Marisa Matias e Marcelo Rebelo de Sousa deram o "pontapé de saída" para a temporada de debates presidenciais. O que os une? O dever constitucional de o Presidente da República ser garante de estabilidade. O que os separa? O papel dos privados na Nova Lei de Bases da Saúde.

Marisa Matias não deixou de confrontar Marcelo com aquelas que considera serem as falhas do seu mandato presidencial, a começar pela promulgação da Lei de Bases da Saúde, passando pela defesa dos direitos laborais, até ao SEF. No entanto, assumiu que muito provavelmente esteve sentada em frente do próximo Presidente da República e que "essa questão não é tabu".

Marcelo recusou o favoritismo, desvalorizou as sondagens que o empurram para mais cinco anos em Belém — "o eleitorado é livre até ao último instante" —, mas nunca sentiu necessidade de partir para o ataque. Jogou à defesa, foi sempre cordial e assumiu a sua simpatia pela dirigente bloquista.

Sobre a eventualidade de se verem a votar um no outro numa segunda volta, Marisa Matias diz que só concebe um cenário em que tal fosse possível [não o enumera, mas tudo indica que poderá estar a referir-se a uma segunda volta entre André Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa]. Já Marcelo, sem fechar a porta, diz que tudo iria depender dos candidatos em corrida.

Quando em tom de provocação lhe perguntam se há no CDS e no PSD quem tome sais de frutos para votar nele, respondeu que na falta do candidato ideal há o candidato possível.

Marcelo teve ainda tempo de ser "notícia" neste debate ao anunciar — enquanto Presidente e não enquanto candidato — que pretende renovar o estado de emergência com "o mesmo regime" por oito dias já que não há dados suficientes relativamente ao período natalício, dando tempo para "encontrar uma solução que aponte para um mês".

  • "Acho que provavelmente o próximo presidente está à minha frente e acho que essa questão não é tabu" - Marisa Matias
  • "As eleições são assim (...) normalmente vota-se no possível. As pessoas escolhem não o ideal, mas aquele que é melhor entre os possíveis" - Marcelo Rebelo de Sousa.
  • "Eu não estou a disputar a liderança do Bloco, acho que ela está bem entregue" - Marisa Matias

Sobre o Serviço Nacional de Saúde

É aqui que eles mais divergem. Marisa Matias considera que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa devia ter ido mais longe no que diz respeito ao Serviço Nacional de Saúde, estando em causa o papel dos privados na nova Lei de Bases da Saúde, promulgada em agosto de 2019.

A candidata a Belém considera que houve um "desvirtuar" daquilo que era a proposta de António Arnaut e João Semedo, nomeadamente no que diz respeito aos termos em que o setor privado e social é envolvido, e que está previsto no contestado decreto-lei n.º 23/2020.

"A lei de bases da saude prevê que os privados possam ser envolvidos na resposta à crise, mas é segundo acordo com os privados", critica a dirigente bloquista.

Marcelo diz que "o SNS é insubstituível e crucial na saúde em Portugal", mas assume a divergência. "A proibição [de parcerias publico-privadas] seria excessiva em caso de urgência", mas também não está prevista uma "abertura total".

"O problema surge na aplicação da lei" e lembra que nesta matéria o Bloco ficou isolado no Parlamento, mantendo-se assim possível a realização de PPP apenas com "natureza supletiva e temporária".

Sobre o papel do Presidente no caso de Ihor Homeniuk

Como referido, as "alfinetadas" deste debate estiveram exclusivamente a cargo de Marisa Matias. A começar pela postura do atual Presidente da República no caso de Ihor Homeniuk, o cidadão ucraniano de 40 anos que morreu no aeroporto de Lisboa, alegadamente vítima de agressões por parte de inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

A dirigente bloquista criticou o "silêncio" de Marcelo, nomeadamente na ausência de um contacto com a família da vítima, e o próprio assumiu que a postura que tomou pode ser criticavel, mas defendeu-se dizendo que foi uma "opção de estado". "Achei que não devia ser o Presidente da República a substituir-se ao SEF e a toda a hierarquia do Estado nesse contacto".

Sobre o aval do Presidente ao Novo Código do Trabalho

Mas as críticas não ficaram por aí, a candidata a Belém criticou a postura de Marcelo relativamente às leis laborais, centrando-se no alargamento do período experimental para jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração, de três para seis meses, previsto no Novo Código do Trabalho.

