A um mês do início dos jogos no país, a Amnistia lança hoje uma nova petição para que o Qatar e a Federação Internacional de Futebol (FIFA) assumam responsabilidades na compensação dos danos causados às famílias das vítimas e aos trabalhadores que sobreviveram a acidentes de trabalho, na grande maioria migrantes oriundos da cordilheira dos Himalaias.

“O balanço que fazemos é que nada tem sido feito de muito significativo”, afirmou, em entrevista à agência Lusa o porta-voz da Amnistia Internacional em Portugal, Pedro Neto, denunciando situações de salários em atraso, ou que “não são pagos de todo”, e de recusa de dias de descanso aos trabalhadores.

“As condições de trabalho inseguras persistem até hoje”, atestou Pedro Neto, sublinhando os entraves colocados à mudança de emprego, “quer quando as entidades empregadoras ficam com o passaporte dos migrantes”, quer através de “outras formas que exigem autorização”.

Num comunicado que lança hoje, a nível global, a Amnistia Internacional reconhece que o país adotou alterações à legislação laboral, no âmbito dos compromissos exigidos para a realização do Mundial, mas considera que as mudanças são insuficientes e estão por concluir, a um mês do início da competição.

“Também há uma coisa que ainda não foi feita, que é uma investigação que tem de ocorrer sobre a morte de milhares de trabalhadores ao longo da construção dos estádios e de outras infraestruturas”, sublinhou o diretor executivo da AI em Portugal.

A Amnistia tem já a correr uma petição (PayUpFIFA), inserida numa campanha global promovida por várias organizações de defesa dos direitos humanos, que reclama uma verba de 433 milhões de euros para um fundo destinado a apoiar as famílias dos trabalhadores que morreram e aqueles que sobreviveram a acidentes de trabalho, durante a edificação do mundial.

“Estimamos que a FIFA vai arrecadar muito mais em receitas deste torneio. Estimamos 5,9 mil milhões de euros. É bastante mais do que aquilo que estamos a pedir que devolva aos trabalhadores, ainda que a FIFA possa dizer que não tem responsabilidades nas construções porque não foi o dono das obras, foi sim o governo do Qatar. No entanto, foi a FIFA que se predispôs a realizar o mundial naquele país, tendo conhecimento dos problemas relativos às condições de trabalho dos migrantes, porque não é uma coisa que começa com a construção dos estádios, já existia muito antes!”, justificou Pedro Neto, para quem a Federação Internacional perdeu “uma excelente oportunidade” para pressionar o Qatar a governar de uma forma “mais respeitadora dos direitos humanos”.

Além dos problemas relacionados com os trabalhadores, há também “as questões de igualdade de género”, sustentou.

Os migrantes, oriundos de países como o Bangladesh, o Nepal, o Sri Lanka e outros, sobretudo Estados da Ásia, têm facilidade de entrar no Qatar, devido à falta de mão de obra num país com menos de três milhões de habitantes. O problema, segundo o responsável da AI, é sair: “Não conseguem ir visitar a família, têm muitas dificuldades — quando recebem o salário — em mandar dinheiro à família”.

De acordo com Pedro Neto, uma sondagem feita aos adeptos de futebol em 15 países, revelou que a maioria concorda que a FIFA indemnize os trabalhadores. “73% dos adultos concorda que a FIFA deve usar parte das receitas do campeonato para indemnizar os trabalhadores”, referiu o porta-voz da AI, indicando que 67% dos inquiridos — num universo de quase 20.000 pessoas — quer ver as associações nacionais de futebol a manifestarem-se publicamente sobre as questões de direitos humanos associadas ao Mundial do Qatar, mesmo que essa posição implique “ir contra a FIFA”.

Quando surgiu a polémica em torno da organização do evento no Qatar foram assumidos compromissos nesta área, mas “todas as mudanças foram muito lentas”, observou Pedro Neto ao referir-se às alterações legislativas promovidas pelo Governo para garantir “mais justiça” nos direitos dos trabalhadores.

No documento que lança hoje, a nível internacional, a Amnistia faz menção a vários casos concretos, através de relatos de trabalhadores e familiares.

Um dos desses trabalhadores, Joshua [nome fictício], que desempenhou funções como segurança, deslocou-se do Quénia para trabalhar no Qatar, de onde saiu recentemente antes de terminar o contrato, devido às condições de trabalho. Contou à Amnistia que era insuportável continuar a trabalhar numa empresa onde esteve durante quatro meses.

Em todo aquele período, relatou, viveu “sobrecarregado de trabalho”, apenas teve dois dias de folga e os atrasos no pagamento dos salários eram constantes. “A empresa reteve o meu visto, de tal forma que não posso voltar (para o Qatar) se conseguir emprego noutra firma”, explicou.

A Amnistia sublinha que a morte de milhares de migrantes na última década continua por explicar, avançando que pelo menos umas centenas se deveram ao trabalho sob intenso calor.

Bhumisara [nome fictício] é uma das viúvas cuja morte do marido continua por explicar. “A vida tornou-se um espelho partido, chorei muitas vezes. É muito difícil estar sozinha”, confessou à organização de defesa dos direitos humanos, que usa o testemunho para alertar para a situação de pobreza de muitas famílias na ausência de um apoio.