"O exército vem do povo. Esta cartilha de higiene, destinando-se ao exército, - destina-se ao povo". É assim que se inicia a "Cartilha de higiene", uma edição em 1912 do Ministério da Guerra e que ajuda a entender a importância da saúde pública no início do século passado em Portugal.
A cartilha inscreve "muito ensinamento valioso e muito conselho útil" e "não é uma imposição da disciplina, é um dever da humanidade".
Para contextualizar o lançamento da obra, é preciso recuar quase um século para perceber a sua importância. Usando o texto "Factos relevantes da saúde militar nos últimos 200 anos", publicado em Janeiro de 2014 na Revista Militar, percebe-se que os militares tinham alguma importância nestes temas da sociedade.
Desde 1822, data da fundação da Sociedade de Sciências Médicas de Lisboa, esta teve até 1866 uma presidência "preponderantemente de médicos militares, como por exemplo Bernardino António Gomes (filho), médico naval e precursor da psiquiatria portuguesa" que, na década de 40 desse século, irá criar o primeiro serviço de psiquiatria no Hospital da Marinha.
Segundo o autor do artigo, Rui Pires de Carvalho, em 1837 ocorreu a criação do Conselho de Saúde do Exército para, mais de 50 anos depois, ser publicado o livro "Questões Médico-Militares – Estudos Militares sobre Serviços Sanitários de Campanha", do cirurgião de brigada Cunha Belém, e "que lança a questão da necessidade de treino e formação do pessoal de saúde em ambiente operacional".
Os desenvolvimentos na higiene em ambiente militar decorriam em paralelo com o interesse na sociedade civil, devido aos avanços científicos internacionais (que apontavam como os germes podiam fomentar doenças e se reclamavam medidas de saúde pública), fomentado por personalidades como Florence Nightingale (1820-1910) no lançamento dos serviços de enfermagem, o casal Pasteur (dinamização da vacinação, entre outros) ou Robert Koch (1843-1910), na revelação das doenças transmissíveis, como a tuberculose.
"Aplicações da hygiene publica"
Em Portugal, este movimento é dinamizado por Ricardo Jorge. No instituto que agora tem o seu nome e de que foi fundador, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, recorda-se que foi em Junho de 1899 "que se dá a sua consagração em definitivo a nível nacional e a projecção internacional, quando, sem hesitações, chega à prova 'clínica e epidemiológica' da peste bubónica que assolou a cidade do Porto, sendo esta depois confirmada 'bacteriologicamente' por ele próprio e Câmara Pestana".
Mas "as operações profilácticas que liderou no sentido de eliminar a peste, como a evacuação de casas e o isolamento e desinfecção de domicílios, entre outras, desencadearam a fúria popular que, incentivada por grupos políticos, obrigam Ricardo Jorge a abandonar a cidade".
Em Outubro "é transferido para Lisboa, sendo nomeado Inspector-Geral de Saúde e a seguir professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Em 1903, é incumbido de organizar e dirigir o Instituto Central de Higiene, que passaria a ter o seu nome a partir de 1929".
Ricardo Jorge é ainda lembrado pela organização geral dos serviços de saúde pública (Dezembro de 1899) e pelo Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública (1901). É desta "reforma" da Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública e do Instituto Central de Higiene (depois Instituto Superior de Higiene), que se irá "desempenhar um importante papel na educação, formação e investigação em saúde pública, nota Luís Graça na "História da Saúde no Trabalho".
A "preocupação essencial era então a protecção e a melhoria da saúde comunitária (e não propriamente a saúde do indivíduo)".
No referido regulamento, "os serviços de saúde pública tinham por fim 'vigiar e estudar quanto diz respeito à sanidade publica, à hygiene social e à vida physica da população, promovendo as condições da sua melhoria' e abrangiam:
- A defesa contra a invasão das moléstias exótico-pestilenciais (sic);
- A estatística demográfico-sanitaria;
- A prevenção e combate das moléstias infecciosas;
- A salubridade dos lugares e habitações;
- A inspecção das substâncias alimentícias;
- A higiene da indústria e do trabalho;
- A policia mortuária;
- O exercicio médico-profissional;
- E 'quaesquer outras aplicações da hygiene publica'".
É neste contexto que surge, em 1912, a "Cartilha de higiene" do Ministério da Guerra.
O que diz a cartilha militar
O objectivo do manual de saúde, apesar de se apresentar para toda a população, é naturalmente vocacionado para os futuros militares porque, como se explica inicialmente, "para se ser um bom soldado é preciso, antes de tudo, ser-se um homem são". Um doente será um "inútil" e "pode ser prejudicial".
