É alentejano e foi presidente da Câmara Municipal de Moura entre 2013 e 2017, ano em que decidiu não se recandidatar e a CDU perdeu o município para o PS, o que se repetiu este ano, por apenas 94 votos.

Insiste que é um engano chamar interior a concelhos que ficam a cerca de duas horas de carro de Lisboa, tão errado como acreditar que medidas como a devolução de parte do IRS ou a redução da taxa de IMI podem ajudar a fixar população nas zonas mais afastadas do litoral. Para Santiago Macias, a chave está no investimento que o governo tem de fazer em infraestruturas que deem qualidade de vida a quem decide viver e trabalhar longe das grandes áreas metropolitanas.

Queria ter seguido Comunicação Social ou Cinema, mas a família não esteve pelos ajuste, e acabou por se licenciar em História, na vertente História de Arte. É, desde abril, diretor do Panteão Nacional - monumento que visitou pela primeira vez em miúdo, em 1974.

E foi ao longo de uma visita guiada ao SAPO24, primeiro, e no seu gabinete com vista privilegiada sobre Lisboa e o rio Tejo, depois, que decorreu esta conversa.

Depois da homenagem recente ao embaixador Aristides Sousa Mendes, em breve será o escritor e diplomata Eça de Queiroz a ocupar lugar no Panteão Nacional. Depois dele, restam apenas três arcas tumulares vazias. A escolha dos nomes "panteonáveis" está longe de ser pacífica e cada geração promete lutar pelos seus. Mas há soluções, como acrescentar uma cripta ou até devolver aos Jerónimos alguns homenageados mais antigos.

Amante de fotografia e de livros, Santiago Macias promete para o próximo ano um livro com as memórias de um presidente de câmara, uma série de 250 crónicas com um máximo de três páginas cada em que descreve a sua experiência: "Uma Aventura na República Autárquica", assim se deverá chamar.

Uma entrevista ao militante número 220346 do Partido Comunista em que se fala de arte, do estado da arte, de política, da Assembleia da República e "um indivíduo de que não digo o nome", entre outros assuntos.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Numa entrevista recente, Isaltino Morais, presidente da câmara de Oeiras, disse que não se pode querer a Google em Barrancos e batatas em Oeiras. Foi autarca 12 anos, quatro dos quais presidente da Câmara Municipal de Moura. Concorda com a afirmação?

Efetivamente, não sou muito dessa opinião. Acho que pode haver Google em Barrancos, no Sabugal, em Penamacor ou em Castelo de Vide. Plantar batatas em Oeiras não sei, embora haja uma Estação Agronómica Nacional no concelho, que também tem terrenos agrícolas. Percebo que o Dr. Isaltino defenda a sua dama e uma lógica de trabalho que construiu ao longo de anos no concelho, não concordo é que se concentre apenas e só numa ou duas áreas metropolitanas uma parte substancial dos recursos criando um efeito de esponja. E creio que há um desajustamento em relação ao que no país chamamos, a meu ver erradamente, interior. Estamos numa zona raiana e até Lisboa são cerca de duas horas de automóvel. Isto não se pode considerar interior. Interior será o Novo México que, num país como os Estados Unidos, fica a três horas de avião da costa. Portugal não tem propriamente interior, o que tem é um país que está desequilibrado em termos demográficos, desequilibrado em termos de desenvolvimento e que está concentrado e torno de duas grandes áreas metropolitanas, Lisboa e Porto, além do Algarve. E é isso que é preciso inverter.

"O que o poder central dá aos municípios é, naturalmente, aquilo que é menos interessante, são atribuições rotineiras e de circunstância"

Como se pode inverter?

Tem de haver uma intenção firme do nosso poder central. Os incentivos têm de partir do governo, porque as câmaras municipais, sobretudo as de pequena dimensão, com os orçamentos e a capacidade de decisão que têm não conseguem reverter a situação. E não é, manifestamente, com a criação de medidas fictícias, como a descida da taxa do IMI ou a devolução de uma parte do IRS aos munícipes - uma espécie de Robin dos Bosques ao contrário, que é dar dinheiro aos mais ricos - que se vai fixar a população. Não é por uma pessoa receber mais 100 ou 200 euros por ano que vai deixar de viver no Seixal e ir morar para Barrancos ou Moura. É preciso haver um investimento sério do poder central. Não vale a pena continuar a criar observatórios, autoridades ou unidades de missão se depois não há recursos financeiros ou intervenção política.

Uma das coisas que o governo está a fazer é a transferir competências do poder central para o poder local. Isso é positivo?

