“A minha atividade preferida sempre foi espiar.” Edward Snowden é um dos homens mais procurados pelos Estados Unidos da América, país onde nasceu e que serviu — até 2013. O informático, a trabalhar para as secretas norte-americanas, revelou a existência de um sistema de vigilância mundial de comunicações e de internet. Os Estados Unidos acusaram-no de espionagem e apropriação de segredos do Estado.

Foi nessa altura que percebeu como aquilo que fazia na NSA (Agência Nacional de Segurança, ou National Security Agency, em inglês) “funcionava em conjunto, como as rodas dentadas de uma gigantesca engrenagem, para criar um massivo sistema de vigilância global.”

A afirmação é do próprio Snowden, que este ano lançou um livro de memórias "Vigilância Massiva, Registo Permanente", onde conta como “arriscou tudo para expor o sistema de vigilância massivo do governo dos Estados Unidos”.

O sistema dava-lhe “acesso quase ilimitado às comunicações de praticamente qualquer homem, mulher ou criança que à face da Terra usasse um telefone ou um computador”, escreve o ex-espião. “Entre estas pessoas havia cerca de 320 milhões de cidadãos americanos, [seus] compatriotas, que na condução normal das suas vidas quotidianas eram vigiados numa grosseira contravenção não só da Constituição dos Estados Unidos, como dos valores mais básicos de qualquer sociedade livre”, afirma.

O realizador norte-americano Oliver Stone dirigiu um filme em 2016 sobre a sua vida, com Joseph Gordon-Levitt no papel de protagonista. Snowden também surge em “Citizenfour”, o premiado documentário de Laura Poitras.

Mas quem é o ‘nerd’ que denunciou o Estados Unidos?

Espiar

Snowden nasceu em 1983 na Carolina do Norte. Os pais trabalhavam para o Estado, também em segurança. Já o avô também o havia feito. Mas a primeira aventura de Edward no mundo da espionagem foi no próprio quarto: espreitando por aquilo que o pai ia fazendo numa caixa iluminada: um computador.

Foi-lhe crescendo o gosto. Começou a explorar os mundos do online, dessa agradável e bem sucedida “anarquia”, tal qual hoje descreve, esse velho universo onde “o virtual e o real ainda não se tinham fundido e cabia a cada utilizador individual decidir onde acabava um e começava o outro.”

Para Snowden, esse anonimato, do tempo anterior às redes sociais, aos nomes verdadeiros e perfis, permitia falar de igual para igual com especialistas mais velhos — sem que eles desconfiassem da sua idade. Permitia-lhe explorar, esconder os erros, avançar. O anonimato dava liberdade.

Daí que esse mundo fosse mais empolgante que o real: e à medida que o online crescia, as notas do jovem Snowden caíam. Tal, porém, não o impediu de dar nas vistas.

Depois de uma tentativa frustrada de apoiar as tropas norte-americanas no Iraque, em 2004 foi trabalhar para um laboratório universitário, onde a CIA o descobriu. Snowden foi assistente técnico da agência de informações CIA, e trabalhou, depois, quatro anos na Agência de Segurança Nacional (NSA) como empregado de vários fornecedores externos, incluindo a Dell e a Booz Allen Hamilton.

Denunciar

Em 2013, falou com jornalistas sobre todo o sistema. Não é um delator, afirma. Veio apenas alertar, apontar o dedo. Porém, com cuidado: “só revelei os documentos do governo a jornalistas.”

“Acredito, como esses jornalistas acreditam, que um governo pode e deve manter secreta alguma informação. Até a mais transparente democracia do mundo deve ter o direito de considerar matéria classificada como, por exemplo, a identidade dos operacionais dos seus Serviços de Informação, ou os movimentos das suas tropas no terreno”, conta Snowden.

