Bruno Lage, hoje treinador, à altura profeta, um jovem treinador de 42 anos, até então à frente da equipa B das águias, assumia o comando da equipa principal depois da saída de Vitória, após uma derrota no Algarve, em casa do Portimonense. Aquele que era para ser apenas um treinador interino, rapidamente conquistou o seu espaço e tornou-se líder da equipa.
Logo no primeiro jogo, Lage mostrou aquilo que queria fazer no Benfica, clube onde treinou todos os escalões e onde entrou pela mão de Jaime Graça, lenda encarnada e de Portugal, não tivesse sido ele um dos jogadores a envergar as quinas ao peito no Campeonato do Mundo de 1966 em que Portugal alcançou um inédito terceiro lugar. Para isso, transformou o 4-3-3 que vigorava de forma pouco satisfatória no clube nas últimas épocas, num 4-4-2, um sistema que, com Jorge Jesus, trouxe algumas das maiores alegrias aos benfiquistas neste século. O efeito foi logo imediato: em casa a perder por 0-2 frente ao Rio Ave, o Benfica deu a volta com dois ‘bis’, um de João Félix e outro de Seferovic.
Dali, quase inexplicavelmente, saía uma equipa preparada para enfrentar uma época, ainda que, no campeonato, ocupasse a quarta posição e estivesse a sete pontos de distância do FC Porto. Na altura, nada parecia importar. O jogo frente ao clube de Vila do Conde não tinha sido brilhante, mas tinha tido o condão de voltar a unir equipa e adeptos. Bruno Lage era o responsável, tinha lançado o lema da ‘Reconquista’, primeiro entre os que pisam os relvados e os que cantam das bancadas, e só depois com os títulos.
Hoje, um ano, cinco meses e 22 dias depois do dia três de janeiro, em que Lage assumiu o comando da equipa, todos sabemos o que aconteceu. Primeiro foi o céu, a recuperação de sete pontos frente ao FC Porto, um 10-0 no estádio da Luz frente ao Nacional, uma vitória no estádio do Dragão, um título de campeão nacional. A ‘reconquista’ acabou por secundarizar os ‘falhanços’ na Liga Europa (eliminação nos ‘quartos’, face ao Eintracht Frankfurt) e na Taça de Portugal (nas ‘meias’, frente ao Sporting).
O grande objetivo da época 2018/19 foi alcançado e a atual temporada não poderia ter começado melhor: 5-0 ao Sporting, na Supertaça, já depois de uma pré-época com uma vitória de prestígio na International Champions Cup. No campeonato as coisas também não corriam mal e o Benfica arrancou da melhor forma, mantendo a bitola da época anterior (desde a entrada de Lage venceu 18 dos primeiros 19 jogos), construindo uma vantagem de sete pontos sobre o FC Porto, a ‘ameaçar’ o ‘bis’.
No final de agosto, o desaire caseiro face aos ‘dragões’ (0-2) perdurou, então, como um ‘acidente’, mais do que nova eliminação na fase de grupos da ‘Champions’, num trajeto marcado pelas poupanças, nunca assumidas, de jogadores, sempre a dar prioridade ao campeonato.
Na competição dos milhões um 1-2 com o Leipzig e um 1-3 em São Petersburgo cedo comprometeram, os dois jogos com o Lyon não ajudaram (2-1 em casa e 1-3 fora) e o sonho do apuramento morreu na Alemanha, onde o Benfica deixou fugir um 2-0 sobre o final (2-2). Num mal menor, o 3-0 ao Zenit valeu a Liga Europa.
O falhanço na Taça da Liga, com três empates na fase de grupos, não fez grande mossa, face à liderança firme no campeonato, mas, com novo desaire face ao FC Porto (2-3) — que interrompia uma série iniciada na época passada de 18 vitórias seguidas fora — agora no Dragão, na 20.ª ronda da I Liga, tudo começou a mudar.
Esse encontro, em 8 de fevereiro de 2020, marca a ‘viragem’ no trajeto de Bruno Lage no Benfica: apenas duas vitórias em 13 encontros, como em 2007/08 (dois triunfos, seis empates e cinco derrotas, entre 21 de fevereiro e 20 de abril de 2008).
O Benfica entrou num ciclo muito negativo, que a paragem devido ao covid-19 não alterou e, em 13 jogos, só conseguiu vencer em Barcelos (1-0) e em Vila do Conde, face a um Rio Ave reduzido a nove (2-1), somando mais seis empates e cinco derrotas.