Mas qual transferência? Só transferem aquilo que não tem interesse nenhum. Há uma regra básica: o poder não se consegue, conquista-se. O que o poder central dá aos municípios é, naturalmente, aquilo que é menos interessante, são atribuições rotineiras e de circunstância. Há uma imagem que gosto de dar: a última grande intervenção que tivemos no chamado interior do país, ou na zona mais afastada do litoral, foi a que deu lugar ao Douro vinhateiro e à criação de polos industriais na Covilhã. Isso foi feito pelo Marquês de Pombal no século XVIII. É evidente que não podemos reproduzir as condições históricas e económicas do século XVIII - nem o Marquês de Pombal era um exemplo a ter em conta em termos de democracia -, mas precisamos que o poder central intervenha e crie condições. Não é com autoestradas que se resolve o problema, isso é apenas uma forma mais rápida de chegar a Lisboa e ao Porto. É preciso outro tipo de intervenção.

"Polvilhar as localidade de novos equipamentos sem ter decidido o que fazer com os antigos tem um interesse muito relativo, porque estamos a multiplicar despesa e custos futuros"

Em que é que os partidos teriam de se pôr de acordo para fazer uma reforma a este nível?

Tem de haver uma reforma administrativa e a compreensão de que temos hoje ao nível dos municípios mais afastados do litoral perfeitas condições de desenvolvimento e de trabalho. Hoje é possível trabalhar à distância, o teletrabalho e a Internet abrem enormes possibilidades. Mas, se queremos fixar populações, não podemos continuar a fechar escolas, centros de saúde, postos da GNR. O poder central tem de investir neste tipo de infraestruturas, é preciso garantir que para ir a uma consulta de especialidade não tenho de ir a Lisboa.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O que implicaria, para si, descentralizar?

A descentralização implica capacidade operativa, não é afogar as câmaras em matérias cada vez mais burocráticas, com o presidente a desempenhar uma função que não chega ao ponto de ser decorativa, mas que tem uma capacidade de atuação cada vez mais diminuída. Notava isso em Moura; entre as despesas anuais, que eram substanciais, e os compromissos que tinham de ser assumidos, a margem para inovar ou para fazer qualquer coisa de mais ousado era curta. E há uma coisa que temos de pensar de forma muito firme, que é a infraestruturação. Essa foi uma grande preocupação do meu antecessor, José Maria Pós de Mina, que esteve à frente da câmara 16 anos e fez um notabilíssimo trabalho, que tentei continuar. Não podemos levar o tempo todo a descurar aquilo que são as infraestruturas de cada local - e não pode ser só maquiagem, é preciso ir ao fundo. Nem sempre o que é visível é o mais importante. Tivemos como marco a reabilitação urbana, pegar em edifícios abandonados ou sem função definida e dar-lhes uma nova vida. Polvilhar as localidade de novos equipamentos sem ter decidido o que fazer com os antigos tem um interesse muito relativo, porque estamos a multiplicar despesa e custos futuros. Isto vai ser um problema.

Portugal tem ou não demasiados concelhos?

Não sei se se ganha muito juntando concelhos - é pelo que se poupa no executivo camarário? Perde-se em identidade e em capacidade operativa. No Alentejo a maior parte dos concelhos são bastantes grandes: Moura tem mais de 950 quilómetros quadrados, Beja tem mais e mil, Mértola tem mais de 1200. Depois têm pouca população - e uma população envelhecida -, Mértola ter cerca de 6 mil habitantes e Moura tem perto de 15 mil.

"Sou completamente contra os círculos uninominais"

Como é que vê a representatividade desses concelhos na Assembleia da República?

Os círculos eleitorais estão constituídos de acordo com rácios que dão aquele número de deputados por distrito e que tem que ver, em primeiro lugar, com o número de eleitores. É evidente que isto é um círculo vicioso: Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco e Guarda todos juntos elegem menos deputados [15] do que Braga [19]. O que acontece é que quando é necessário um investimento público, naturalmente vai ser canalizado para os sítios onde está a grande massa eleitoral, ninguém quer saber do resto. Portalegre, um distrito enorme, belíssimo, magnífico, elege dois deputados. Beja elege três deputados -  quando eu era jovenzito elegia cinco. Esta perda de influência implica também perda de capacidade negocial.

De tempos a tempos surge a conversa da alteração do sistema eleitoral. Neste momento está na Assembleia da República uma proposta que prevê a criação de círculos uninominais. 

Sou completamente contra os círculos uninominais. Mas completamente.

Porquê?

Porque causa desequilíbrios no sistema de representatividade. É ótimo para criar maiorias absolutas que não o são e prejudica objetivamente os partidos mais pequenos. Sabe que no Reino Unido está ou esteve em estudo a alteração do sistema eleitoral? Agora, claro, nós somos ótimos a imitar. E a querer, à viva força, introduzir supostas modernizações. E para tentações clientelares, sistemas uninominais são ótimos.

"A consciência de classe está mais esbatida e há uma coisa terrível, que é o apagamento deliberado do PC na comunicação social"

Em 2017 a CDU perdeu a câmara para o PS. Como olha para o futuro do partido no concelho?

Ficámos aquém daquilo que seria de esperar e daquilo que gostaríamos, mas nas últimas eleições o PS perdeu a maioria absoluta e ganhou por apenas 94 votos. Temos de continuar a luta e conquistar o futuro, reconquistar os lugares perdidos em próximas eleições.

