Álvaro Siza e Souto Moura fizeram desaparecer um jardim da placa central da avenida dos Aliados. Há quem não lhes perdoe. Mas os arquitetos deixaram no coração da cidade um amplo anfiteatro, a praça onde as pessoas desta terra sempre encontram espaço para se fazerem ouvir, seja quando for, seja para o que for.

Há dois anos, quando o FC Porto foi campeão pela última vez, pouco se pôde ouvir. A pandemia e a polícia trataram de refrear os festejos, que acabaram, literalmente, à bastonada.

Hoje, tudo foi diferente. Quem estivesse no topo da avenida, se pusesse junto ao espelho de água a olhar para sul, era abalroado pelo rugido. Há-de se dizer que é o ecoar da voz do dragão, do campeão. É, talvez, também outra coisa: a festa, por fim, de cara destapada.

Siri é uma enorme pastora-alemã. A cadela veio, também vestida a rigor, com a família para os Aliados ver o princípio da festa. Isabel diz que é importante virem todos festejar — “para passar a tradição aos filhos” e também à cadela, que, deitada nos paralelos de granito, observa tranquila a multidão que vai chegando.

“É respirar outra vez, exorcizar muitas coisas más”, diz, sobre a pandemia. Joana, a filha, nota que a cadela já está transformada em protagonista: “é o centro das atenções”, sublinha, enquanto quem passa, passa para fotografar a cadela. Passam novos, passam velhos. Crescidos e pequenos. Uns bebés de colo, outros de carrinho.

Do não-golo de Darwin ao golo de Zaidu

Como muitos, Isabel e a família saíram para a Baixa para acompanhar a reta final do jogo. Ainda assim, enquanto a bola rolava na Luz, a avenida dos Aliados estava entregue aos turistas. Com a ponta final ocupada pelas obras do metro, há menos espaço para passeio e chegar às lojas é andar num labirinto de chapas e taipais.

Porém, nas ruas e praças adjacentes, colados às televisões, os adeptos sentiam o jogo com idêntica intensidade que a do interior de um estádio. Numa esplanada na praça Filipa de Lencastre, ali mesmo ao lado, entre o túnel de Ceuta e o hotel, montava-se a claque de apoio à distância. E quando o golo dos encarnados foi anulado, por fora de jogo, o estrondo festivo fez-se ouvir. Bastava manter o 0-0 para o FC Porto garantir o campeonato.

Mas Zaidu não quis que a equipa ganhasse o campeonato sem ganhar o jogo. E lá deu o golo da vitória,, aos 90+4. No Porto, a festa estava mais próxima — mas ainda faltava o árbitro Luís Godinho dar o apito final para confirmar o resultado e os adeptos deixaram-se ficar à espera desse sinal, dessa sentença última a garantir que agora sim, são 30, caralho, 30 campeonatos azuis e brancos.

Quando esse fino tom arbitral tocou em Lisboa, rebentou a festa no Porto. Logo toda a gente se encaminhou para os Aliados. E aos que já lá estavam mais se juntaram: vindos de tiro o lado, com camisolas, cachecóis e bandeiras. Ao som de cornetas, petardos e foguetes. A gritar “Porto”, “Pinto da Costa” e impropérios ao derrotado SLB.

O céu apagava o sol, as luminárias da avenida acendiam-se e os brilhos e fumos dos festejos deitavam luz sobre a multidão cada vez maior. Vinham de metro, vinham de carro. Chegavam ali a pé.

Com o acesso cortado, os carros acumulavam-se na Trindade, na Sá da Bandeira, buzinando em alto festejo também ali. Sempre que uma nova composição do metro entrava na estação, deitava mais gente de mãos ao alto a celebrar e a gritar.

“Para mim não houve dúvidas”, diz Marco sobre a época. “Só perdemos um jogo”, recorda o adepto de Felgueiras, que perdeu o jogo para se pôr a caminho do epicentro da festa. “É importante festejar aqui, até às tantas da noite”, adianta, assegurando que vai esperar pela chegada dos jogadores.

Uma pausa de um ano como campeões não é grave: “já estamos habituados”, diz uma adepta que veio coma família de Paços de Ferreira só para acompanhar o jogo e a festa do campeonato. “Não ficamos desanimados — de vez em quando temos de dar umas alegrias aos outros adeptos”, afirma, referindo-se ao campeonato passado, que os lisboetas do Sporting CP conquistaram depois de quase duas décadas sem o título.

Sair de casa para ir para casa

A avenida dos Aliados foi o palco dos primeiros gritos, mas a festa montou-se à beira do estádio. Nas Antas, a poucas estações de metro do centro do Porto, o coreto ficou ao lado da porta 24. Foi para lá que Pepe convocou os adeptos, e foi lá que que eles cedo se começaram a juntar (sem deixar de fazer a festa na viagem).

As autoridades aconselharam os adeptos a preferir os transportes públicos. Também nós o fizemos — e no curto trajeto entre o centro do Porto e o Estádio do Dragão, sempre que as portas se abriam nas estações, era possível ouvir os gritos e os cânticos, indiciando que, carruagens à frente, os grupos continuavam a festa. À chegada à estação do estádio, houve até petardos a rebentar no cais.

À parte os engenhos pirotécnicos, a festa seguiu sem sobressaltos de maior. A multidão acumulava-se junto ao estádio, como uma enorme plateia espraiada dos dois lados do coreto montado junto à porta 24, que se abre para a alameda das Antas. E havia gente por ali acima, gente não topo do viaduto, gente no acesso ao centro comercial.

Às 23:30, tocava Emanuel, para animar um bailarico onde todos dançavam — até as senhoras da limpeza rodopiavam com os vigilantes, numa animada festa. Por esta altura, o autocarro dos Dragões estava no Santuário de Fátima. A equipa ainda havia de fazer outra paragem, enquanto os cânticos, as danças, os fumos, os petardos e os foguetes animavam os adeptos, que celebravam as imagens do ecrã gigante.

Passava já das duas da manhã quando, por fim, a equipa começou a ser chamada: primeiro Pepe, o capitão. Rebentou a euforia dos adeptos. Um a um, os jogadores foram atravessando a ponte que ligava o estádio ao círculo (que na verdade é uma das bilheteiras do estádio) onde podiam ser vistos por todos. Naquele topo, foram-se juntando para festejar um bocadinho mais perto de quem os apoiou durante uma temporada que continua (e ainda tem uma Taça por ganhar).

Um a um, lá foram subindo os jogadores para ser celebrados. Um a um aplaudidos, entre danças do TikTok e agradecimentos. Até chegar o mister, Sérgio Conceição e respetiva equipa técnica, que se juntaram à festa — e a continuaram.

Pode ser que nesta terra se troquem os vv pelos bb. O que aqui nunca se troca é o orgulho por outra coisa qualquer — nem a festa, quando é para festejar.