O próprio recrutamento visava "os homens mais sãos e mais fortes", aliciando no entanto que iriam "encontrar no serviço militar melhor alimentação, melhor alojamento e melhores condições de vida", embora estivessem expostos a "um certo número de doenças", nomeadamente contagiosas, como "a tuberculose, a febre tifoide, as bexigas, o sarampo, a papeira (tambem chamada de trasorelho)".
Um homem com estas "moléstias, tudo o que o cerca se torna perigoso" por serem "doenças contagiosas" e "produzidas por germes invisíveis chamados micróbios" e que se espalham "no ar, na água e na terra".
Esses "micróbios, trazidos de fora do quartel por qualquer soldado, fácilmente passam para os seus companheiros de caserna". O potencial de epidemia ("ou andaço") gerava um "estado de abatimento" que podia facilitar o contágio - apesar de se considerar que "quási todas as doenças se podem evitar". Na ajuda aos colegas, os militares não se deviam "entregar a excessos (alcool, tabaco, mulheres, etc.) porque minguam de fôrças e ficam mais sujeitos às doenças".
Apesar do trabalho das autoridades militares, a responsabilidade da diminuição das doenças nesse ambiente dependia "da inteligência e do zêlo do próprio soldado", nomeadamente no seu "asseio do corpo".
"Para ter saúde é preciso ter a pele desengordurada e limpa de todas as impurezas" porque a mesma "está crivada de buraquinhos sem conta, que se não vêem, e pelos quais sai, com o suor, grande parte dos resíduos do organismo humano" - resíduos, aliás, "comparáveis aos que contêm as urinas e os excrementos" e que "são venenos". Explicava-se ainda que os "parasitas, uns pequenos bichos, como os piolhos, as pulgas, o bicho da sarna, etc." não existiriam "se houver asseio na pele".
O asseio do corpo devia ser garantido por "o soldado lavar-se com água fria e sabão", com a cabeça a "ser ensaboada pelo menos uma vez por semana". O banho ao corpo devia ocorrer "todas as semanas ou de quinze em quinze dias", fosse em "tina ou banheira, em tanques chamados piscinas, nos rios, ou no mar".
Este devia decorrer apenas durante 15 minutos e devia-se abandonar o banho com "qualquer arrepio de frio, ou que veja o corpo a cobrir-se de pintas vermelhas". No quartel, à falta do "banho de aspersão", os militares deviam usar o "banho de esponja", em que "qualquer bacia larga, ou alguidar", servia para o efeito. A recomendação era para a vida militar mas devia igualmente prosseguir "mais tarde, na vida de paisano, se tiver apêgo à saúde".
Na lavagem da cara, havia de se evitar o sabão "pegado à pele" muito tempo, porque "apodrece e, em vez de limpar, irrita". Fosse Verão ou Inverno, a água "há-de ser fria".
Cuidado paralelo é salientado para os ouvidos, onde "se produz uma matéria gordurosa, parecida com a cera, que às vezes endurece, tapa o canal e pode chegar a produzir a surdez completa".
Na lavagem da boca e dos dentes, era igualmente recomendado o uso do sabão. "A cária dos dentes pode parecer que não tem perigo" mas "é sempre molesta e desagradável", nomeadamente pelo "mau bafo", mas tendo "maus dentes, deve empregar tambêm na sua lavagem o sabão".
A boca merece outros cuidados e não se devem "levar aos beiços quaisquer objectos que não estejam limpos ou possam ser suspeitos, como bicos de lápis, canetas, palitos já servidos, pontas de cigarro, etc."
Nos pés, e quando o suor "é muito abundante e quando o seu cheiro é fedorento, deve a lavagem ser feita com água e vinagre ou água e aguardente, ou, ainda, com água na qual se tenha deitado um pouco de pó de alumen".
Quanto às unhas dos pés, recomendava-se o "preceito" de serem "aparadas rentes ao sabugo, mas cortadas a direito, em quadrado, porque, se as cortarem em redondo, encravam-se aos cantos e produzem feridas".
As "partes e o ânus" deviam ser lavadas "pelo menos, uma vez por dia", nem que fosse com uma toalha molhada. "Sendo asseado, o soldado corre muito menos risco de apanhar males de mulheres".
Calvície pelo vestuário
Ao nível da roupa, o soldado não devia usar o boné dos companheiros "porque se lhe podem pegar moléstias que fazem cair o cabelo". Mas devia usar "camisa e ceroulas, tanto de inverno como de verão. As ceroulas são úteis contra o frio, protegem a pele e evitam que as calças se sujem por dentro". O soldado não devia usar muito vestuário porque "homem que usa muita roupa é homem para pouco", apesar de não se poderem desabituar "de repente para não os resfriar".