O Chega tornou-se a terceira força política no concelho, elegendo um vereador - apesar de André Ventura ter falhado a Assembleia Municipal. A CDU está a perder terreno no país em geral e em Moura em particular. Porquê?

O que me interessa, em Moura, é a subida de votação da CDU e a criação para o futuro de uma alternativa. Houve uma clara migração de votos. Ou melhor, duas. Do PS para o Chega - o PS perde um vereador para o Chega. E há a nítida perceção que o eleitorado de etnia cigana votou maioritariamente PS. De resto, constatamos que o proletariado rural e industrial, as duas grandes massas de votantes e de reprodução de uma certa forma de ver o mundo, está em vias de desaparecer. Esse proletariado passou para os call centers, para o trabalho temporário, para as empresas de segurança dos hipermercados... A consciência de classe está mais esbatida e há uma coisa terrível, que é o apagamento deliberado do PC na comunicação social.

Não vejo como. Ao SAPO24 Jerónimo de Sousa nunca aceitou dar uma entrevista, e não foi por falta de pedido.

O "Expresso" tinha este título extraordinário: "Crise política favorece Chega e prejudica PCP". O tema eram os dois deputados que o PCP ia perder de acordo com uma sondagem, mas depois não falava nos dez que o BE ia perder, nos que o PSD ia perder ou que o CDS ia quase desaparecer. Onde é que estão os comentadores do PCP nos órgãos de comunicação social? Agora o Bernardino Soares vai para a CNN Portugal [ex-TVI 24]. Hoje, se não está na televisão, não existe. Chega-se ao ponto de o PCP propor o fim do cartão do adepto e os jornais irem falar com outros deputados. Isto não é normal. A CDU teve autarcas brilhantes, como Abílio Fernandes em Évora, João Saraiva em Mora ou Vitor Proença em Alcácer do Sal, mas isso passa completamente à margem. Os autarcas do PC não precisam de ser estrelas, mas assim também não. A única coisa de que não me conseguem demover é das minhas convicções.

Se são tão brilhantes, por que motivo a CDU perdeu sete câmaras e ganhou apenas uma?

Não me estava a referir concretamente a estas eleições. As eleições não têm a ver só com a competência específica de quem se candidata, muitas vezes tem também a ver com a visibilidade de quem está. O PCP é massacrado sistematicamente na comunicação social, como disse. Que está, maioritariamente, ao serviço de grandes interesses. Porque a Festa do Avante! assim, porque os comícios assado, porque os sindicatos aqueloutro. Nem se dá qualquer visibilidade às iniciativas desenvolvidas; qualquer piquenique do Bloco tem mais tempo de antena que a Festa do Avante! Isto além da promoção de um indivíduo de que não digo o nome, que é uma promoção feita de forma perigosa.

É preferível não falar, é a melhor de ilegalizar?

Ilegalizar? Não, não sou minimamente a favor da ilegalização. Não acho que os partidos tenham de ser silenciados, mas tudo o que o Ventura diz torna-se notícia.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O que faz o PC para anular o discurso do Chega e responder às necessidades das populações?

Não tenho nenhum mandato para falar em nome do PCP. Do que me apercebo, continua a trabalhar em prol das populações. Sem ir atrás de tretas demagógicas e populistas. Fala-se demasiado dessa força política e de quem a lidera. Qualquer declaração merece primeiras páginas e aberturas de telejornais. Como se fosse importante. Não é. Corresponde a uma “correiodamanhização” da sociedade, ao berlusconismo em todo o seu esplendor.

Cerca de 8% da população de Moura é de etnia cigana. Isso é um problema?

A questão que existe em torno da comunidade cigana, e há de facto problemas em parte dessa comunidade, precisa de solução política, não é com violência ou soluções musculadas que se vai lá. E passa, antes de mais, por adotar uma prática que tem a ver com a educação formal. Não podemos continuar a ter pessoas excluídas do processo. O acesso à educação vai ser uma das chaves do problema. Acontece que do ponto de vista social não há contacto regular entre pessoas ciganas e não ciganas, e esse tornou-se um problema para todos em concelhos como Moura, Monforte ou Serpa, onde há uma presença muito forte da comunidade cigana. Este problema é hoje mais visível porque tendencialmente e essa população se fixou, a perspetiva do nomadismo está em declínio. Por isso, tem de haver plataformas de entendimento na sociedade local entre uns e outros, caso contrário teremos uma situação de conflito que, naturalmente, soa muito bem aos partidos extremistas. Cito um filme muito paradigmático do tempo que estamos a viver, "Network", de Sidney Lumet. Uma das personagens, a dada altura, incita as pessoas para irem à janela gritar "estou farto disto e já não aguento mais". Muitas vezes é isto que a população sente. 

Como é que o Partido Comunista entrou na sua vida?

