"Gosto de seguir os meus instintos, de me desafiar. Tenho de juntar títulos à minha carreira e só estando juntos dos melhores isso será possível. Gosto das cores verde e branca. Pode ser destino, porque foi algo que me acompanhou na minha carreira de jogador".

Tais foram as palavras que Abel Fernando Moreira Ferreira proferiu a 4 de novembro, ao assumir o comando técnico do Palmeiras. Não vale a pena abusar da teleologia, mas não há como não assumir um certo cariz profético nestas afirmações do treinador português, que acabou por vencer a Taça Libertadores. No duelo paulista frente ao Santos, o técnico viu Breno propalá-lo ao Olimpo do futebol sul-americano com um golo já nos descontos num Estádio Maracanã despido devido à pandemia da covid-19.

Abel, diga-se, veio assumir este desafio na sombra das conquistas de Jorge Jesus à frente do Flamengo. Não porque lhe tenha de prestar algum tipo de reverência direta, mas porque atravessou o Atlântico como vários outros treinadores lusos fizeram na tentativa dos clubes brasileiros replicarem o sucesso que o Mengão teve sob os desígnios do atual técnico do Benfica.

Quase todos falharam: tanto Augusto Inácio (Avaí) como Sá Pinto (Vasco da Gama) fraquejaram, sendo que Jesualdo Ferreira também não se aguentou à frente do Santos, mas curiosamente tem lugar nesta história porque foi ele quem lançou as sementes para a equipa da Vila Belmiro iniciar a sua caminhada até ao Maracanã. Mas Abel não, Abel é agora campeão da Libertadores, e para percebermos o seu percurso até aqui, regressemos às suas palavras naquela conferência de imprensa.

Brazilian team Palmeiras at Maracana stadium
créditos: Lusa

“Tenho de juntar títulos à minha carreira e só estando junto dos melhores isso será possível”. Justiça seja feita, até aqui o percurso de Abel Ferreira pecava pela ausência de conquistas significativas. No seu palmarés registavam-se apenas os títulos obtidos enquanto jogador do Sporting, vencendo duas Taças de Portugal e duas Supertaças sob a égide de Paulo Bento.

Após pendurar as botas, o ex-lateral direito iniciou-se a treinar as reservas de ambos os Sportings, em Lisboa e em Braga. Foi neste segundo que teve a oportunidade de se estrear no comando de uma equipa principal, em 2017. Quem acompanhou o Braga de Abel, viu uma equipa aguerrida e sempre na luta pelo pódio, mas incapaz de obter aquilo do qual o treinador de Penafiel estava faminto: títulos.

Seguiu-se o rumo que tantos têm feito quanto saem de Portugal, a Grécia. Mas ao contrário de treinadores como Leonardo Jardim, Vítor Pereira, Marco Silva, Paulo Bento e Pedro Martins — que foram para o Olympiakos, sagrando-se todos eles campeões gregos — Abel Ferreira escolheu outro caminho, assumindo o comando do PAOK, à época campeão em título, em 2019.

Também não seria em terras helénicas que Abel Ferreira provaria o doce sabor da conquista, apesar de, curiosamente, no início da atual época até cruzar-se com o homem a que se sucederia na vitória da Libertadores, com o seu PAOK a eliminar o Benfica na terceira ronda de qualificação da Liga dos Campeões. Um mês e meio depois, estaria a rumar para o Brasil.

“Gosto das cores verde e branca. Pode ser destino, porque foi algo que me acompanhou na minha carreira de jogador". Ora, seria apenas ao voltar a uma equipa a vestir estas cores que Abel Ferreira voltaria a saber o que é ganhar um troféu. Sucedendo a Wanderlei Luxemburgo, o treinador português ingressou numa formação alviverde campeã paulista mas à procura de troféus mais significativos — como o Brasileirão ganho em 2018 — que justificassem o investimento feito na equipa.

A vinda de Abel juntou o útil ao agradável. Apesar de, no Brasileirão, nunca ter recuperado do arranque em falso — está, neste momento, em 5º lugar, a 10 pontos do topo e com sete partidas por disputar —, o Palmeiras conseguiu chegar à final da Taça do Brasil — disputada daqui a duas semanas com o Grémio — e à final da Libertadores.

