David Schurmann, o filho do meio, recorda a forma como embarcou na primeira viagem. Estávamos em 14 de abril de 1984 quando os pais, Vilfredo e Heloísa Schurmann, ele consultor financeiro, ela professora de inglês, então com 39 e 37 anos, desafiaram os três filhos — Wilhelm, David e Pierre, de 7, 10 e 15 anos — a partir de Florianópolis, no Brasil, a sua terra natal, para fazer dos oceanos o um lar e, claro, uma salda de aula. Juntos, embarcaram numa volta ao mundo a bordo de um veleiro. Durou 10 anos.
“Um menino de 10 anos a entrar num barco é uma grande aventura", recorda David Schurmann. "Os livros que lia, Moby Dick, Júlio Verne, eram sobre mar. Ao fim de quatro anos, comecei a ver aquele modo de vida como normal”, admite.
“E os meus pais foram inteligentes, usaram um 'truque'. Eles nunca disseram que nos iam levar com eles. Eles sempre nos incluíram no planeamento. Nós, os filhos, não mandávamos nada, mas eles quiseram integrar-nos e estavam sempre a perguntar o que achávamos. Quando embarcámos, estávamos prontos”, recordou em conversa com o SAPO24.
Depois, “fui o segundo filho a 'saltar do barco'. Entrei com 10 anos, vivi seis anos no mar e saí na Nova Zelândia onde fui estudar cinema. O meu irmão mais novo ficou os 10 anos, não teve escolha. O mais velho saiu antes de mim, nos Estados Unidos da América”.
Está feita a introdução. Cineasta de profissão, velejador de paixão, cidadão brasileiro e do mundo, David Schurmann, de 47 anos, esteve em Lisboa durante a Conferência dos Oceanos da ONU. À margem do evento, numa apresentação para empresas e empresários brasileiros radicados em Portugal, abriu o livro de uma vida feita a bordo e apresentou o novo projeto familiar. “A Voz dos Oceanos” (Voice of the Oceans) coincide com a quarta viagem de circum-navegação dos progenitores, que “vivem” no mar há 38 anos. E também agora são acompanhados pelos filhos, seja por mar ou por terra.
O novo desígnio dos Schurmann é um grito de alerta contra as marés de plástico em todos os cantos e recantos aquáticos do planeta. A bordo de um veleiro de 24 metros, a epopeia iniciada em plena pandemia, a 29 de agosto de 2021, irá percorrer 45 mil quilómetros e 65 destinos internacionais até dezembro de 2023.
A longa jornada, com mais de dois anos de duração, não é indissociável do ADN da família Schurmann, em especial de Vilfredo e de Heloísa, âncoras deste modo de vida que transformou a terra num local de passagem.
As três viagens pelo mundo
Antes de aprofundar as razões que o trouxeram a Lisboa, David relembra a primeira aventura náutica. “Quando desembarquei na Nova Zelândia, a minha mãe ainda hoje o diz, o mais difícil verem-me a ficar pequenininho no horizonte enquanto a casa (o barco) ia embora. Normalmente são os filhos a saírem de casa, não a casa a ir embora”, sorriu.
Em terra, bateu de frente com uma nova realidade. “Quando fui fazer a faculdade fiquei chocado. O que mais custou habituar à vida normal é nunca ter tido rotina”, confidenciou.
As relações afetivas também não são as mesmas de quem cresceu com os pés assentes na terra. “Tive anos a fio de relações efémeras. São rápidas, profundas e com muita liberdade. E você pergunta: isso é frio? Não, depende da autoconfiança que você tem. As pessoas podem viver na mesma cidade e não se cruzam durante um ano”, comparou.
No mar, diz, emerge um novo sentido da palavra liberdade. “Não se depende de lugares, nem de pessoas”. O desprendimento material é natural. “Se uma coisa vai, foi. Moro em São Paulo há 10 anos e não tenho carro. Vou de Uber ou metro”, exemplificou.