A minha família nem sequer tem tradição de luta política ou militância em qualquer partido, muito menos no PCP. Comecei a ser convidado para participar nas listas da APU [Aliança Povo Unido] em 1985. Em 1989 fiquei fora porque era funcionário da câmara e na altura não se podia, voltei em 1993, ganhei as eleições para a Assembleia Municipal em 1997 - o meu concorrente era o Francisco Moita Flores -, perdi em 2001, em 2005 e em 2009 fui eleito vereador, em 2013 ganhei como presidente. Sempre estive muito próximo daquilo que é a visão de justiça social, de combate pelos mais desfavorecidos que o PCP teve e tem. É um pouco como aquelas uniões de facto que acabam em casamento. Tornei-me militante em 2009, numa fase muito tardia da minha vida. Não faço alarde disso, tal como não escondo. Tive da parte da direção do PCP o maior respeito pelo trabalho que era desenvolvido em Moura e o maior acompanhamento e, ao contrário do que muitas vezes se diz, o PC não dá ordens aos presidentes de câmara, a mim não me deu nenhuma. Claro que discutimos orientações políticas e opções políticas, não é a situação que às vezes vejo noutros partidos, o desrespeito pelas direções, cada um dizer o que lhe apetece. Mas não é por repressão, é porque as coisas resolvem-se em casa. Tive debates com camaradas do comité central a respeito de questões concretas, de matérias em que era preciso tomar opções. E em 2017 vim-me embora por decisão própria, não fui defenestrado ou posto no Índex. Quem esteve em eleições autárquicas não de estar obrigatoriamente sempre na berlinda, senão como é que há renovação? Estamos sempre a dizer que os jovens não se interessam pela política, mas depois não largamos os lugares elegíveis? 

O que espera que venha a acontecer nas eleições legislativas de 30 de janeiro de 2022?

Espero que haja um reforço de votos e de mandatos da CDU. Espero que as forças democráticas tenham uma maioria. Espero que o PS não tenha maioria absoluta e que as derivas demagógicas sejam derrotadas.

A relação das câmaras com os governos depende da cor de quem está no poder em determinado momento ou é indiferente a isso?

Não é indiferente, no sentido em que muitas vezes as coisas não se passam de forma inocente. Quando fui presidente de câmara convidei regularmente membros do governo para virem a Moura inaugurar as feiras de maio, por exemplo, e nunca havia agenda. Quando a câmara mudou, os membros do governo passavam por lá em carrossel, como costumo dizer. E um governo não pode dizer, como já aconteceu, que é uma vantagem as câmaras estarem partidariamente perto do governo. Isso é uma perversão daquilo que é a democracia e a vontade das pessoas a nível local.

Nasceu em Moura. Como era Moura da sua infância e como é agora? O que mudou?

Nasci e vivi em Moura até aos dez anos, no Bairro da Salúquia, onde habitavam três mil pessoas. Depois saí e regressei aos 23 e fiquei até aos 28. A minha relação com Moura foi sempre de ir e voltar. É muito corrente o chavão da terra que era e daquilo que se perdeu; éramos uma boa vila e agora somos uma cidade de quarta ou quinta categoria. Não me revejo nesta visão. De facto, era uma terra muito populosa, como todas as zonas afastadas de Lisboa, mas não considero que se vivesse melhor. Moura tinha um hospital muito precário, hoje tem um centro e saúde que devia ser melhor do que é, mas tem mais vantagem em ter um grande hospital em Beja. Os serviços de saúde são hoje infinitamente melhores do que aqueles que o hospital então proporcionava, estamos a falar de antes do 25 e abril. Nessa altura, uma boa parte da população não tinha saneamento básico, as ruas não eram asfaltadas, a biblioteca que existia era da Gulbenkian e funcionava quatro horas por dia, das 16:00 às 20:00, só havia uma creche, não havia apoio às jovens mães...

"O meu bisavô tinha uma escrita ideográfica"

Como afirmou, isso foi há quase 50 anos, e era assim um pouco por todo o país. Entretanto, as pessoas também se tornaram mais exigentes.

Só posso falar da minha experiência. Este era o padrão das pequenas cidades, encontramo-lo com variações ao longo de toda a fronteira. Hoje, Moura é uma terra bastante agradável. E teve, até 2017, um trabalho muito consequente e sistemático de reabilitação urbana. Os miúdos podem fazer natação, andebol, hóquei em patins, judo, futebol, têm uma escola secundária muito bem apetrechada. A vida antes era muito mais contida e modesta do que é hoje. Eram raras as pessoas que se formavam e mais raras as da classe popular ou de baixos recursos que iam além do quinto ano; fazer o sétimo ano era excecional, ir para a universidade impensável, ainda mais em famílias como a minha, que era igual a tantas outras. A minha avó materna era analfabeta. Os meus bisavós eram pessoas rurais, que nunca tiveram oportunidade de ir à escola. O meu bisavô tinha uma escrita ideográfica. Ponha-se lá no papel de alguém que é criado numa herdade e a quem mandam fazer as compras, dois quilos de café, três quilos de açúcar, um quilo de massa... Dão-lhe uma lista e o que é que faz? Então ele criou um esquema de tracinhos, de setas e de bolinhas, cada símbolo representava um produto. Foi nesse ambiente social que nasci.

