É estranho para duas pessoas que viveram o Euro 2004 em casa estar nos arredores de Sochi estes dias. A memória das praças cheias, das pessoas de cara pintada e bandeira às costas de pé a cantar o hino antes dos jogos, dá aqui lugar ao silêncio e ao vazio nas ruas. O imaginário (e a experiência) de um país que recebe uma grande competição de seleções — ainda para mais o Mundial, a maior de todas — não se vive nos arredores de Sochi perto do estádio.
A cidade está vestida para o Mundial — as lojas de souvenirs exibem canecas, canetas, bolas, t-shirts e cadernetas de cromos nas montras. Perto do Parque Olímpico, junto ao mar, telas azuis com a mascote da competição, Zabivaka, envolvem o Estádio Fisht, o centro da ação — mas despida de adeptos. Sobretudo russos. Este é o diário de quinta-feira, é o relato do arranque do Mundial de Futebol e de como dois jornalistas demoraram mais de uma hora até encontrar uma multidão a gritar golo como se deve gritar golo durante uma festa como a que tem lugar na Rússia até 15 de julho.
De um lado o estádio, sem vida, excetuando o vai-vem dos jornalistas e carros do staff. Do outro, uma praia repleta de turistas. À volta do estádio há cafés, mas estão vazios. Junto à praia há bares e restaurantes, mas estão vazios. Por vazios entenda-se que não têm um adepto com a bandeira russa às costas, grupos risonhos e bem providos de canecas de cerveja, prontos para ver o jogo de abertura em que a anfitriã Rússia enfrenta (e goleia, vimos a saber mais tarde) a Arábia Saudita. Por ali, o único amontoado que se vê é o da fila para tirar fotografias junto a uma pequena estátua da mascote do Mundial e do logo “Rússia 2018”.
Faltam poucos minutos para começar o jogo e o cenário inalterado. As únicas camisolas que víamos eram de seleções estrangeiras. Rússia? Nada. Já rola a bola e damos mais uma volta na zona envolvente ao estádio, mas a vida fazia-se normal. Decididos a encontrar um sítio em que se ouvisse gritar golo desde o fundo da alma, tentámos apanhar um táxi para ir para a marginal junto à praia, perto do nosso hotel — convém explicar que não estamos propriamente em Sochi, mas perto do estádio e numa zona tipicamente turística que em quase tudo se assemelha ao nosso Algarve.
E convém dizer também que pela primeira vez as aplicações de transportes não foram nossas amigas. Nem a Yandex, nem a Uber. Nem um veículo no ponto de recolha, e às tantas começávamos a ser diluídos numa multidão que à saída da praia procurava igualmente transporte. No meio da confusão abordam-nos: “Portugal?”. Era um jovem russo, que falava inglês. “Não estás a ver o jogo da Rússia?”, perguntámos. “Não sou masoquista”, disse sem sorrir, confidenciando-nos depois, e já com um sorriso, que nos veria de novo amanhã (ou seja, hoje) porque estava em Sochi para ver o Portugal-Espanha — e já tinha decidido que era a seleção portuguesa que ia apoiar durante este Mundial, a do seu jogador favorito: Cristiano Ronaldo, pois claro.
As aplicações continuavam a falhar e naquele emaranhado de gente adivinhava-se difícil fugir à insistência dos taxistas que por ali estavam. Já tínhamos sido avisados para não andar de táxi sem o auxílio de uma aplicação que marcasse previamente o preço, que se o fizéssemos iríamos ser ‘roubados’. Tinham razão. “Where do you wanna go? [Para onde querem ir] Disse um taxista num inglês arranhado. Dissemos que não precisávamos de nada, que já estávamos à espera de carro. O taxista disse para cancelarmos, que nos levava à marginal. Insistiu. “Levo-vos por 500 rublos”, disse.