Depois do jogo no Dragão, Lage deixou de conseguir ser tudo o que tinha alcançado nos primeiros parágrafos deste texto para passar ao inferno. Aquele que era visto como o rosto do projeto do Benfica, virado para a formação e para a Europa, um técnico da casa que reconhecia a identidade e o papel histórico dos encarnados no futebol mundial, passava a ver outros nomes na capa dos jornais para o ocupar o seu lugar.
A realidade é que iria mesmo cair, mais tarde, após duas derrotas consecutivas, uma em casa, diante do Santa Clara (3-4) e outra fora, frente ao Marítimo (2-0). Ainda assim, apesar desta série de maus resultados, a pergunta importa ser feita: o que aconteceu para o efeito Lage ter desaparecido?
Para ajudar a desconstruir o percurso do treinador dos encarnados, o SAPO24 falou com Fernando Marques, colaborador do blog Lateral Esquerdo, e um dos autores do livro “Efeito Lage”, publicado em 2019, sobre a transformação operada pelo técnico no Benfica.
Qual foi efeito imediato de Bruno Lage no Benfica quando assumiu o lugar de Rui Vitória?
Foi uma revolução tática e também mental. Bruno Lage trouxe uma nova ideia de jogo de que eu, pessoalmente, gostava bastante, quer em termos ofensivos quer defensivos. Perdi muito tempo a perceber como é que eles preparavam a perda de bola, como reagiam e fechavam determinados espaços, com a mobilização da linha defensiva e recurso aos dois médios, numa estrutura de dois mais dois. Era uma equipa que sabia muito bem preparar o momento da perda e reagir.
Além disso, também gostava muito da forma como o Benfica atacava. Foi uma equipa que marcou muitos golos com o Bruno Lage e não foi só em transição em ofensiva, como muita gente dizia. Havia muita qualidade em termos de ataque posicional, o Félix desequilibrava imenso neste momento, atrás do ponta de lança, a jogar entre linhas, era um jogador que recebia e enquadrava muito bem, e tinha muito boas dinâmicas, sobretudo a entrar por dentro das equipas adversários.
Um ano e meio depois, como analisa esse efeito?
Hoje em dia, se nós formos fazer uma avaliação passado este período, percebemos que se calhar foi mais uma mudança de natureza mental porque se fosse uma revolução tática ter-se-ia mantido ao longo do tempo e muitas vezes, como se costuma dizer, se ele fosse muito bom taticamente a revolução iria prolongar-se ao longo do tempo — e isso não aconteceu. Mas o ano passado, claramente tinha ficado com essa ideia, que ele tinha trazido muita coisa boa para o modelo do Benfica e de certeza que também foi um alívio para os benfiquistas, um novo ânimo em termos mentais após a saída do Rui Vitória.
"Do meio-campo para a frente, o Benfica está mesmo muito curto em termos de qualidade individual"
O que é que aconteceu?
Acredito que houve um desgaste — que é natural — da ideia e provavelmente da mensagem que já não chegava porque os resultados também não ajudaram. No jogo frente ao Marítimo, o Benfica foi uma réplica de muita coisa que se fez na época passada de ideia para o jogo, de posicionamento e tudo mais, e foi muito parecido também em termos exibicionais. A equipa esteve mesmo muito bem. Ao espelho, fez mesmo lembrar os jogos da última época. Mas o efeito por vezes é curto, não se prolonga no tempo e provavelmente foi mesmo só algo que durou até ao final da época passada ou ao início desta temporada, porque o Benfica até começou bem este ano.
A paragem no campeonato, provocada pela pandemia, pode ter tido algum tipo de influência?
Acho que não porque o Benfica já estava assim antes da paragem. Provavelmente, se isto não tivesse ocorrido o Bruno Lage já tinha sido despedido. Eu pensava que o Benfica ia aparecer de maneira diferente após este período, mas isso não aconteceu e do que tenho visto, à exceção deste último jogo, tudo o que o Benfica fez foi muito abaixo do esperado. Nós temos escrito isso no blog, o plantel é mesmo muito curto em termos de qualidade, há jogadores que são muito parecidos na frente e isso diminui a qualidade de jogo do Benfica.
Nota-se, agora, uma falta de planeamento da temporada?
