Ana devia ter uns sete ou oito anos quando pôs os vizinhos a apanhar lixo com ela. Hoje, continua a mover pessoas para a causa dos resíduos, sendo embaixadora do movimento Lixo Zero Portugal. Ana Milhazes, autora do blogue “Ana, Go Slowly”, percebeu que a reciclagem é insuficiente para realmente deixar uma marca positiva no mundo. Há que cortar no lixo — e cortar já.
“Olhei para o caixote do lixo e pensei 'como é que é possível, eu que até sou muito preocupada com o ambiente?’”, questionou-se. Ana já era vegetariana há vários anos, o que só por si lhe reduzia a pegada ambiental; todavia, no início de 2016, decidiu que tinha de haver mais alguma coisa que pudesse fazer para diminuir o impacto que tem no planeta.
“Comecei a pensar no percurso todo da reciclagem e percebi que reciclar ainda gasta imensos recursos”, conta Ana ao SAPO24. Intrigada pelo desafio, correu a Internet à procura de informação sobre como podia reduzir o lixo. Foi nessa busca que encontrou Bea Johnson e a sua casa de lixo zero.
“Identifiquei-me totalmente, porque de alguma forma já tinha um estilo de vida muito parecido com o dela, na parte de recusa ao consumo, ter uma vida simples, minimalista — essa parte foi fácil e até fiquei contente comigo, porque percebi que nos últimos anos já não fazia assim tanto lixo porque comprava muito menos, mas depois faltava a parte de reduzir o plástico e substituí-lo por outras alternativas”, explica a também professora de yoga e meditação.
A redução do plástico foi o mais trabalhoso e aquilo que “demorou mais um bocadinho”, obrigando-a “de facto a estudar e perceber” como mudar hábitos há muito enraizados. E com esse processo, nova ideia: “percebi que não havia muita informação sobre o assunto em Portugal e, então, ao mesmo tempo que fazia, ia partilhando aquilo que estava a fazer — foi a partir daí que surgiu a ideia de criar o grupo 'Lixo Zero Portugal', para também haver um sentido de comunidade, para as próprias pessoas partilharem entre elas as coisas que iam fazendo no dia-a-dia”.
Quando começou, o Porto era outro: “lembro-me de que dantes, para fazer as minhas compras sem embalagem, a granel, levando os meus sacos e frascos, tinha de procurar por várias lojas no Porto. Quando ia às compras era quase um circuito, perdia mais tempo. Hoje, consigo ir comprar tudo na mesma loja”, conta.
Então, por onde se começa? Ana Milhazes recomenda a recusa ao descartável — sempre. E são coisas banais, das quais ninguém sequer dá conta, explica: “Vou sair de casa e se calhar compro uma garrafinha de plástico; vou tomar café e vão-me dar o copinho de plástico e a palheta para mexer, também em plástico…”, recorda. Por isso, há que “começar logo a recusar isso e, obviamente, ter estratégias”, recomenda.
“Se sei que tomo café todos os dias no meu trabalho e tiro o copinho da máquina, tentar ver se a máquina permite a opção sem copo; se sim, levo uma chávena verdadeira, como costumo dizer”.
Para além de recusar o descartável, há que aproveitar ao máximo aquilo que já anda lá por casa. Antes de se abastecer com marmitas, cantis e demais aparatos, Ana aconselha a “ver primeiro o que já tenho em casa. Não é ir logo comprar tudo novo! Claro que é importante consumirmos coisas sustentáveis, mas o mais sustentável é aquilo que já temos — podem ser coisas muito antigas!”
O terceiro passo está no consumismo. “Só comprar algo quando eu efetivamente de isso precisar. Porque vivemos numa era em que cada vez mais somos muito influenciados pela publicidade, cuja mensagem é sempre a mesma: nós nunca somos suficientes, precisamos sempre ou daquela camisa, ou daquele carro, ou daquele creme para o rosto, ou daquele produto para o cabelo... No fundo, se começarmos a procurar a felicidade no interior, procurar a felicidade também em coisas de que gostamos mesmo de fazer — mais experiências, pessoas, etc. E deixar um bocadinho o consumismo de lado. Só assim, já vamos estar a reduzir muito, muito, muito o lixo que fazemos todos os dias”, diz.
Todo este esforço não é fácil, alerta. Todavia, “hoje é muito mais fácil do que era há três anos.” Para a bloguer, “a grande dificuldade é perceber que a mudança custa mesmo”.