Quanto às meias, que deviam ser mudadas de três em três dias, as melhores cores eram a branca ou a cinzenta, porque "as côres vivas são coradas com tintas irritantes ou venenosas".
O "soldado asseado" devia "mudar a roupa branca pelo menos de oito em oito dias", devendo sacudi-la diariamente.
Alimentação e "abuso da bebida"
A cartilha recomenda três princípios no que concerne à alimentação:
- Comer com regularidade, mas tendo em atenção que "o estomago tambêm precisa de descanso";
- "Comer devagar" porque "quem come sôfregamente come mal mastigado; o alimento aproveita menos; o estômago cansa-se mais", recomendando-se que "quando acabar de comer [o soldado] deve ficar ainda com vontade de comer mais";
- Por fim, comer com asseio e evitar "o mau habito de comer a carne, ou peixe, com os dedos, sôbre o pão".
Após ter-se alimentado, "o soldado guardar-se há de tomar banho", e "não usará de mulher, pelo menos nas primeiras três horas", bem como de beber líquidos ("o que prejudica a digestão"), evitando ainda "exercícios violentos" e "demasiado movimento", excepto "quando as obrigações do serviço o exijam".
A água, que devia ser a preferida dos soldados, só era "de boa qualidade" quando fosse "potável, quer dizer, quando é limpa e agradável à vista, quando desfaz bem o sabão e coze bem as ervas". Na caserna, não se devia beber pela torneira, na qual "ninguêm lhe deve tocar com os beiços, ou com as mãos sujas, sobretudo no bocal", devendo-se usar um púcaro pessoal e intransmissível. Nas marchas, podia usar-se água filtrada por "areia fina, ou do carvão, mas só em casos extraordinários".
A "água fervida" era a bebida recomendada - embora não devesse ser usada a dos poços ou dos pântanos "mesmo depois de fervida" -, enquanto "o vinho, a aguardente, o vinagre, ou o sumo de limão" também se podiam adicionar à água. Já "o vinho fraco e puro", tomado em "dois a três decilitros a cada refeição", favorecia "o trabalho da digestão e reanima o soldado", existindo no entanto o perigo das falsificações e o "abuso da bebida".
"A aguardente, os licores e outras bebidas chamadas brancas, alcoólicas ou espirituosas" só deviam ser tomadas por recomendação médica, embora a primeira pudesse ser bebida no Inverno "em pequena porção".
O "soldado, como todo o homem do campo, tem o hábito de frequentar a taberna". Este "mau costume" constratava com o potencial de que "o soldado ou qualquer homem, em boa saúde, pode beber por dia até sete decilitros de vinho", só então caindo na embriaguez - algo perigoso para a saúde, tanto mais que "a embriaguez repetida pode levar o homem ao crime, à loucura e à morte, em pouco tempo".
O álcool, visto como "prejudicial à pátria e à família", era igualmente olhado como potencial para o aparecimento da tuberculose e incentivava-se mesmo que não deviam existir tabernas junto dos quartéis.
Os filhos dos indivíduos alcoólicos herdam "os mesmos ou peores vícios", sendo "umas vezes, raquíticos e enfezados, outras vezes mostram tendência para o crime, se são homens, ou para a prostituição, se são mulheres, quando não nascem já dispostos para a loucura".
Os tratos com as mulheres, nomeadamente as "matriculadas"
As mulheres eram vistas como as responsáveis pelas doenças venéreas. No capítulo VII explica-se que "o mal venéreo, ou mal de mulheres, é uma moléstia que se péga, em geral, por ocasião do coito".
De forma pedagógica, em sete páginas, a cartilha explica que não é "vergonha para o soldado" ou "nenhum homem" contrair este tipo de doença ("não é moléstia que deva esconder-se, porque precisa de tratamento e de cuidados"). Mas, sabendo que a tem, "comete um crime" se depois "tiver comunicação ou trato com qualquer mulher".
Recomenda-se ainda que "quando, depois de ter tido uma moléstia venérea, o soldado sinta dificuldade em verter águas, logo deve apresentar-se ao seu médico". É ainda recomendado que não se case sem ter procurado um médico, para evitar uma "má acção" e de ter "filhos que veem já desde o berço tocados do mesmo mal, e que ficam toda a a vida aleijados e doentes, se não tiverem a boa sorte, que muitas vezes teem, de morrer à nascença".
A sifílis, ou "mal gálico", quando "mal curado, passa de pais a filhos e herda-se, como se herda o nome, ou como se herdam os bens".
O manual recomendava assim a segurança das "mulheres matriculadas", ao contrário das que "andam às sobras do rancho à roda dos quartéis", sendo "mais perigosas do que todas as outras".
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