Para ponto de referência, nós tínhamos vindo até cá por 180 rublos, cerca de dois euros e meio. Mas a verdade é que começávamos a ficar sem opções. Sublinhámos entretanto ao taxista que por aquele preço não íamos a lado nenhum. Esclarecida a situação, o condutor confessou ser fã de Portugal, mas não de Cristiano Ronaldo. O futebol tomou a conversa, até que voltou a insistir em ajudar-nos, disse que ia ele próprio chamar um veículo para nos levar a um preço razoável. Mas o smartphone da maçã não estava a colaborar, as aplicações não estavam a correr como deviam e num ataque de fúria o taxista, à nossa frente, bate no telemóvel contra um poste, estilhaça o ecrã e começa aos berros para os seus colegas enquanto se dirige para a viatura. O cenário alterou-se drasticamente, fingimos então receber uma mensagem da nossa chefe que nos obrigava a voltar para o estádio. Saímos dali assim que possível, e andámos a pé até ao fim da avenida Olímpica, o centro da ação em 2014, durante os Jogos Olímpicos de Inverno. Depois largos metros em silêncio eu e o Abílio olhámos um para o outro com o mesmo pensamento: “esta gente é maluca”.
Conseguimos, por fim, apanhar um táxi, dando conta do nosso destino entre gestos, Google Translate e Google Maps. Chegados ao hotel, a conta, por fim: 150 rublos. Cansados depois de toda aquela confusão e ainda sem ter ouvido barulho de gente que viva o futebol, encaminhámo-nos para a marginal. O Rússia - Arábia Saudita retomava depois do intervalo, e a Rússia já vencia por 2-0.
Junto ao hotel a vida fazia-se também normal. Pessoas a levar o lixo, a voltar do trabalho, da praia, a passear os cães. Entrámos na marginal e recebemos um folheto de uma festa na piscina para celebrar o início do Mundial “Come, come, don’t miss”, disse-nos uma jovem com um sotaque russo carregado.
Mesmo junto aos bares e restaurantes não havia o menor sinal de que a Rússia estava a jogar. O som das televisões ecoava sem ser engolido pelo barulho de adeptos fervorosos. Nada. Este país está mesmo a receber um Mundial? Não parece, pelo menos por aqui. A falta de ambiente fazia-nos esquecer, mas as lojas de recordações lembravam-nos a cada 20 metros.
Mas a verdade é a cidade, por fim, não nos falhou. Encontrámos um bar repleto de russos e estrangeiros, empregadas a levar grandes quantidades de cerveja e aperitivos para as mesas. Estávamos em casa, por fim. Quisemos sentar-nos, beber uma cerveja e apreciar, finalmente, um momento em que se respirasse a maior competição de seleções do Mundo, mas nem uma mesa, nem uma cadeira livre...
Seguimos à procura de um outro bar onde nos pudéssemos sentar e viver aqueles vinte minutos finais da partida por dentro. A andar sob o passadiço eis que ouvimos gritar “GOLOOOO!” de uma praça interior. Olhámos um para o outro e entrámos. Ali as únicas mesas vazias eram as que ficavam junto a uma palmeira que tirava a visibilidade para o ecrã gigante que se elevava numa das pontas da inusitada fan zone.
Sentámo-nos e ouvimos ainda gritar golo uma última vez. Os abraços, as bandeiras, a felicidade. A Rússia ganhou por 5-0, a segunda maior vitória da história dos jogos de abertura de Mundiais. Mas depois, abraços dados, copos vazios e pratos rapados, a praça despiu-se. Ficaram três mesas ocupadas e uma cantora que tinha subido ao palco para a animação do pós jogo e que acabou a cantar para a mesa da frente onde quatro jovens russos alternavam entre dançar sentados abraçados e levantarem-se para uns passos mais exuberantes.
Já se fazia tarde, passava da hora de jantar e o regresso ao hotel para escrever este texto impunha-se, já que arranque de Mundial só há um, pelo menos da Rússia de 2018. Mas a verdade é que nada nos poderia preparar para os metros que ainda tínhamos de cumprir naquela marginal.