“Ou seja, no fundo temos de pensar que o facto de nós usarmos sacos de plástico, usarmos coisas descartáveis, são hábitos que estão enraizados há muitos anos. Claro que antigamente não era assim, mas estas coisas que fazemos no dia-a-dia estão muito enraizadas. Então, para nós sairmos da norma, temos de fazer um esforço um bocadinho grande”.
Depois, ainda há o tempo (ou a ausência dele). “Como temos vidas muito ocupadas, ainda vai ser mais difícil”, diz Ana. “No fundo, aqui o chip tem de mudar: se realmente quero deixar de fazer lixo, tenho de planear.”
Planear, programar, preparar: “Não me posso esquecer de levar a garrafa de água quando saio de casa de manhã, não me posso esquecer dos sacos quando vou às compras — ajuda muito ter um kit de sacos logo à entrada de casa; ou quem tem carro ter um conjunto na mala do carro; ter sempre meia dúzia de sacos na mochila”, aconselha.
“É no fundo ter estas ajudazinhas para não nos esquecermos. Claro que nas primeiras vezes nos vamos esquecer dos sacos, é normal, não há problema nenhum”, diz. E lembra que convém ir devagar: “Não temos de começar a fazer tudo de um dia para o outro. Às vezes as pessoas vêm ter comigo e perguntam 'Ana, eu agora quero fazer tudo e como é que o faço? É tanta coisa que nem sei por onde hei de começar!' — é tentar uma coisa de cada vez. Obviamente que é urgente fazermos alguma coisa pelo planeta, mas também, acima de tudo, temos de cuidar de nós e sentirmos bem-estar, não faz sentido termos uma vida de esforço e estar-nos a privar de coisas que são importante para nós. Há que tentar ter um equilíbrio”.
Mas, como se convencem pessoas, empresas e governos a balançar esse hedonismo imediato com a sobrevivência vindoura? A imprensa tem tido um papel importante, salienta Ana: “ninguém consegue ficar indiferente quando percebe o que o plástico está a fazer aos animais, por exemplo. Quando vemos vídeos e imagens chocantes, quando vemos que as nossas próprias crianças já têm plástico na urina e nas fezes.”
“Acho que vamos defender sempre aquilo que amamos. Se conseguirmos cultivar nos outros este amor pela natureza, perceber que a natureza nos faz bem”. E essa ideia surgirá, acredita Ana Milhazes, se o contacto com o natural for reforçado: “em vez de aos fins de semana irmos para centros comerciais, começarmos a passar tempo na natureza, ir para a praia, fazer piqueniques... Acho que se as pessoas cada vez mais tiverem tempo para fazer isso, vão defender muito mais a natureza e vão cuidar do planeta”.
É aqui que entram as empresas e os governos: “ao nível das empresas, ter se calhar um horário mais flexível para que as pessoas tenham este tempo livre; a nível dos governos, incentivar muito mais os comércios que são sustentáveis, como as lojas a granel, ou empresas que vendam produtos sustentáveis, do que as outras”, recomenda.
Depois, àqueles que já têm vontade de fazer alguma coisa, cabe-lhes insistir: “estar sempre a enviar emails — nem é muito a reclamar, mas mais a sugerir: vejo uma coisa que não está bem, tiro uma fotografia e envio. No fundo, acho que vão ser estas pessoas com esse bichinho do ativismo e de vontade de mudar que vão também incentivar e puxar as outras e incentivar os governos e as empresas”, acredita.
“No fundo, é ser chatinhos e persistentes: querer mudar, ter este sentido de eu quero mudar, quero deixar uma pegada positiva no mundo.”
Mundo que, apesar de tudo, ainda vamos a tempo de salvar. “Estamos quase a passar a margem para deixar de ter tempo. Todos os dias vão saindo notícias e estudos científicos que nos dizem que já não temos muito tempo — para agir tem de ser já e tem de ser de uma forma radical”, lamenta.
“Às vezes era isso que gostava de dizer às pessoas quando acabo uma palestra: saiam daqui e vão fazer já tudo o que eu faço, mas sei que na prática isso não ia ser possível; as pessoas até podiam tentar um dia ou dois, e depois iam desistir. Então, mais vale fazerem uma coisa de cada vez e a longo prazo continuarem, do que de facto tentarem fazer tudo e depois não o conseguirem”, afirma.
A portuense esteve no final de abril na Casa da Música na National Geographic Summit Junior para partilhar algumas destas ideias e dicas com os mais jovens, para que comecem desde cedo a reduzir o desperdício. “Temos de começar já hoje: mesmo que seja uma coisa pequenina, o importante é começar já hoje”.
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