Mas tem boas recordações de infância...

Tenho muito boas recordações de infância. As recordações de juventude são fracamente menos interessantes: vivi em Queluz, passei aí uma parte do liceu, e dessa fase não guardo grandes amizades, apenas dois ou três amigos, não mais. A minha relação continuava a ser com a terra de origem, onde tive o meu primeiro posto de trabalho, em 1986. A câmara de Moura tinha na altura um presidente economista, Lamas de Oliveira, e acreditava que as câmaras se deviam dotar de quadros técnicos, o que nos anos oitenta não era muito vulgar - podiam ter um engenheiro ou um arquiteto, agora, um historiador, para quê? Rapidamente fui desviado para chefe da divisão social-cultural, uma experiência traumática aos 23 anos. Mas deu-me bastante calo, todos os funcionários eram mais velhos do que eu, alguns muitíssimo mais velhos. Para chefiar uma divisão assim tive de me incorporar. Depois houve uma mudança política na câmara e as coisas não correram bem. Fui acolhido em Mértola onde me mantive e onde, de alguma forma, me mantenho até hoje.

"Fui parar a História porque tive grandes resistências da família a que eu fosse para Comunicação Social"

Falou na reabilitação urbana, sobretudo no centro histórico. Um dos problemas que muitos presidente de câmara apontam como fator de atraso é a quantidade de organismos público que são chamados a dar pareceres, muitas vezes sobrepondo-se. Concorda?

Tenho essas experiências concreta na reabilitação de um edifício, aquilo que as diversas entidades exigiam conflituava entre si. A Direção-Geral do Património Cultural tinha as suas normas sobre preservação e não destruição disto e daquilo, que colidiam com as necessidades de segurança da Proteção Civil, por exemplo. No caso concreto, para que o processo avançasse - e estavam envolvidas outras entidades, como a Direção-Geral do Livro, a EDP, a Autoridade de Saúde, por exemplo - todos tinham de dar parecer favorável. A questão é que nenhuma recua, porque todas têm as suas regras. Por isso, vejo essa situação com grande preocupação. Quando se está a construir um Plano de Pormenor são tantas as entidades que têm de dar pareceres, sobretudo em zonas sensíveis de reserva ecológica ou agrícola ou de bens patrimoniais, que se torna um trabalho de tricot muito complicado e que consome tempo e dinheiro. Há muito projectos que não passam do papel e nos obrigam a andar em marchas forçadas, como aconteceu no caso da central fotovoltaica ou no caso do Continente.

"Foi uma sorte para muitas gerações de alunos eu não ter sido professor do ensino secundário"

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

É historiador. Porquê História?

Fui parar a História porque tive grandes resistências da família a que eu fosse para Comunicação Social, a minha primeira grande paixão - e que, de alguma forma, se reflete na forma como entendo o meu trabalho e a investigação, que tem de ter sempre uma vertente de comunicação e de proximidade. Mas tinha outra grande motivação e interesse, o Cinema. Queria ser cineasta, o que não anda assim tão longe da comunicação quanto isso. Não sei se teria ou não talento... Mas senti sempre no meu trabalho, e por isso fui para História da Arte, uma grande componente gráfica, de imagem, de fotografia. Preocupei-me sempre em ilustrar o meu trabalho com imagens. É um percurso um pouco feito por exceção, não porque seria a primeira vocação, mas por circunstâncias várias - aliás, como aconteceu em muita coisa na minha vida. Quando fui para História a minha preocupação era ter uma classificação suficientemente boa para me permitir uma série de opções e não ficar dependente de coisas que não queria. A primeira ideia era que poderia fazer carreira como professor - e foi uma sorte para muitas gerações de alunos eu não ter sido professor do ensino secundário.

Porquê?

Porque o ensino precisa de pessoas motivadas, com vocação, com entusiasmo e interesse em serem professores e formarem alunos. Os professores têm de ter uma dose muito substancial de paciência, é um trabalho de construção muito lento. Acho que nunca agradecerei suficientemente os grandes professores que tive desde a escola primária. Eu não ia ser um bom professor do ensino secundário, não tenho muita paciência e não tenho vocação - ia gerar aquela imagem de professor de liceu que muitos alunos têm: "Lembram-se daquele tipo terrível?" Ia ser um desses.

Começou em Moura, continuou em Mértola.

