Suikermeloen. Que se decore, que se pronuncie, que se sinta no goto esta singela palavra. Na língua neerlandesa, falada por cerca de 29 milhões de pessoas por todo o mundo, a grande maioria das quais nos Países Baixos (vulgo: Holanda), significa melão. A fruta, bem entendido. Provavelmente, apenas os portugueses utilizarão a palavra melão num sentido pejorativo e informal, visando descrever os ânimos dos poucos adeptos neerlandeses que na noite de domingo foram suficientemente corajosos para passar pela Avenida dos Aliados, no Porto, mas que não o foram para falar com o SAPO24 sobre o jogo que havia ocorrido no Estádio do Dragão horas antes. A laranja transformou-se em melão. Nem Trofim Lysenko se lembraria de tal coisa.
O desânimo e a resignação nos rostos dos neerlandeses contrastava, e em muito, com a alegria e com os sorrisos dos adeptos portugueses, que encheram os Aliados com duas cores que tanto ali destoam: o verde e o vermelho. Contrastava, também, com a postura indiferente dos suíços, e com a incredulidade dos ingleses ao escutarem 'I Will Survive', de Gloria Gaynor, uma das muitas canções que foram escutadas durante as celebrações – se por não saberem o que fazia ali uma canção sobre divórcio, ou se por finalmente ouvirem algo que não “A Portuguesa” ou o catálogo dos Xutos & Pontapés, é difícil dizer.
“A Portuguesa”, a mais portuguesa das canções portuguesas, foi o elo de ligação entre todos aqueles que acorreram à baixa portuense para, primeiro, ver o jogo entre Portugal e a Holanda nos ecrãs gigantes ali montados para o efeito e, segundo, celebrar aquela que é a primeira vitória da seleção nesta competição. Ou, melhor dizendo, a primeira vitória de qualquer seleção nesta competição, criada pela UEFA há um par de anos com o objetivo de acabar com os chamados “jogos a feijões”. Pouco importa que, para alguns, esta seja uma competição menor, não muito diferente de uma Taça da Liga ou de um Torneio do Guadiana. O troféu é português. O resto são, não feijões, mas peaners (obrigado, Jorge Jesus).
Mesmo sendo domingo, dia em que o descanso impera, pôde ver-se todo o tipo de Portugueses (ponhamos maiúscula: somos campeões ou não somos?) pelos Aliados: famílias inteiras e meninos de dois, três anos que insistem em colocar um “i” após o “l” em “Portugal” (Por-tu-gá-li, Por-tu-gá-li, gritavam eles), emigrantes vários, proto-influencers de umbigo à mostra e bico de pato em cada fotografia e dezenas de reformados que, na ânsia de procurar a sociabilidade antes da morte, ocuparam todos os lugares vazios das paragens de autocarros da Avenida, mirando os ecrãs atentamente.
Se antes do jogo o sol empurrava os presentes para as diversas barracas colocadas nos Aliados para entreter os amantes do desporto-rei, onde se podiam ganhar brindes e pechisbeques tantos, comer um cachorro-quente salganhado de mostarda ou deglutir um tradicional fino, durante o mesmo foram milhares os olhos colocados nos ecrãs, e poucas as palavras que se iam ouvindo em voz alta. Nélson Rodrigues que nos perdoe, mas a “pátria de chuteiras” é a nossa. O Brasil ainda tem o samba e o Carnaval para se entreter; o Português só consegue alcançar o silêncio durante um jogo de futebol, ao passo que não lhe está no sangue fechar o bico ao ver um concerto (e quem esteve por estes dias no NOS Primavera Sound, no Parque da Cidade do Porto, sabe-o bem).
As cordas vocais só se iam animando com cada passe certeiro, cada toque de primeira, cada remate de Bruno Fernandes – e que maravilha é ver Bruno Fernandes a rematar, mesmo quando a bola vai para fora ou à figura do guarda-redes; é como se guardasse constantemente naqueles pés a procura pelo significado da existência humana –, cada canto, cada momento de pressão colocada em cima da equipa adversária, que não conseguiu importunar Rui Patrício por uma vez que fosse durante a primeira parte, cada finta de Cristiano Ronaldo, o capitão que ergueria a taça no final. E animaram-se, não, explodiram aquando do golo de Gonçalo Guedes, herói semi-improvável desta final, que deixou Jasper Cillessen a desejar ter um ou dois centímetros a mais. Daí até ao apito do árbitro foi um roer de unhas, um nervoso miudinho, uma prece a todos os santos e mais alguns.
Acabou por vencer São João, que antecipou a sua festa junina e devolveu a alegria à Avenida dos Aliados e ao povo Português, três anos após aquela final do Campeonato Europeu que não iremos esquecer tão cedo. Tínhamos esta coisa presa – Campeões! – e tratámos de a soltar aos sete ventos, para que todos pudessem perceber que «Portugal é um país pequeno, mas com um coração enorme», conforme se escutou da varanda da Câmara Municipal do Porto. Essa mesma Câmara acolheria, pouco depois, novos e velhos heróis nacionais; Cristiano Ronaldo à cabeça (não faltou o siiiiiiim!, grito de guerra tornado meme ou o inverso), seguido por Pepe (tinha que ser; é Português e Portuense), Gonçalo Guedes, Fernando Santos e Fernando Gomes. E, claro está, a taça, que é para já a mais bonita de todas, e que no futuro será mais feia que as que iremos querer ganhar.
A festa fez-se ao som de êxitos antigos e novos, com luzes de telemóveis erguidas bem lá no alto a pedido do speaker de serviço, com miudagem em tronco nu empoleirada nas estátuas da Avenida, com buzinadelas várias e com “A Portuguesa”, sempre ela, a ser entoada num enorme coro preenchido com o fervor patriótico que surge a partir das grandes vitórias. Não ficou nenhum cachecol ou bandeira por agitar nem nenhum sorriso por nascer. Após saudarem o povo efusivo sem o qual não seriam heróis, os membros da armada lusitana voltaram para o seu autocarro, e seguiram para o seu merecido descanso – a sua partida impelindo centenas de outras gentes a abandonarem ordeiramente a baixa, com ênfase em ordeiramente, pois somos povo de brandos costumes. Mesmo que tenhamos passado a querer soltar mais vezes aquela coisa supracitada, mesmo que já estejamos a sonhar com o Campeonato Europeu de 2020, mesmo que esta segunda-feira seja feriado, c... . O espírito de Pessoa encarnou numa bola de futebol. E Portugal cumpriu-se uma vez mais.
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