Costuma dizer-se que o que vai parar à Internet nunca desaparece, máxima que continua a dar provas de veracidade. Casos de tweets, vídeos ou discursos desenterrados para embaraçar os seus criadores não são um fenómeno novo, mas a politização do discurso - não só nos Estados Unidos da América, mas em todo o mundo ocidental - tem tornado as redes sociais num campo de batalha cada vez mais acirrado. E se qualquer um pode subitamente ver coisas que disse ou fez anos antes reaparecer e potencialmente causar desconforto, essa possibilidade assume ainda mais importância no que toca a figuras públicas, com maior visibilidade e, portanto, mais escrutinadas.
Os mais recentes exemplos desta tendência foram protagonizados por James Gunn e Dan Harmon, ambos figuras de tendências à esquerda, opositores de Donald Trump e responsáveis por algumas das mais populares sagas da pop culture recente: Gunn realizou os dois primeiros filmes dos "Guardiões da Galáxia", Harmon é o criador da saga de desenhos animados "Rick & Morty". O primeiro considerou que o país estava "numa crise nacional com um Presidente incompetente a conduzir um ataque total aos factos e ao jornalismo ao estilo de Hitler e Putin", o segundo disse que o atual presidente dos Estados Unidos da América preferiria votos de Nazis do que de não-Nazis Ambos foram alvo da ira da alt-right, a “direita alternativa”, caracterizada por posições extremistas à direita, por uma forte presença online e por uma adoração a Trump.
Encabeçada pela figura de Mike Cernovich, blogger que esteve no centro da conspiração "Pizzagate" (a qual defendeu uma ligação entre o Partido Democrático e uma rede de tráfico sexual de crianças durante as eleições presidenciais americanas de 2016), a ofensiva passou por recuperar material humorístico comprometedor de ambos homens e repartilhá-lo nas redes sociais, sendo o Twitter a plataforma por excelência para o fazer.
O que alguns jornalistas nos meios internacionais têm apontado é que este é só mais um capítulo de uma história de batalhas online, que decorreu do que aconteceu a Roseanne Barr. A atriz e comediante estava a viver um dos regressos do ano com o retorno da série Roseanne, que originalmente protagonizou entre os anos 80 e 90. Um tweet de teor racista e xenófobo dirigido a Valerie Jarrett (ex-assessora de Barack Obama) bastou para que a ABC cancelasse o programa, que estava a ser um fenómeno de audiências - de nada valeu a Barr admitir que tinha sido “uma piada de mau gosto”, o mal estava feito.
O despedimento de Roseanne Barr não foi obra do acaso - a atriz tem se afirmado como uma figura altamente polarizante na sociedade norte americana, dado o seu apoio a Donald Trump, e o tweet veio na senda de uma série de declarações provocatórias, com esta última a ser tida como espécie de “gota de água”. O Guardian exemplifica como se operacionalizou a reação à medida da ABC - que também é detida pela Disney - com um comentário de um utilizador do fórum 4Chan que escreve de forma clara que é preciso “pensar na Roseanne Barr e todas as outras pessoas muito menos ricas e muito menos famosas que tiveram as suas vidas destruídas. Temos de usar estas táticas contra eles tão eficientemente quanto eles usaram contra nós. É a única maneira de vencer”.
Dois alvos, um despedimento
A primeira vítima foi James Gunn. Cineasta já com uma carreira longa, passou para a ribalta ao ser contratado pela Walt Disney Studios para realizar e adaptar o argumento para os filmes dos "Guardiões da Galáxia". Enquanto se encontrava a rodar o terceiro volume da saga, Cernovich e utilizadores de sites como o 4chan e o Reddit "retweetaram" diversas piadas sobre violação e pedofilia que publicou entre 2008 e 2009.