Sim, a minha carreira profissional foi em grande medida feita em pequenas autarquias. Várias vezes me disseram que perdi grandes oportunidades por não estar noutros sítios, mas acho que não perdi coisíssima nenhuma. Ainda hoje não sei o que querem dizer com "uma grande carreira", a não ser que devemos tentar fazer na vida aquilo que nos dá prazer, onde nos sentimos realizados e onde conseguimos gerar bom ambiente à nossa volta e dar o nosso contributo. Portanto, não me arrependo de ter sido técnico da câmara de Moura nem da câmara de Mértola, da qual ainda faço parte e à qual devo dos melhores anos da minha carreira profissional - e posso ter de voltar a qualquer momento. Foi com o apoio da câmara de Mértola que fiz a minha tese de mestrado e que fiz o meu doutoramento.

Mas também passou pela câmara de Lisboa, não foi?

Fui para a câmara de Lisboa em abril de 2018, como técnico, e foi-me entregue o triste dossier do Museu das Descobertas. No fundo, o meu papel seria o de operacional, a direção técnica e científica caberia a outra pessoa, de reconhecimento nacional. O modelo parecia-me bem, só que nunca se avançou. Tudo isto acabou numa polémica imensa e a coisa foi morrendo. À boa maneira portuguesa, muita conversa, muitos especialistas, um Benfica-Sporting ideológico e depois nada. Cheguei a fazer uma proposta, mas percebi que aquilo não iria até ao fim. E fui à minha vida.

"As pessoas dizem que os políticos deviam regressar à sua vida, mas quando quis voltar vi-me e desejei-me"

Ocupa desde abril o cargo de diretor do Panteão Nacional. É uma grande mudança?

Concorri para o Panteão Nacional porque depois de 12 anos numa autarquia, dos quais quatro como presidente de câmara, tudo o que possa fazer parece pouco. Ser autarca é a intensidade máxima, não se esqueça que são concelhos muito pequenos, onde toda a gente se conhece e onde a entrega é total. A partir daí gera-se uma coisa terrível, passamos a ter o estigma do antigo presidente. 

Que é o quê, exatamente?

Não nos darem hipótese de fazer coisa nenhuma. Passamos a ter as vazas todas cortadas porque passamos a ser vistos como uma ameaça para onde quer que vamos. Uma potencial ameaça. As pessoas dizem que os políticos deviam voltar à sua vida, mas quando quis voltar vi-me e desejei-me, passei quase quatro anos a fazer a travessia do deserto, a concorrer para aqui e para ali. Continuo a ser técnico da câmara municipal de Mértola, mas estou em comissão de serviço de três anos, renováveis até ao máximo de nove. E acho muito bem, porque as pessoas não devem eternizar-se nos lugares.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Qual é o seu projeto para o Panteão Nacional, que objetivos tem?

Há dois temas distintos, um tem que ver com as estruturas, outro com a investigação e o estudo do monumento, promover a divulgar aquilo que é o conhecimento do Panteão Nacional. Neste momento estou a trabalhar nas cinco teses de mestrado que existem sobre o Panteão. A outro nível, estamos a criar um programa de divulgação cultural que seja consentâneo e adequado à imagem do Panteão. Não me interessa ter aqui uma exposição que seja óptima só porque sim, as coisas têm de ter um ponto de ligação com o monumento, caso contrário não faz sentido.

Por exemplo, pode falar de algumas exposições?

As exposições que vamos ter na sala de exposições temporárias têm esta lógica. Primeiro a do fotógrafo Artur Pastor, que já está patente, do outro lado um quadro da Infanta D. Maria, mulher que manda construir a primeira Igreja de Santa Engrácia, no século XVI, que não chegou a ser concluída, em adoração ao São Vicente e às relíquias de S. Vicente. Não sendo uma obra extraordinária, é importante da nossa pintura maneirista e tem a particularidade de ter sido uma doação do embaixador americano ao Museu Nacional de Arte Antiga, que agora a emprestou ao Panteão. As fotografias de Artur Pastor representam muito bem o país. Certa vez, ainda nos anos 60, quiseram levar uma exposição dele ao Brasil, mas pediram-lhe que retirasse algumas das fotografias - mostravam gente de pés descalços e coisas do género... Ele recusou.

"É uma tradição antiga portuguesa tratar mal as coisas."

Na altura ainda não havia esta mania do politicamente correto... 

Para isso, não contem comigo. Sou um malcomportado, fumo charutos e vou às corridas de touros, e já não tenho idade para estar a levar reprimendas por causa disso. Numa ida aos Estados Unidos, uma jovem disse-me: "Veja lá se não traz nenhuma daquelas suas camisas". Quais camisas, perguntei eu - é que ninguém adivinha, mas ando sempre vestido com camisas com padrões africanos, mesmo quando era presidente de câmara. "Porquê?" "Porque isso é apropriação cultural e no sítio onde vai há muitos jovens africanos". Acabei por lhe mandar uma fotografia de um coreógrafo holandês muito conhecido vestido com um capote alentejano: "Então e esta, não é apropriação cultural?" Tenho mais que fazer.

Falou num quadro emprestado. Os ministérios e a presidência da República podem requisitar obras de arte para os seus gabinetes. Não conheço as regras atuais, mas sei de peças que se perderam ou ficaram danificadas ao longo dos tempos.