Acho que o plantel não foi o melhor, se bem que a base do sucesso da época passada se manteve. Mas é por isso que acho que o trabalho de Lage no ano passado deve ser ainda mais valorizado, porque o plantel do Benfica em termos de plantel individual não é o melhor. Mesmo Weigl, que se pensava que ia ser um grande acréscimo à equipa, não se revelou. Do meio-campo para a frente, o Benfica está mesmo muito curto em termos de qualidade individual e isso refletiu-se nos resultados.
"Esta é provavelmente a pior linha defensiva que passou pelo Benfica nos últimos dez anos"
Uma coisa é os jogadores estarem com confiança, outra é quando a equipa volta ao estado anímico normal, isso reflete a verdadeira qualidade dela. Acho que isso foi um fator muito importante para esta queda de rendimento do Benfica. Nos últimos tempos vimos jogos horríveis de vários jogadores. Muitas perdas de bola, más decisões e o que é que isso provoca? Muitas transições. Frente ao Marítimo o Benfica sofre dois golos em transições defensivas, em perdas de bola. Ou seja, as perdas destes jogadores associadas à falta de qualidade deles, o caso do Pizzi que perde muita posse, o caso do Rafa, leva a que a equipa esteja sujeita a sofrer mais transições.
Depois, as equipas hoje em dia preparam-se muito bem para ferir o Benfica. E como é que uma equipa pequena o pode fazer? Ou de bola parada ou em transição. Nestes últimos tempos foram marcando ou de bola parada — o Benfica sofreu muitos golos assim, ainda na semana passada com o Santa Clara sofreu dois golos de bola parada — e na transição defensiva, para não falar dos erros defensivos do Ferro que também é um central que já o ano passado tinha muito problemas defensivos, sobretudo no controlo da profundidade, no um para um defensivo, e este ano foi-se revelando.
O que é que faltou, então, a Bruno Lage para manter o sucesso que alcançou no final da última temporada e no início desta?
Faltou estabilizar a revolução e para isso tinha de ser dado um upgrade em termos de qualidade no plantel. O Benfica ainda o tentou com a entrada do Weigl, mas também não respondeu. Olhemos para defesa: esta é provavelmente a pior linha defensiva que passou pelo Benfica nos últimos dez anos.
Estamos a falar do Nuno Tavares que é miúdo ainda e que não tem qualidade para estar na equipa A, ainda acumula muitas perdas de bola, no jogo contra o Marítimo falhou imensos cruzamentos. O Ferro — que é um central que, para mim, está muito exposto — é um jogador com muitas dificuldades defensivas, e para ser central de equipa grande, por muita qualidade que tenha com bola, precisa de ser muito competente no momento defensivo para controlar as transições dos adversários, no jogo direto que muitas vezes os adversários possam fazer.
Na minha opinião, o único defesa que se aproveita é o Rúben Dias e o Benfica precisava, claramente, no início da época, de reforçar essas posições. Defesa central, mais um lateral e, na frente, mais elementos criativos.
A nível de opções de jogadores, há escolhas que poderiam ter sido diferentes?
Houve um jogador que, na minha opinião, poderia ter mudado alguma coisa durante esta quebra do Benfica e que não foi utilizado, que foi o Chiquinho. Frente ao Marítimo jogou e brilhou, foi o melhor em campo enquanto jogou a 10, quer em apoio, quer no ataque à profundidade. Deu muito critério ao jogo do Benfica, que é algo que tem faltado muito nos últimos tempos. Isto está tudo relacionado umas coisas com as outras, ou seja, se no último terço o Benfica perde muita bola, toma muitas más decisões, as perdas ainda acontecem mais.
Neste último jogo [frente ao Marítimo], o Benfica perdeu poucas bolas porque praticamente todo o jogo passava pelo Chiquinho e este é um jogador que tem pouca perda de bola, toma quase sempre boas decisões, ajuda a equipa a crescer no campo, o que faz com que sofram menos perdas e por isso menos transições.
Na segunda parte, houve mais entradas, o Benfica abriu-se mais, até na busca da vitória, e tiveram mais perdas, porque entrou o Rafa. O Cervi e o Pizzi também estavam dentro de campo, jogadores com características muito semelhantes, isso aumenta o número de perdas, o número de transições e o Marítimo acabou por marcar dois golos em transição.