Logo em 2013, em declarações ao jornal 'The Guardian', Edward Snowden disse ter divulgado informações confidenciais do governo dos Estados Unidos motivado apenas pelo desejo de informar o público sobre a "máquina de vigilância em massa" daquele país, segundo contava então a agência AFP.

"Não tenho nenhuma intenção de esconder quem sou, porque sei que não fiz nada de errado", afirmou o Snowden, numa altura em que o governo norte-americano procurava indícios criminais sobre a fuga de informação.

O britânico 'The Guardian', que publicou uma entrevista em vídeo de Snowden na qual mostrava a sua cara, indica que revelou a identidade a pedido do próprio. "O meu único motivo foi o de informar o público sobre o que é feito em seu nome e o que é feito contra ele", revelou Snowden na entrevista.

A CIA já tinha aberto uma investigação sobre as fugas de informação, uma situação que classificou como "angustiante" e que poderia causar "danos enormes" nos serviços de informação dos Estados Unidos, depois da informação 'secreta' ter sido divulgada pelos jornais 'The Guardian' e 'The Washington Post'.

Falar

Esta segunda-feira, Snowden vai participar na Web Summit por videoconferência, uma vez que ainda se encontra asilado na Rússia. Fugiu para Moscovo depois de várias hipóteses de local de abrigo terem sido aventadas —  da América Latina à Islândia. Segundo a organização, vai responder a questões sobre o seu trabalho para a NSA, como ajudou a construir um sistema de vigilância que reuniu milhões de dados de cidadãos americanos e porque decidiu expor publicamente aquilo que considerou práticas ilegais da NSA.

No livro, é particularmente crítico do estado atual da internet, que denuncia como “capitalismo de vigilância”.

“A nossa atenção, a nossa atividade, os nossos lugares, os nossos desejos — tudo a nosso respeito que revelávamos, tendo ou não consciência disso, estava a ser vigiado e vendido em segredo”, afirma. “O novo produto éramos Nós.”

Saudosista, Snowden passa boa parte do livro a lembrar quão bons eram esses tempos velhos da internet inóspita, aonde só alguns chegavam. É como se a democratização do acesso lhe tivesse estragado o parque.

Ao contrário do “vespeiro dos nossos dias”, a Internet de que Snowden tem saudades “era uma comunidade sem fronteiras nem limites, uma voz e milhões, um território comum ocupado mas não explorado por várias tribos que viviam em amizade lado a lado, e cada um era livre de escolher o seu nome e a sua história e os seus costumes”, lembra no livro. Essa internet era “criativa e cooperativa em vez de comercial e competitiva.”

O problema foi a bolha — e o seu colapso, no virar do milénio. “Depois disso”, escreve Snowden, “as empresas perceberam que as pessoas que entravam online estavam muito menos interessadas em gastar do que em partilhar, e que a conexão humana possibilitada pela internet podia ser monitorizada. Se o que a maior parte das pessoas online queria era poder dizer à família, aos amigos, a desconhecidos, o que estava a fazer, e em troca saber o que estavam a fazer a família, os amigos e os desconhecidos, a única coisa de que as empresas precisavam era arranjar maneira de situar-se no meio desses intercâmbios sociais e lucrar com isso.”

A web criativa “colapsou”. “A promessa de conveniência levou as pessoas a trocar os seus sites pessoais — que exigiam uma manutenção constante trabalhosa — por uma página no Facebook e uma conta Gmail”, diz. A partir daí, “nada daquilo que passaríamos a partilhar continuaria a pertencer-nos.”

E os Estados, “gulosos do enorme volume informação”, não se importavam de apoiar e financiar a vigilância. Por isso, denunciou; por isso fala.

“Faz seis anos que dei o passo em frente porque testemunhei o declínio do empenho dos chamados governos avançados por todo o mundo em proteger esta privacidade que considero  — e as Nações Unidas consideram — um direito humano fundamental. Ao longo desses anos, no entanto, esse declínio não fez senão acentuar-se”.