É uma tradição antiga portuguesa tratar mal as coisas. Estou a fazer para uma entidade um livro com a identificação de todos os arquitetos que desenharam as suas agências, 173 edifícios feitos de raiz, 140 arquitetos. Foi preciso fazer um levantamento e fotografar os alçados, mas faltam imensos originais, porque não havia inventário e foram-se perdendo e dispersando.

Que outras exposições estão programadas para o Panteão?

A partir de fevereiro teremos uma exposição sobre os panteões de Lisboa e de Paris e lá para o verão vamos formalizar e pôr em prática um acordo com a Culturgest para trazer para o Panteão obras de arte contemporânea que possamos por em diálogo com os panteonatos. Ao mesmo tempo, vamos ter as grandes exposições; a da Amália, já no próximo ano, outra do escultor Leopoldo de Almeida, que tem quatro estátuas no Panteão, e que terá como base os gessos que estiveram na origem do Padrão dos Descobrimentos, que são dele, e que está a ser preparada pela Margarida Magalhães Ramalho.

Quem pode ter honras de Panteão e qual a diferença entre ter cá os restos mortais, como é o caso de Manuel de Arriaga e outros, ou uma placa de homenagem, como é o caso de Aristides? Sei que a lei mudou em 2018...

A lei é clara, hoje é preciso esperar 20 anos depois da morte até se poder entrar no Panteão. A competência é da Assembleia da República, que é também quem decide se essa personalidade tem honras tumulares ou de placa. Depois existe uma comissão de acompanhamento. Atualmente, o Panteão já só tem espaço para acolher os restos mortais de mais quatro pessoas, porque já só há espaço para quatro arcas tumulares.

O que é que isso significa? Porque a Assembleia da República decidiu dar honras de Panteão a Eça de Queiroz, mas há muitos nomes sugeridos por partidos e pela sociedade civil, de Sá Carneiro a Mário Soares, passando por Egas Moniz.

São uma possibilidade, assim a Assembleia da República o determine. Eça de Queiroz virá no próximo ano e, no caso, terá de ser negociada e feita a trasladação. Depois dele, restarão três arcas tumulares. Em tempos chegou a ser proposta e pensada a construção de uma cripta, que é, no fundo o que existe no Panteão de Paris. O governo e a Assembleia da República é que terão de decidir um dia se querem ou não avançar para essa solução ou se preferem uma solução alternativa - ou se, simplesmente, mantêm as 16 arcas tumulares que existem e arranjam uma outra forma de homenagear. Essa é uma decisão que não cabe ao Panteão Nacional, que acolhe e valoriza a obra daqueles que cá estão. Porque não basta colocar a placa ou os restos mortais, é preciso criar momentos de valorização - ainda agora tivemos a segunda de quatro conferências sobre Aristides Sousa Mendes.

Mas as famílias também têm de estar de acordo com a trasladação, não?

Se as famílias se opuserem, não me parece de bom senso que se insista. Muitas vezes pode haver resistências, porque algumas figuras suscetíveis de estar no Panteão não reúnem consenso, estas coisas também dependem das circunstâncias e daquilo que é a sensibilidade do momento. Há decisões manifestamente programáticas. Para não comentar as nossas, que não devo nem quero fazer, dou-lhe o exemplo de Josephine Baker, que foi agora homenageada com honras de panteão em França. É evidente que há uma circunstância política que pesa na sua panteonização - não estou a dizer se merece ou não. É uma mulher negra, muito à frente do seu tempo, livre, artista de variedade, como se dizia, que não encaixava no padrão de senhora recatada que estava em casa. O gesto tem um simbolismo preciso e os panteões estão sujeitos a isso.

Salazar ou Marcello Caetano são "panteonáveis"?

Para mim é impensável, sou um antifascista convicto. Foram figuras que não contribuíram para o desenvolvimento do país, para a liberdade do país ou a sua dignificação. A verdade é que Portugal vivia com grandes manchas de pobreza e essa imagem de subdesenvolvimento que ficou colada ao país. Salazar era um homem que não queria que o país mudasse, queria um país congelado no tempo. Mas não me compete, como diretor do Panteão, discutir os critérios porque está ou deixa de estar este ou aquele, embora tenha a minha posição clara enquanto cidadão. A História Portuguesa tem figuras importantíssimas, para escolher quem fica e quem sai teríamos de ter, eventualmente, um padrão, que é coisa que não existe. Mas o Panteão de Paris também não tem esse padrão, não pensemos que é uma coisa só nossa. Foram sempre honrados naquele sítio, as pessoas sentem-nos como seus. Repare, em teoria podíamos dar honras de Panteão a figuras como Bernardino Machado, o ex-presidente da República que determina que é este o local do Panteão. Está em Famalicão, creio eu. Seria visto como uma afronta. Manuel Teixeira Gomes foi um presidente da República interessantíssimo, com uma vida de escritor, de industrial, de empresário, de diplomata. Um homem fascinante. Mas está em Portimão. Portimão veria com bons olhos que lhes tirássemos um dos seus símbolos maiores? 