Acrescenta o amor materno ao diálogo. “A minha mãe é a maior mãezona. Mãe galinha. Estava na Nova Zelândia, o meu irmão mais novo na Polónia, e o outro nos EUA, e, ainda assim, sentíamos a rede de segurança, a pressão dela — e não tinha WhatsApp, nem nada”, confidencia. “Ela criou os filhos enquanto velejava pelo mundo”, recorda.
As testemunhas vivas das marés de plástico
“Foi engraçado quando me convidaram para fazer a segunda volta ao mundo (Magalhães Global Adventure 1997, recriação da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães). Era 3h00 da manhã, estava na Nova Zelândia, quando me perguntam: vamos numa outra? E perguntei eu: Quem vai? O seu irmão mais novo não vai, está em competições de windsurf pelo mundo, o mais velho está com o business. Mas vai você, responderam. Fui. Foram dois anos e meio”, resume David Schurmann.
Na terceira volta ao mundo (Expedição Oriente, 2014-2016), David Schurmann integrou a equipa de terra. Cargo que repete nesta quarta aventura global, iniciada em agosto de 2021. “É mesmo por opção”, assinalou.
Ao longo destes anos, a família Schurmann tem sido testemunha da invasão do plástico nos oceanos. “Comecei a ver poluição há mais de 20 anos. Nos lugares mais isolados, em Henderson Island, uma ilha onde não mora ninguém, entre o Chile e a Polinésia. Em 1998, mal chegámos, tirámos 10 sacos de lixo. O lixo vem com a correnteza. Foi um choque”, lembra David.
Em 2015, novo "embate" na Micronésia (West Fayu). Uma manta de plástico cobria a brancura do areal e o azul cristalino da água. “Foi o toque de virada. Aí pensei: necessitamos de dar algo ao Oceano que já nos deu tanto”, conta.
Depois de anos de investimento próprio, ambicionaram algo diferente. “Não podia ser mais um Greenpeace. Éramos testemunhas, havia que mudar a narrativa”, referiu.
O "racismo oceânico"
É então que entra a fundo na “Voz dos Oceanos”, uma expedição assente em três pilares: Educação, Ciência e Entretenimento. “Quero falar para a Dona Maria e para senhor João que não estão nem aí para a questão do plástico e quero contar uma história para eles. Para entenderem. É um grito de alerta, educacional, para o grande público”, explica.
David reconhece o elevado grau de dificuldade na mudança. “Não pomos o ónus no utilizador, como fez a indústria petrolífera ou do tabaco. Necessitamos de educar para a má utilização do plástico. O plástico vai ser eliminado, mas somos responsáveis por ele quando deitamos fora e criamos um passivo para a vida”, frisou.
É então que introduz na conversa Alexandre Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, coordenador da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano. Rosto da equipa e orador na Conferência dos Oceanos, trabalha com o lixo largado no mar “há mais de dez anos, construindo movimentos internacionais que orientam, numa visão geral, os países a lidar com a questão do lixo”, diz.
A sua missão é contribuir com uma visão estratégica. “Fala-se do plástico. Há muitas vezes um uso irracional e temos de racionalizar. Mas o plástico é um produto magnífico para a sociedade, indispensável para muitos”, ressalvou.
Depois, “quando olhamos da perspetiva do Sul Global, o lixo no mar é um problema. Mas é sobretudo um sintoma de uma série de problemas sociais, ambientais e económicos na sociedade. Chama-se pobreza, má distribuição de renda...”, enumerou.
"Isso agrega um outro fenómeno chamado 'racismo oceânico ou ambiental', que é quando os problemas ambientais têm um efeito diferenciado, agravado nas camadas mais pobres da sociedade, que são mais vulneráveis à elevação do nível do mar, a eventos extremos na região costeira que causam deslizamentos de terra e provocam a morte de milhares de pessoas. Isto está relacionado com as mudanças do clima, sim, mas não pode olhar para o lixo no mar desconectado desta questão”, sinaliza.
“A pobreza está muito associada a duas coisas: primeiro, a uma má gestão do lixo e, por outro lado, a usar o lixo como forma de gerar caixa 2 [um segundo rendimento]. O lixo no mar é dinheiro. Os empresários olham para ele como dinheiro, energia e produção de biomassa”, salientou.
