Estar em Belgrado em dia de jogo entre Estrela Vermelha e Partizan torna-nos observadores de uma mudança radical no curso da vida de uma cidade que é por si mesma calma aos olhos dos turistas que a visitam e ficam sempre com vontade de regressar.
No passado ficaram as memórias da guerra e de uma dolorosa desintegração da antiga União Jugoslávia. A cidade está rejuvenescida, porém ostenta algumas das suas cicatrizes com o orgulho de quem não esquece. A antiga sede do Ministério da Defesa foi bombardeada em 1999 pelas forças da NATO e o edifício ainda hoje se mantém em ruínas, uma memória aos pedaços que surpreende quem chega.
Apanho o autocarro vindo de Nova Belgrado, do lado de lá do rio Sava onde hoje impera a modernidade. É sábado, mas vamos apertados, temos todo um destino certo: o Estádio Rajo Mitic ou simplesmente Marakana, nome que foi dado pela sua forma e pela moldura humana - 110.000 espectadores - que albergou na sua inauguração no longínquo ano de 1963.
Saio do autocarro e depressa estou submerso num mar de gente que se faz ouvir através de cânticos e palmas batidas ao ritmo das palavras. Não preciso de indicações, porque a direção é só uma nesta estrada humana de sentido único. Não escondo que tenho algum receio, até porque os conselhos de Drulovic, antigo jogador e treinador do Partizan, dados no dia anterior tinham-me deixado de sobreaviso.
Drulovic, antigo jogador e treinador do Partizan, explica o dérbi
Aqui não está em causa um jogo, mas sim uma rivalidade acérrima. Deste resultado depende uma das poucas alegrias que alguns adeptos têm na vida. Não são palavras minhas, mas sim de Hugo Vieira que aqui é visto como um herói, depois de ter sido campeão e melhor marcador do campeonato sérvio na época 2015/16.
“Vivem aquilo como se fosse a última coisa que vai acontecer no mundo. É algo inacreditável”, diz-me o avançado.
Mas se os adeptos são muitos, o contigente policial não lhe fica atrás. A cada esquina descobrem-se grupos enormes de polícias com verdadeiras armaduras prontos para uma guerra que por vezes não tem hora marcada. Basta recuar dois anos e lembrar que um dérbi neste mesmo estádio acabou com 35 polícias feridos, mais de 40 pessoas presas, e o jogo começou com uma hora de atraso. Drulovic estava lá como comentador e lembra-se bem do sucedido.
Drulovic fala sobre o incidente
Mas a caminhada até ao estádio decorre sem percalços e num ambiente que se quer para estes jogos: quentinho. Lá dentro, num dos topos já está sentada a claque do Partizan. Sentada é uma forma de dizer, porque aqui ninguém se senta verdadeiramente. São milhares a uma só voz, e fazem-se ouvir de tal forma que parece que estão em maioria e em casa. O Partizan entra para o aquecimento e cerca de uma dúzia de petardos para animar as hostes são lançados em jeito de boas-vindas. A pista de tartan acaba por criar a distância necessária para que estes não cheguem ao relvado.
Ah, era um dia de festa porque o Estrela Vermelha comemorava 72 anos. Data assinalada com um conjunto de crianças a entrar no relvado com uma coreografia programada a formar o número, e pombas a serem lançadas para o céu num ambiente que se queria de paz e harmonia. Tudo parecia calmo, mas desenganei-me rapidamente.
O jogo começa, e cinco minutos depois já está parado. De um momento para o outro, sem que se pudesse prever, dezenas de bombas de fumo foram libertadas pela claque do Partizan formando uma enorme mancha negra no ar, ao mesmo tempo que são lançadas uma enorme quantidade de tochas luminosas. O fumo alastra-se da bancada para o campo e já nada se vê. O árbitro manda de pronto parar o jogo.
A claque do Partizan
Vêm-me à memória novamente as palavras de Hugo Vieira. Ele que no seu primeiro dérbi em setembro de 2015 se tornou um herói por marcar dois grandes golos aqui ao rival Partizan. O problema é que se enganou e foi festejar um dos tentos junto à bancada adversária. O melhor é ser ele a contar.
“Normalmente, ali era a zona habitual dos nossos adeptos. Mas naquele jogo ficaram adeptos do Partizan. Eu fui naquela direção, comecei a festejar e quando comecei a ver chover cadeiras e a insultarem-me, percebi que não estava no sítio certo. No final do jogo, fui considerado o Melhor Jogador em Campo e fui à flash-interview. Pedi desculpa aos adeptos do Partizan. Quem me conhece, sabe que sou a favor do fair-play. Sem saber, fui o primeiro jogador do Estrela Vermelha a pedir desculpa aos adeptos do Partizan, depois disso passaram a tratar-me muito bem e respeitaram-me muitíssimo”, revela.
Bem, voltemos ao jogo que entretanto já tinha recomeçado. O futebol não era bonito, e o meu olhar fugia continuamente para as bancadas onde se queimavam de parte a parte camisolas e cachecóis dos rivais, pequenos focos de incêndio lá no meio da bancada. Voltemos ao relvado porque os golos lá apareceram. O Estrela Vermelha era quem mais pressionava e controlava o jogo e aos 33 minutos chegou ao golo por Guelor Kanga. O estádio quase vai abaixo, a bancada da claque vermelha incendeia-se. De vermelho passa para um amarelo vivo.
A claque do Estrela Vermelha
Os jogadores do Partizan cercam o árbitro de pronto e deixam-lhe as orelhas vermelhas. É que nesse lance John Ruiz controlou a bola um metro depois da linha final, e ninguém viu. Ou melhor, os jogadores viram, os árbitros de baliza, os assistentes e o juiz principal é que não. Estava dado o mote para a conversa que se seguiria nos próximos dias. É que em caso de vitória, o Estrela aumentava para nove pontos a vantagem sobre o adversário desta noite.
O resultado com que se foi para o intervalo em nada mudou a atitude dos adeptos forasteiros. Não se calaram um minuto que fosse, estiveram sempre com a equipa a cada segundo como se disso dependesse as suas vidas. Estava muito em jogo e foram recompensados aos 87 minutos. Quando já só eles acreditavam, apareceu a cabeça de Djurdevic e era o empate. Cadeiras arrancadas e arremessadas para o relvado, depois vieram os petardos e as tochas luminosas. Os bombeiros e polícias tentavam controlar a situação como podiam.
Foi assim que acabou o jogo. O futebol não prestou, não o digo por má vontade. Os sérvios com quem conversei eram da mesma opinião. Futebol mastigado, pouco fio de jogo, bola lá, bola cá, muita luta, mas pouca qualidade. Não é alheio a isso a pouca capacidade financeira atual de ambos os clubes que vêem fugir muito cedo os seus talentos, casos dos nossos bem conhecidos Zivkovic, atual jogador do Benfica ou Markovic, que passou por Benfica e Sporting.
Agora do que vi nas bancadas deu para vibrar, deixar-me de boca aberta e meter medo, tudo ao mesmo tempo. Parafraseando o campeão sérvio Hugo Vieira: “Não dá para explicar, só quem esteve lá é que percebe. A minha família e os meus amigos foram ver um dérbi e disseram-me: 'Isto é algo de outro mundo'. Depois de terem estado na Sérvia, disseram-me que, afinal, nós não temos dérbis em Portugal. Lá é para meninos”.
No dia a seguinte saiu a notícia que 30 adeptos foram presos por desacatos. Apenas mais um dia no dérbi da cidade de Belgrado.
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