É possível retirar alguém do Panteão?

É, em França tem acontecido isso. Mas acredito que há fantasmas que não se devem desenterrar.

Como é feito o financiamento de tudo isto, das exposições, das obras, das homenagens, apenas com receitas de bilheteira? Quantos visitantes tem anualmente o Panteão Nacional?

Antes do Covid tínhamos cerca de 150 mil visitantes, um número considerável. Ainda assim, nada que se compare com os 2 milhões do Castelo de São Jorge. Mas a nossa receita de bilheteira é da DGPC, e acho bem, sou contra a balcanifação dos monumentos, tem de haver um organismo central que trate destas matérias. Mas passamos grandes dificuldades, claro.

Como é a relação com a DGPC?

Pacífica. Isto da bazuca tem o que se lhe diga. Conheço muito bem a administração pública - enquanto estive na câmara municipal tive dois castigos, um foi ter durante 12 anos o pelouro das feiras, não gostando eu de feiras, o outro foi ter o pelouro dos financiamentos comunitários. Foi uma grande escola. Estão a ser feitos contratos inter-administrativos com as câmaras municipais, sendo que a maior parte dessas contratações são da câmara municipal de Lisboa, espero que corra bem, mas temos de ver como é que isso vai ser operacionalizado, porque o tempo é curtíssimo.

Quatro anos para a execução. Porque é que é pouco tempo?

A experiência diz-me que, para obras de menor dimensão, entre o arranque e a conclusão da obra são seis anos. É uma questão aritmética. E tínhamos na câmara um bom departamento de compras, nunca tivemos uma impugnação. É preciso ter um controlo muito próximo sobre todos os processos, saber o que já foi feito, conhecer as prioridades.

Voltando ao financiamento, na sua opinião jantares como o do WebSummit teriam acontecido consigo enquanto diretor ou teria sido contra?

Na altura gerou-se grande polémica, mas aquele não foi o primeiro jantar, foi para aí o décimo. Não acho apropriado. As pessoas não podem andar de copo na mão entre os túmulos a fazer selfies. O Panteão Nacional é um lugar que implica recato, sou muito conservador nestas coisas. Não vou ao ponto de achar que as pessoas não podem entrar aqui de calções - eu acho que não devem, da mesma maneira que não se deve entrar numa igreja de fato de banho -, mas acho que há eventos que se podem realizar no exterior. Por exemplo, outro dia fizeram-me uma proposta da Hermès para filmar um anúncio. Sim, se pagaram quatro mil euros por dia, se me enviarem o guião e uma declaração assinada a dizer que a campanha é internacional, porque se é para a RTP3 às quatro da manhã, não vale a pena. Não tenho uma visão fechada. Nunca mais disseram nada. 

Do que gosta e do que não gosta? Três objetos sem os quais não consegue passar? 

Tenho hábitos relativamente espartanos, portanto, não preciso de muita coisa. Gosto de livros, gosto de máquinas fotográficas - gosto da minha Leica M6, que é a minha peça de estimação -, gosto do meu computador Macintosh e gosto das fotografias da família, que normalmente não tenho no local de trabalho, mas trago na carteira [ri e mostra as fotografias já desatualizadas dos filhos e família, tipo fotomaton].

Do que não gosta?

De Lisboa. A minha opção de voltar tem a ver com razões profissionais, não querer voltar a um percurso que já tinha feito. Mas é uma cidade fria e inóspita - para sentir calor humano vamos ao Porto. Vivi aqui muitos anos, fiz cá o ciclo preparatório e fiquei até acabar a faculdade. Nessa altura Lisboa ainda tinha muitos aspetos de aldeia. O meu pai era funcionário do Tribunal da Boa Hora, ia pela rua abaixo e falava a toda a gente, polícias e ladrões. Lembro-me de um dia de irmos a sair do metro, no Rossio, e ele perguntar a um homem: "Então, que tal vai a vida?" "Eh pá, senhor Macias, não se pode trabalhar. Isto é só mirones". Fomos embora e diz-me ele: "Sabes o que é que aquele senhor faz? É carteirista". Era, claro, um velho conhecido do tribunal. Conhecia-os a todos.

O seu gabinete tem uma vista belíssima sobre a cidade...

É verdade, mas em breve o meu gabinete passará também a espaço de exposição. Vou expulsar-me e à sentaria para o andar de cima e este espaço será convertido em centro de interpretação e espaço expositivo permanente, com as maquetes do Panteão a ser inaugurado, em 1966. Atualmente as pessoas têm de ir lá acima para ver o que quer que seja, o que é um martírio. Quem quer ir ao terraço continua a poder ir, mas as pessoas de mais idade, que queiram apenas visitar uma exposição, escusam de subir tanto [190 degraus], o edifício tem essa limitação, implica disponibilidade física.