A reação foi imediata: não obstante os filmes realizados por Gunn serem um fenómeno de popularidade que renderam 1,6 mil milhões de dólares à Disney, o realizador foi despedido. O presidente da Walt Disney Studios, Alan Horn, disse num comunicado que as “atitudes e afirmações ofensivas encontradas no feed do Twitter de James são indefensáveis e inconsistentes com os valores do nosso estúdio, e terminámos a nossa relação de trabalho com ele”. Em resposta, James Gunn apagou os tweets e lançou uma declaração na qual compreende e aceita a decisão, admitindo que as piadas foram “estúpidas, sem piada, altamente insensíveis e certamente não provocantes como gostaria”, considerando também que “não refletem a pessoa que sou hoje ou que tenho sido há algum tempo”.
Neste momento encontra-se online uma petição para James Gunn ser recontratado pela Disney, ele que contou com o apoio de membros do elenco como Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista ou Selma Blair. Contudo, até à data, não se sabe se a gigante do entretenimento, apesar das manifestações de apoio ao realizador, pretende voltar atrás com a sua decisão.
A segunda figura que viu o seu passado voltar para assombrá-la foi Dan Harmon, criador de séries de culto como "Community" ou "Rick & Morty". Mas, se o propósito dos internautas que tentaram prejudicar foi o mesmo, os moldes foram ligeiramente diferentes. Em vez de tweets, foi um sketch que realizou para o festival de comédia Channel 101 em 2009. Filmado como uma paródia da série Dexter, a curta metragem, chamada "Daryl", tem Harmon como protagonista a fazer-se passar por um abusador sexual de menores e a fingir praticar atos sexuais num boneco de um bebé.
Tal como aconteceu com Gunn, foram as comunidades da alt-right que decidiram especificamente atacar Harmon. O produtor apagou a sua conta de Twitter para evitar mais assédio e viu-se obrigado a lançar um comunicado onde admite ter feito uma paródia que “apenas conseguiu ofender”, acrescentando: “rapidamente apercebi-me que o conteúdo era de demasiado mau gosto e eliminei o vídeo imediatamente”. O que o separa do realizador é que a Adult Swim, o canal onde passa Rick & Morty, apoiou Harmon e não cancelou os cerca de 70 episódios que encomendou para as próximas temporadas.
Apuros no outro lado do mundo
Em simultâneo com os casos acima mencionados, também Trevor Noah, apresentador do "The Daily Show", se viu em maus lençóis com um antigo vídeo que reviralizou sob um coro de críticas. Apesar de também ser altamente crítico da administração de Donald Trump, o atual apresentador do programa de notícias satírico viu uma atuação sua de 2013 viralizar e ser alvo de críticas, não da alt-right, mas da comunidade feminista e/ou aborígene australiana.
Nesse vídeo, o comediante faz uma piada onde diz nunca ter visto uma mulher aborígene “atraente”. O que por si só já seria desconfortável, assumiu maior gravidade pelo facto de Noah estar na véspera de uma digressão de stand-up comedy pela Austrália. Os pedidos de boicote seguiram-se, com a condenação pública de figuras como o jogador de râguebi Joe Williams, ele próprio um aborígene, e Anita Heiss, escritora e académica.
Esta não é a primeira vez que o espírito provocador de Noah o atraiçoa. Em 2015, quando estava a ser cogitado para substituir Jon Stewart, surgiram tweets seus cujos alvos das piadas eram judeus, mulheres e ateus. A descoberta do material ofensivo levou a protestos que pediam à Comedy Central para repensar a contratação de Noah, mas a empresa não se demoveu. Mas ao contrário do que fez em 2015, em que respondeu com um tom sarcástico aos seus críticos, Noah pautou-se, desta vez, pela humildade perante os protestos. Num tweet em resposta a Anita Heiss, o apresentador disse "tens razão. Após visitar o museu Bunjilaka da Austrália e aprender sobre a história aborígene em primeira mão, jurei nunca mais fazer uma piada assim. E não o fiz. Certificar-me-ei que esse clip de 2013 não vá ser promovido de forma alguma”.
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