“Portugal?”, “Are you going to watch the game tomorrow?”, “Cristiano Ronaldo ou Messi?”. Tínhamos a acreditação de jornalistas ao peito e as perguntas choviam entre aqueles que sabiam falar inglês e os que usavam o telemóvel para traduzir. A avenida à nossa volta congelou no tempo, eu dividia-me entre o inglês e os gestos, já sem bateria no telemóvel, enquanto o Abílio, ao meu lado, conseguia diálogos mais saudáveis através do Google Tradutor. As aplicações eram nossas amigas outra vez. As apps e os russos.
E foi ali, uns metros depois do “Candy King” (um homem que chama a atenção dos transeuntes por fazer algodão doce ao ritmo de Michael Jackson e Daft Punk), em frente a uma banca onde um minion, famosa personagem do filme de animação "Gru, o mal disposto", nos desafia a pontaria, que conhecemos um arménio — que, vimos a saber momentos mais tarde é o Gru simpático deste filme, ou desta banca.
A conversa resvala para a inevitável discussão: Messi ou Ronaldo, qual deles o melhor do mundo? De camisola do Barcelona vestida, insistiu em pagar uma rodada, e aí começou o rebuliço de pessoas, os amigos dele, a funcionária que trabalha para ele — uma jovem ucraniana de 20 anos que acabou por ser a tradutora oficial daquela noite.
De cerveja da mão, discutia-se futebol com quem estava e com quem passava, já que uns e outros se iam juntando à conversa. Falou-se de tudo, de CR7 à Rússia. Parecia que estávamos em Portugal, estava a ser bom... até a polícia aparecer para nos avisar que nos tínhamos de sentar numa mesa porque não podíamos consumir álcool no meio da via pública. Certo e acatado. Sentámo-nos, mas aquela banca ia fechar. Acabámos a bebida já a pensar no caminho de regresso ao hotel, e eis que uma senhor russa, na casa dos 50 anos, pega na mesa e mete-a junto à porta da sua casa, ali, na marginal. Cadeiras alinhadas, juntou-se outra senhora da mesma idade que chamou depois a filha mais nova, o arménio e uma amiga dele, cuja irmã estava neste momento no Algarve. “Algarve e Sochi são parecidos, muito calor não é?”. Era, com a única diferença de que no Algarve não há pessoas a passear com crocodilos debaixo do braço como se fossem animais de estimação.
Na mesa não houve hipótese, uma das senhoras entrou em casa para aparecer pouco depois com uma garrafa de vodka na mão, colocou várias chávenas sobre a mesa e serviu-as, e mandou-nos beber. Obedecemos. Disse-nos depois que por tradição eram três. Não nos deu hipótese de fuga, enquanto se divertia a tentar dizer os nossos nomes em português. Um chamado, do outro lado da estrada acenava um adepto que tinha falado comigo momentos antes, deixei o Abílio com as duas mulheres sentado na mesa e fui ter com eles. Traziam uma mesa almofadada para se fazerem braços de ferro, o objetivo era as pessoas à volta apostarem. Um russo desafiou-me: “10 dólares”. Disse que não tinha carteira. “1 dólar”, mas voltei a dizer que não tinha carteira. O dono da mesa pousou-a e disse “free, free”, para mim e para o russo que me tinha desafiado. E ali, no meio da avenida, fiz-me de forte. Perdi, claro. Ganhei no entanto um escape: já derrotado, chamei pelo Abílio. Agora sim, estava na hora de regressar.
Saímos à procura de companheiros tão ou mais aficionados por bola para viver um grande jogo de Mundial, na Rússia, entre russos. Encontrámos os russos, vivemos a Rússia, já o grande jogo de Futebol... é hoje, frente à Espanha, no dia em que a Seleção das 'Quinas', campeã da Europa, defronta La Roja, uma das favoritas deste Mundial.
Diário da Rússia é uma rubrica pela voz (e teclas) de Abílio Reis e Tomás Albino Gomes, equipa do SAPO24 enviada à Rússia para fazer cobertura do Mundial. Um diário que é mais do que futebol, porque a bola não se faz só de bola, mas também das pessoas que fazem a festa. Acompanhe a competição a par e passo no Especial "Histórias de futebol em viagem pela Rússia".
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