O caso do Chiquinho é um caso, mas o mesmo aconteceu ao longo da temporada, por exemplo, com o Florentino. Foram vários os jogadores cujo papel foi oscilando entre a titularidade, o banco de suplentes e a bancada. Essa situação também pode afetar a equipa?
A instabilidade das opções do treinador cria instabilidade num grupo de trabalho. Um jogador passar de titular para a bancada ou da bancada para titular, nota-se que há algum desequilíbrio. Nos últimos jogos notou-se um desequilíbrio emocional, fruto do contexto atual do Benfica, nas escolhas do Lage, quer em termos de onze quer em termos de substituições.
Podemos ir a casos práticos. Na Madeira, o Benfica durante os primeiros 55 minutos, a altura da primeira substituição, tem o jogo completamente controlado, e o Lage por força, lá está de desequilíbrio, sentiu que tinha mexer aos 55 minutos quando a equipa estava bem e estava próxima do golo. E aí acabou por perder o controlo do jogo.
"Bruno Lage deveria ter tido tempo, devia de lhe ter sido dada a confiança"
O que é que pode explicar a falta de gestão de Bruno Lage num momento como este?
Para mim, é falta de experiência. O Lage nunca tinha passado por uma situação destas como treinador principal, uma situação de desconfiança, descrença. O treinador não soube dar a volta a isto. O momento da reação dele na quinta-feira, na conferência de imprensa, é claramente um desequilíbrio emocional, algo que não tem só essa consequência como tem também consequência nas substituições, na escolha dos jogadores, como é o caso do Florentino... Esse desequilíbrio emocional provocou desgaste nos jogadores e no grupo. Só poderia haver este caminho, mesmo que o Benfica hoje ganhasse, seria adiar o inevitável.
Mas, atenção, isto não é uma crítica. Qualquer pessoa, tirando treinadores mais experientes como um Jorge Jesus, teria lidado da mesma maneira. Aliás, uma pessoa inexperiente teria até perdido a cabeça mais cedo do que o Lage, ele aguentou muito tempo.
Qual é o futuro para Bruno Lage?
Quase todos os treinadores que saem de um grande dificilmente permanecem no país, sobretudo de saírem do Benfica. Se eu fosse treinador como Lage, Rui Vitória, Marco Silva ou outro qualquer, o meu primeiro pensamento após sair de um grande seria ir para o estrangeiro — e convites não devem faltar! Quase de certeza que é isso que vai acontecer até para fugir a esta pressão mediática que existe em torno dele. Eu não o vejo, sinceramente, a ir para um clube mais pequeno ou a ir para um Sporting ou para o FC Porto.
Esta era uma situação poderia ter sido evitada?
O que devia ter acontecido, é que Bruno Lage deveria ter tido tempo, devia de lhe ter sido dada a confiança e, provavelmente, mais autonomia para a construção do plantel desta época, o que não me parece que tenha acontecido.
Se o Benfica quer mesmo apostar num projeto baseado na formação, de miúdos do Seixal na equipa principal, a saída do Bruno Lage não me pareceu bem. O Bruno Lage é um treinador que conhecia muito bem os miúdos que estavam a fazer a transição da equipa B e dos sub 23 para a equipa principal e teria de lhe ser dado tempo. Agora, não se pode exigir resultados, títulos, quando estás a lançar jogadores como o Nuno Tavares, o Tomás Tavares, o Ferro... o caso do Jota também. E o Benfica tem vários jogadores na equipa B e 23 prontos para saltar para a A, mas não para jogar.
O Lage deveria ter tido uma maior proteção da parte da direção. Se isso tivesse acontecido tinha sido possível manter o Lage até ao final da época e até para a próxima temporada.
Acha que a reputação de Lage enquanto treinador fica de alguma forma comprometida?
Ele provou tanto o ano passado como este ano, na reta final, em que se notava qualidade em alguns momentos do Benfica, que é um bom treinador. Mas o ano passado é a prova real disso, Bruno Lage é um excelente treinador, mas que ainda precisa de ganhar alguma experiência no que toca a tomada de decisões e também de liderança. Não me parece que ele tivesse a liderança necessária para lidar com jogadores como os do Benfica.
Há alguma liga em que imaginasse Bruno Lage a treinar?
Acho que a forma de jogar do Lage se enquadraria mais na liga espanhola, mas também acho que ele é um treinador que se adapta muito bem. Seja a liga espanhola, a Bundesliga, a liga inglesa e tudo mais, ele é perfeitamente competente para isso.
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