Abel, diga-se de passagem, herdou uma equipa que se tinha apurado na fase de grupos, mas o mérito de deixar para trás o Delfín SC do Equador, o Libertad do Paraguai e, acima de tudo, o River Plate da Argentina, foi todo seu. Aliás, importa recordar que a equipa de Buenos Aires veio para esta competição como finalista vencido na final do ano passado contra o Flamengo de Jorge Jesus.

Breno
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Este, de resto, não seria o último ponto em comum entre os percursos de Abel e Jesus. Para além de derrotar o River, da nacionalidade e do nome bíblico, também ambos gritariam de alegria no período de descontos das suas respetivas finais. Se Jesus se sagrou campeão à conta de um golo de Gabigol nos descontos no Monumental de Lima, Abel fez o mesmo com um remate de cabeça de Breno passavam já nove minutos do tempo regulamentar.

Esse, de resto, foi um dos poucos momentos a assinalar de um jogo francamente aborrecido, sendo que esta final foi como uma passagem de ano: prometeu mais do que cumpriu. Tido em atraso devido à pandemia da covid-19, o chamado “Clássico da Saudade” entre o Palmeiras e o Santos  deu-se no estado vizinho do Rio de Janeiro no eterno estádio Maracanã para 5000 pessoas. Na área técnica contrária à de Abel esteve Cuca, veterano treinador que até já sabia o que era vencer uma Libertadores — fê-lo com o Atlético Mineiro em 2013 — e que veio adornado com uma t-shirt de Nossa Senhora com Jesus Cristo ao colo. A fé, porém, de nada lhe serviu.

Sob um calor abrasador de 33 graus, as duas equipas tiveram o mesmo objetivo de trazer o caneco para São Paulo, mas contando com historiais distintos: o Palmeiras a tentar replicar o sucesso de 1999 obtido com Scolari e a querer evitar o destino que teve noutras três finais (1961, 1968 e 2000); o Santos, numa relação inversamente proporcional, a querer levantar o caneco por uma quarta vez (venceu em 1962, 1963 e 2011) e a procurar não repetir o que aconteceu em 2003.

Sendo o país do “joga bonito”, a terceira vez em que duas equipas brasileiras se defrontaram numa final da Libertadores (o São Paulo bateu o Athletico Paranaense em 2005 e perdeu com o Internacional em 2006) não fez jus a essa máxima e pouco houve a registar ao longo dos 90 minutos.

Para que se tenha em consideração o que foi a partida, o primeiro remate à baliza apenas ocorreu aos 77 minutos, feito da parte do Santos, quando o médio Pituca lançou uma bomba, à figura do guarda-redes do Verdão, Weverton, e o lateral Felipe Jonatan atirou a rasar o poste na recarga. 

De resto, duas equipas muito concentradas mas muito mais focadas em não sofrer do que em marcar, com muitas faltas e ainda mais paragens — o que, aliás, motivou oito minutos de compensação na segunda parte. Culpe-se em parte o calor, mas a falta de pressão foi estratégia e não consequência do clima, com o Santos a depender das arrancadas de Marinho e o Palmeiras das de Rony para criar algum perigo.

Do futebol especulativo não reza a história, mas dos golos sim. O tento solitário desta partida surgiria ao fim de 99 minutos e já depois de Cuca ser expulso devido a um desentendimento numa reposição de bola com Marcos Rocha. Com Nossa Senhora na bancada, ficou Abel no relvado para fazer o Santos o seu Caim.

Apesar de o Peixe até estar por cima com a entrada de Lucas Braga para o meio campo e de ambas as equipas estarem a contar os minutos para o prolongamento, bastou um lampejo da parte do Verdão para haver um vencedor. Num cruzamento milimétrico, Rony colocou a bola na cabeça de Breno — entrado para o lugar de Gabriel Menino — e este desviou-a para bem longe de John, guardião do Santos.

Explosão de alegria para o Palmeiras e os seus parcos adeptos no Maracanã— o distanciamento social e a prudência sanitária foram brevemente colocadas de parte. Pouco depois. o jogo terminaria e, com um remate à baliza, o Palmeiras trouxe a taça para São Paulo. Abel Ferreira sucederia assim enquanto o novo treinador português a conquistar a Taça Libertadores. Afinal, o destino sempre se cumpriu.