"Os Estados Unidos correm o risco de ter uma ditadura das minorias". Este é para Jorge Fernandes, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o maior e mais imediato perigo para os EUA.
Tudo por causa do desenho do sistema político americano, que tem falhas. A nível nacional, mas também em cada Estado. "Os sistemas eleitorais e as democracias são desenhados para garantir a vontade da maioria", mas, no caso dos EUA, "há uma série de distorções" que "minam as instituições da democracia".
Por isso, "os Estados Unidos precisam desesperadamente de uma reforma institucional que mude um conjunto de regras que, protegendo os direitos das minorias, tornem o sistema mais equilibrado".
A começar pela administração eleitoral. Que, "ao contrário da maior parte dos países, em que é feita por uma entidade independente, nos Estados Unidos é politizada. Isto faz com que os republicanos desenhem o seu mapa eleitoral de acordo com os seus interesses".
E os democratas, não fazem o mesmo? "Fazem, mas em menor extensão, porque os republicanos desenharam uma estratégia ao longo de 20 ou 30 anos. Aproveitaram as regras do jogo, enquanto os democratas ficaram a olhar". Para Jorge Fernandes estas "são técnicas antidemocráticas", já que "não deviam ser os partidos que concorrem às eleições a definir os mapas eleitorais".
E dá outro exemplo: quando Barack Obama quis substituir Antonin Scalia, considerado o mais conservador dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que morreu de repente, foi impedido de o fazer pelos republicanos, com o argumento de que não tinha legitimidade para o fazer por estar no último ano do segundo mandato. No entanto, Donald Trump nomeou e passou uma juíza para o STJ a três meses de novas eleições.
Mas há outro problema, diz o investigador. "É que nos últimos anos os partidos tornaram-se excessivamente rígidos e ideologicamente coesos". "O sistema americano, que é presidencialista - e o presidente é uma pessoa pouco poderosa em matéria de política interna, ao contrário do que aparenta -, está desenhado para precisar de partidos fluidos, para haver alianças constantes entre democratas moderados e republicanos moderados".
"Durante muitos anos, o que moveu os Estados Unidos, o que levou o país a fazer grandes reformas", foi esta flexibilidade. E dá o exemplo do "Voting Rights Act", que em 1965, pela mão de Lyndon Baines Johnson, "permitiu o maior ato legislativo dos últimos 70 anos", dando aos negros os mesmos direitos políticos.
"LBJ fê-lo porque havia uma coligação entre democratas moderados e republicanos moderados que permitiu isso. Hoje, esse sistema está morto". "Apesar de continuarem a existir diversas fações dentro dos partidos, elas radicalizaram-se de tal maneira que fizeram com que o custo para os membros do seu próprio partido ao aliarem-se a outro partido fosse tão alto que ninguém se atreve a fazer legislação bipartidária". Por isso, "as grandes reformas estão completamente bloqueadas, o país está num impasse total".
Jorge Fernandes ainda chegou a acreditar que Joe Biden poderia ser, noutra dimensão, porque as circunstâncias são diferentes, um LBJ dos tempos modernos.
Para já, "mesmo que Biden não faça nada em 2020, cumpriu uma função absolutamente essencial à democracia americana, que foi conseguir derrubar Trump". Que, se não fosse a pandemia, muito provavelmente teria vencido novamente as eleições.
Agora, 2024 será decisivo. "Em 2024 haverá possibilidade política de passar para a fase seguinte, que é pensar no futuro". As ameaças para os Estados Unidos são mais estruturais do que conjunturais.
Apesar disso, as sondagens mostram que a maior preocupação dos americanos é com a economia e a inflação. Os americanos queixam-se, mas não sabem a sorte que têm. "De certa maneira, falta aos americanos o ponto de comparação com o resto do mundo para perceberem o quão sólida está a economia deles. Não é por acaso que o dólar está mais forte do que o euro".
Jorge Fernandes lembra que "a economia continua forte e a inflação já começa a dar sinais de abrandamento". "Felizmente, a economia é muito independente do poder do presidente", apesar de este poder ser beneficiado ou prejudicado em função dos seus resultados. "Os Estados Unidos têm problemas de tal monta que penso que a economia é uma coisa menor", conclui.
As eleições intercalares vieram dar aos democratas algum alívio. Isto, se pensarmos que o partido no poder é geralmente sacrificado nas midterms, e que a popularidade do presidente, segundo as sondagens, estava em níveis perigosamente baixos.
"Trump é um dos grandes derrotados. O meu receio é que a derrota não tenha sido suficientemente forte para o colocar fora de jogo", diz Jorge Fernandes. Tudo aponta para que na terça-feira, 15 de novembro, Trump apresente a sua pré-candidatura às primárias do Partido Republicano do próximo ano. "Onde se defrontará, muito provavelmente, com Ron DeSantis", o governador da Florida.
"Trump tem o incentivo fortíssimo dos processos judiciais em que está envolvido", além dos negócios em queda. "Os processos servem como gás para a sua candidatura", vai dizer que é perseguição política, por um lado, e "vai condicionar o trabalho das pessoas envolvidas", por outro. "Já é complicado investigar um ex-presidente, mas investigar um ex-presidente que volta a estar na política é ainda mais difícil".
Ron DeSantis teve "uma vitória retumbante na Florida e é um governador muito popular. É uma personagem bastante interessante. Quem lhe dá o empurrão que o conduz à vitória é Trump, com um tweet em que o elogia. Foi aí que passou para o palco nacional".
"Ele começa numa toada moderada, e tudo o que sabemos é que com a pandemia mudou completamente, tornou-se um homem bastante diferente. DeSantis, além de ser um solitário, não tem uma grande equipa", e ser "rotulado como louco e extremista, para mim é um pouco um ponto de interrogação. Nunca será uma candidatura absolutamente moderada, sobretudo nas primárias, mas, comparado com Trump, alimentará menos esta ala extremista".
"As elites republicanas não souberam parar Trump a tempo e deviam tê-lo feito", diz o investigador. "Trump é imprevisível" e tanto "acho possível o cenário em que concorre e aquilo corre pessimamente, como também acho possível o cenário em que concorre e ganha".
Depois, a decisão do Partido Democrata. Joe Biden contra Trump, seria "um velhinho contra outro velhinho", mas "um candidato como DeSantis pode levar Biden ao tapete". "Pragmático e carismático, está na flor da idade", enquanto "Biden já não pode muita coisa aos 82 anos", idade que terá em 2024.
Não saber quem é o sucessor de Joe Biden (que poderá ser ele próprio), "fragiliza-o". "Kamala Harris tem conflitos", "sempre foi de uma linha mais à direita dentro dos democratas. E, não vale a pena estarmos a enganar-nos, em 2020 foi escolhida por ser mulher e por ser negra, não foi pelas suas qualidades políticas. Desde o início foi perceptível que não teria grande futuro, rapidamente apagou-se".
Joe Biden ainda tem dois anos para mostrar o que vale. E, afinal, os democratas perderam, mas menos do que o esperado. E os republicanos ganharam, mas não tanto quanto o previsto. O controlo da Câmara dos Representantes está perdido, mas o Senado não - e temos de esperar até dezembro para conhecer os resultados da Geórgia, onde as regras ditam nova volta quando nenhum obtém 50% ou mais dos votos, como aconteceu.
Mas, "os Estados Unidos não estão a precisar apenas de uma cara nova, jovem e energética. Mais do que isso, estão a precisar de mudança substantiva". A conversa com Jorge Fernandes.
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