Onde é que entra aqui a expedição Voz dos Oceanos? “Ajuda a olhar para isso, mas já a pensar nas soluções e não apenas para meter o dedo na ferida. Vamos ao fundo do oceano, às profundezas. Não é só dizer que o mar continua sujo. Temos de chamar à responsabilidade, enquanto indivíduos e como sociedade”, alertou.
Alexandre Turra, biólogo, crê que é possível, “não de forma pirotécnica ou exagerada”, levar a sociedade e os cidadãos a questionar estas coisas. Acredita igualmente que a “ciência, tecnologia e inovação, tem um papel importante, inclusive para criar empresas pequenas, que vão trazer soluções e compartilhar os benefícios dessas iniciativas económicas”, acrescentou.
Mas, para tal acontecer, de forma a resolver essas assimetrias de rendimentos e riqueza, “a inovação e o empreendedorismo não podem acontecer só no Norte Global, tem de acontecer também no Sul Global”, advertiu, porque, se assim não for, “intensificaremos as disparidades entre esses dois mundos”.
O veleiro Kat em homenagem à irmã
Este grito de alerta da Voz dos Oceanos faz-se a bordo do veleiro Kat. David Schurmann, CEO da Voz dos Oceanos, recua à gaveta de memórias familiares e explica a origem do nome.
“Os meus pais adotaram uma criança seropositiva (com 3 anos). A Kat era filha de um casal, ele neozelandês, ela brasileira. Os meus pais sabiam do HIV e é uma história linda de amor”, relembrou. “Kat morreu há 16 anos. Não sei se tinha coragem de fazer o que os meus pais fizeram. Ela viveu 11 anos connosco e deu uma volta ao mundo” durante a expedição Magalhães, viagem de 912 dias e 32657 milhas (60.481 quilómetros).
A memória de Kat perdura. O veleiro da Expedição Oriente transportou-lhe o nome em cada porto e é esse mesmo veleiro autossustentável, de sete cabines, que faz uso de energia limpa (eólica, hídrica e solar), dotada de geradores de baixo consumo e um sistema de tratamento de águas residuais que chama hoje à atenção para os plásticos nos oceanos, ao sensibilizar pessoas no uso e empresas no fabrico.
A bordo seguem sete tripulantes. Em terra está uma equipa de 15 pessoas (entre cientistas, profissionais de comunicação e jurídicos). Empresas e mecenas ajudaram meter tudo de pé. “40 fornecedores fizeram doações, do aço ao metal, à parte elétrica e muito mais”, conta David. “Reduziu em 80% o custo do veleiro. O valor é de 15 milhões de reais (2,750 milhões de euros), mas pagamos 2 milhões (366 mil euros)”, contabilizou.
“Um camião de lixo jogado por minuto nos oceanos”
O projeto mudou a vida de todos. “Até há 5 anos, viajar pelo mundo era uma aventura. Quando mudámos o rumo, mudamos o propósito”, sublinhou David. Com a Voz dos Oceanos procuram mostrar a possibilidade de “tratar deste planeta água”, assumiu.
“Estamos todos conectados. Quando alguém em Goiana me pergunta: 'o que tenho a ver com o mar?', eu respondo: 'você respira e tem chuva'. Isso deve-se ao mar. Cinquenta por cento do oxigénio (H2O) vem do mar, assim como a chuva para as lavouras. As florestas fizeram esse trabalho há 20 anos atrás”, observou.
A limpeza de praia é mais conceptual. “Tiramos uma tonelada e estão chegando muitas mais. É preciso tirar do mar, mas primeiro é preciso parar de jogar no mar”, disse. “Há 20 milhões de toneladas de plástico flutuando por ano. Conseguimos tirar meio milhão. "É um camião de lixo a ser jogado nos oceanos a cada minuto. São dados científicos. Temos de parar e depois entender como vamos limpar”, argumentou.
“Todos somos responsáveis: governos, empresas e nós. Existe saída e esperança, só necessitamos de entender como agir. É simples, tem de haver vontade”, rematou David Schurmann, o CEO da Voz dos Oceanos.
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