar (…), com medo" do elevador.

“Houve um descuidado gigante com essas coisas. Houve pessoas aqui que morreram na solidão”, sinaliza. Talvez isso explique que Carla faça hoje parte da associação de moradores Geração com Futuro, que tenta responder a “uma população um bocadinho desfavorecida” e envelhecida, que precisa de ajuda para tudo.

“Ao contrário daquilo que dizem, que os bairros eram formados por delinquentes e marginais, os bairros começam a ser criados por pessoas que procuram trabalho em Lisboa e depois não têm poder de alugar casa ou comprar casa e começam a construir as casas a partir dos terrenos baldios”, lembra, explicando que havia “mil e uma profissões, o sapateiro, o canalizador, a fábrica do ferro, a marcenaria, o senhor que fazia os chapéus e as malas de cabedal, a costureira, a senhora da lixívia, as hortas, o gado…”.

O vento deixa adivinhar a dureza do inverno e revira o lixo acumulado de quatro dias sem recolha. A “bicharada” abunda, diz quem lá mora.

Ao pátio situado no coração dos lotes, onde fica a creche e os habitantes cultivam umas couves nos canteiros, chega-se por escada ou rampa, mas, para o outro lado, onde fica a paragem de autocarros e os caixotes da reciclagem, já só se passa depois de três ou quatro lances de escadas.

Na meia hora que a Lusa ali passou, dois idosos com muletas e uma mãe com carrinho de bebé mostraram as dificuldades de circulação.

A associação de moradores não sabe ao certo quantas pessoas vivem no bairro, mas, se tivermos em conta que existem, no total, cerca de 230 fogos e que se estimarmos que cada um alberga uma média de quatro pessoas facilmente chegamos perto dos mil habitantes.

Filipa Roseta, a vereadora da Câmara Municipal de Lisboa com o pelouro da Habitação, visitou recentemente o bairro, no âmbito das comemorações do PER. Segundo a associação de moradores, disse que haverá intervenção no bairro, mas não avançou datas. “Veio de surpresa, o que foi bom, porque, quando anunciam as visitas, nos dias antes há funcionários da junta por todo o lado”, nota Carla.

Os prédios têm rachas visíveis a olho nu e João Raimundo, também da associação de moradores, está preocupado com o desabamento de uma das arribas. “Qualquer dia temos o muro do cemitério [do Alto de São João] cá em baixo”, antecipa, frisando que o caso “já foi referenciado” às autoridades, que “não tomam medidas”.

As reuniões com a junta de freguesia e a Gebalis, empresa responsável pela gestão da habitação municipal, são mensais, mas “em vão”, porque raramente se traduzem em ações. “Estão a esquecer-se da gente aqui, no buraco”, diz também.

O urgente, para João, “era porem os elevadores a trabalhar, porque há pessoas que não saem de casa há seis, sete meses, porque não conseguem descer as escadas de um sexto ou de um sétimo andar até cá abaixo”.

Morador no bairro desde que nasceu, há 54 anos, começa por reconhecer que tem hoje “melhores condições”. Mas “falta muita coisa”, diz, sublinhando a falta de manutenção dos prédios e de acessos para pessoas de idade ou em cadeiras de rodas. “Isto está construído aqui há 23 anos e nunca levou uma intervenção”, sublinha.

Nos prédios faltam peças, de lajes a corrimãos, e a iluminação pública está na escuridão. O único comércio é um café e “muitas” das lojas cedidas à junta de freguesia (da Penha de França) estão fechadas. A associação de moradores não sabe porquê.

Os habitantes do bairro aproveitaram um terreno baldio para instalar duas dezenas de pombais. Apesar de terem de praticar a columbofilia sem água nem luz, mantêm, assim, aceso o desejo de voar.