Além disso, acusou Marcelo de não ir "ao encontro dos jovens". "Há muito o discurso de que os jovens não se interessam por política, eu acho que têm tido um contributo extremo", disse, dando como exemplos a causa ambiental, o combate contra o racismo e a defesa dos direitos das minorias.

Uma questão de estabilidade

Estabilidade. Esta foi a palavra de ordem no arranque do debate, quando Carlos Daniel perguntou a Marisa Matias se o Governo de Costa é para durar até 2023 e, por outro lado, confrontou Marcelo com aqueles que o acusam de ser demasiado conivente com o Executivo socialista.

"O papel de um Presidente é contribuir para a estabilidade. Temos as condições para ter entendimentos duradouros e estáveis, nomeadamente à esquerda", respondeu a dirigente bloquista quando questionada sobre se vetaria o Orçamento de Estado caso estivesse em Belém. O OE "não tem nenhuma dimensão inconstitucional. A Marisa dirigente do Bloco e Marisa presidente é uma Marisa que acredita em entendimentos", concluiu.

Já Marcelo assumiu que o papel de um Presidente não é servir de "seguro" para o Governo em funções, mas lembrou que o Presidente "tem de ser um fator de estabilidade" e, nesse sentido, assumiu que "é importante que este governo dure até 2023". Salientando que os "entendimentos são fundamentais", Marcelo lamentou que o atual Orçamento de Estado não tenha tido uma base mais alargada de entendimento, mas disse acreditar que tal poderá acontecer em 2022 e 2023.

Marisa Matias considera que a resposta que estamos a dar atualmente à crise provocada pela pandemia não é suficiente, Marcelo concorda que o país está mais desigual e que era possível ir mais longe, nomeadamente em algumas propostas de natureza social não apenas vocacionadas para suportar a crise, mas para recuperar o país.

Diferentes visões sobre a desigualdade

"E depois do layoff?", questiona o candidato a Belém, salientando a necessidade de medidas que visem não apenas a manutenção do emprego, mas a criação do emprego.

Marisa Matias é mais exigente. Diz que "as desigualdades não são um desvio das políticas deste país, são o centro das políticas que temos tido, são a regra e não a exceção". Assim, defende que é preciso chegar a um entendimento para voltar atrás com todas as medidas impostas pela troika no que diz respeito ao emprego.

"Eu não tenho dúvida que o Presidente tem preocupações sociais genuínas, acho bem que essa dimensão seja introduzida, mas a forma como olhamos para essas preocupações sociais é distinta. (...) O meu modelo de combate à desigualdade prevê acabar com o sistema de privilégios, [e adotar] um modelo de redistribuição que permita às pessoas não estarem numa situação em que não conseguem sair da pobreza".

Sobre o caso do magistrado José Guerra

Puxando o debate para atualidade, Carlos Daniel trouxe para cima da mesa o caso do currículo do magistrado José Guerra.

(A SIC e o Expresso noticiaram na quarta-feira à noite que, numa carta enviada para a União Europeia, o executivo apresentou dados falsos sobre o magistrado preferido do Governo para procurador europeu, José Guerra, depois de um comité de peritos ter considerado Ana Carla Almeida a melhor candidata para o cargo.)

O caso é "lamentável" para Marcelo, que atira eventuais responsabilidades políticas para mais tarde, quando todas as dimensões do caso estiverem esclarecidas.

"Eu quero ainda mais informação, mas o que eu pude apurar nestas 48 horas foi que há aqui um desleixo e um desleixo numa matéria que tem projeção internacional. É verdade que é um desleixo numa nota interna, pode não ser um desleixo decisivo naquilo que foi a posição de quem acabou por optar, mas que é lamentável", criticou o Presidente da República.

Já para Marisa Matias o caso "grave" e não lhe merece muito mais do que uma frase:

"É obviamente uma situação muito grave. Não consigo encontrar uma razão para se mentir em currículos. A única razão é para ser apanhado porque inevitavelmente é o que vai acontecer. Acho que se deve exigir esclarecimentos, mas gostava de ter ouvido a senhora ministra para poder falar com mais conhecimento de causa", criticou Marisa Matias.

Marisa Matias foi a única a partir para o ataque, lançando temas concretos para o debate e expondo divergências. É verdade que as probabilidades não estão do seu lado nesta corrida a Belém, a própria o assumiu, dando-se por vencida, o que deixou Marcelo na mais confortável das posições. Se o panorama fosse 50/50, se o eleitorado estivesse dividido entre os dois candidatos, a noite teria sido da dirigente bloquista — isto assumindo que Marcelo manteria a mesma postura apaziguadora e até condescendente se o contexto fosse outro. Será?