O projeto-lei em discussão no Senado (câmara alta do Parlamento de Itália) tem como objetivo punir atos de discriminação e incitamento à violência contra homossexuais, lésbicas, transexuais e pessoas com deficiência. Foi apresentado pelo deputado do Partido Democrata Alessandro Zan e aprovado pela Câmara dos Deputados (câmara baixa do Parlamento italiano) no mês de novembro.
Na altura, o episcopado italiano já tinha contestado fortemente o projeto-lei, que levou a um protesto imediato de organizações de defesa dos direitos LGBTIQ+ e deputados.
"Os bispos italianos disseram que a possível introdução de novas disposições penais correria o risco de abrir o caminho a abusos liberticidas e discriminação", afirmaram, argumentando que Itália já dispunha de instrumentos jurídicos adequados.
Mas a história não ficou por aqui. De acordo com o jornal Corriere della Sera, o arcepisbo Paul Gallagher, que está à frente da diplomacia vaticana desde 2014, entregou uma "nota verbal" diplomática — uma comunicação oficial redigida na terceira pessoa, não assinada, mas de modo geral rubricada — à embaixada italiana, no dia 17 de junho, em que se que diz que algumas partes do diploma violam acordos bilaterais entre a Itália e a Igreja.
O Vaticano explica que a legislação põe em causa a liberdade garantida à Igreja Católica Italiana na organização e exercício do culto, bem como a liberdade de expressão e pensamento concedida aos cidadãos e às associações católicas, considerando a Concordata [acordo entre a Santa Sé e um estado].
Segundo a nota, esta lei não isenta as escolas católicas italianas da obrigação de participar em atividades para o Dia Nacional contra a Homofobia, que será fixado para 17 de maio. Diz a Igreja que a proposta ameaça, num sentido geral, a "liberdade de pensamento" da comunidade católica.
A nota diplomática expressa também a preocupação de que a lei possa conduzir a novas ações judiciais. "Pedimos que as nossas preocupações sejam aceites", referiu o arcebispo.
Por sua vez, Pietro Parolin, cardeal secretário de Estado, explicou ao Vatican News que não houve nenhum pedido para retirar o projeto-lei nem pressão indevida sobre o trabalho do Parlamento italiano, mas que apenas foram assinaladas as preocupações quanto à interpretação de algumas passagens, comunicadas aos canais diplomáticos habituais.
"Eu tinha aprovado a nota verbal enviada ao embaixador italiano e certamente tinha pensado que poderia haver reações. Tratava-se, porém, de um documento interno, trocado entre administrações governamentais por via diplomática. Um texto escrito e pensado para comunicar algumas preocupações e certamente não para ser publicado", afirmou.
"Somos contra qualquer atitude ou gesto de intolerância ou de ódio contra as pessoas devido à sua orientação sexual, bem como à sua etnia ou credo. A nossa preocupação diz respeito aos problemas interpretativos que poderiam surgir caso fosse adotado um texto com conteúdo vago e incerto, o que acabaria por deslocar para a esfera judicial a definição do que é crime do que não é — sem, no entanto, dar ao juiz os parâmetros necessários para fazer a distinção", explicou, reforçando a ideia de que "o conceito de discriminação permanece muito vago no conteúdo" da lei.
"Na ausência de uma especificação adequada, corre-se o risco de conjugar os mais diversos comportamentos e, portanto, punir qualquer distinção possível entre homem e mulher, com consequências que podem revelar-se paradoxais e que, a nosso ver, devem ser evitadas, enquanto ainda há tempo. A exigência de definição é particularmente importante porque a legislação se move num âmbito de relevância penal onde, como se sabe, deve ser bem definido o que é permitido e o que é proibido fazer", disse.
À Igreja o que é da Igreja, ao Estado o que é do Estado
A 22 de junho, Alessandro Zan rejeitou os argumentos do Vaticano, dizendo que "o texto não restringe de forma alguma a liberdade de expressão ou a liberdade religiosa".
Por outro lado, a Igreja recebeu o apoio total do líder do partido de extrema-direita Liga Norte, Matteo Salvini, que expressou a sua rejeição da "censura e julgamentos para aqueles que acreditam que uma mãe, um pai e a família são o coração da nossa sociedade".
Entregue a nota, espera-se agora que o assunto seja levado ao conhecimento do primeiro-ministro italiano e do Parlamento. Porém, Mario Draghi — católico praticante — já se manifestou quanto à nota verbal, alertando o Vaticano a não interferir nos debates parlamentares, já que o Estado é laico.
"O nosso sistema jurídico contém todas as garantias para assegurar que as leis respeitem sempre os princípios constitucionais e os compromissos internacionais, incluindo a Concordata com a Igreja", afirmou.
Segundo a Concordata, havendo indícios de que há uma aplicação incorreta do acordo, pode ser acionada uma "comissão mista" para análise do sucedido, de forma a perceber os passos seguintes — mas os especialistas afirmam que ainda é cedo para esta decisão.
Neste sentido, a Igreja tem vindo a defender que a nota entregue funcionou como uma "intervenção preventiva", de forma a fazer refletir sobre o que está em causa. "Uma intervenção posterior, ou seja, uma vez aprovada a lei, teria sido tardia. A Santa Sé poderia ter sido acusada de silêncio culposo, especialmente quando o assunto diz respeito a aspectos que são objeto de um acordo", explicou Pietro Parolin.
Assim, o Vaticano não considera o sucedido como uma "interferência" nos assuntos do Estado italiano — que é laico e não confessional. "Por essa razão, optou-se pelo instrumento da nota verbal, que é o meio próprio de diálogo nas relações internacionais, especificou o cardeal.
"Limitamo-nos a recordar o texto das principais disposições do acordo com o Estado italiano, que poderiam ser afetadas. Fizemo-lo numa relação de colaboração leal e ousaria dizer de amizade que caracterizou e caracteriza as nossas relações. Também saliento que até agora o tema da Concordata não havia sido considerado de modo explícito no debate sobre a lei", referiu. "A nota verbal quis chamar a atenção para este ponto, que não pode ser esquecido. Como também foi apontado por alguns, a questão da liberdade de opinião não diz respeito apenas aos católicos, mas a todas as pessoas, tocando no que o Concílio Vaticano II define como o 'santuário' da consciência", rematou.
Além do Vaticano, também a Conferência Episcopal Italiana se manifestou sobre este projeto-lei, sugerindo algumas mudanças — o que também é pedido no final da nota verbal.
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