A The Athletic descreve o combate anterior como tendo sido um golpe renascentista na divisão que outrora fora o rosto da modalidade e cujos campeões eram rapidamente nomeados de cabeça — mesmo por aqueles que não seguiam o boxe. Wilder e Fury vão subir ao ringue da MGM Grand Garden Arena, em Las Vegas, com o intuito de devolver o esplendor (com os punhos) a uma classe de peso que carregava o fardo e missão de garantir o interesse global. Noutros tempos, nos dias de glória, eram os grandalhões que reinavam e dominavam. Este combate parece restabelecer essa nostalgia vivida numa época que já pareceu mais distante.
O combate será transmitido no modelo pay-per-view nos Estados Unidos e há tanto sururu em torno do embate deste sábado que é estimado que seja vendido o triplo de pay-per-views (325 mil) do primeiro combate entre Fury e Wilder. Os bilhetes passeiam de mão em mão na Cidade do Pecado a troco de milhares de dólares, os protagonistas empurram-se e vociferam impropérios entre si e o entusiasmo de fãs e media está em altas. Algures no meio deste circo mediático está o título mundial de Wilder (WBC) e a hipótese de Fury, caso vença, marcar um encontro com o conterrâneo britânico Anthony Joshua (que detém os títulos IBF, WBA e WBO) para ser considerado universalmente como o melhor peso pesado do mundo.
Mais: pelo que se escreve na imprensa internacional, Wilder-Fury 2 poderá muito bem vir a ser a luta com maior bilheteira na história nos Estados Unidos no que à categoria de pesos pesados diz respeito. O recorde em vigor (isto é, de pessoas que vão assistir ao evento ao vivo) pertence ao combate que opôs Mike Tyson a Lennox Lewis em Memphis, no Tennessee, em 2002. De acordo com a The Athletic, foram gerados 17,5 milhões de dólares. No entanto, no estado do Nevada, onde se vai realizar o combate desta madrugada, o combate mais lucrativo (16,86 milhões de dólares) foi o que colocou frente-a-frente o britânico Lennox Lewis ao norte-americano Evander Holyfield, em 1999. Ora, tudo isto para dizer que os promotores estão esperançados que vão conseguir bater, pelo menos, este último. Eles e o próprio Fury.
"Esta é a maior luta nos últimos 50 anos da divisão dos pesos pesados", disse Tyson Fury a uma multidão de mil pessoas no lobby de um hotel durante esta semana.
É uma declaração forte, tendo em conta o histórico "Combate do Século" — e aqui falamos do verdadeiro, não daquele que celebrou o seu nome, quando Conor McGregor trocou o octógono pelo ringue para trocar galhardetes com Floyd Mayweather. Ou seja, falamos sobre o combate entre Muhammad Ali e Joe Frazier no Madison Square Garden, em 1971. Naquela que foi a primeira vez que dois pesos pesados se encontraram quando ambos não tinham qualquer derrota no seu registo e trata-se do primeiro combate de uma série de três entre Ali e Frazier (este último ganhou o primeiro, Ali os dois seguintes).
Mas acontece que quando Fury abordou esta temática, um tal de Jerry Izenberg estava presente. Izenberg, aos 89 anos, é uma espécie de xamã da cobertura desportiva do mundo do boxe. Não só acompanhou algumas das lutas mais famosas de sempre, como pertence inclusivamente ao Hall of Fame da modalidade. (Além de ter escrito mais de 10 livros sobre boxe, narrado inúmeros documentários e de ter sido nomeado para um Emmy num deles). E Izenberg lembrou Fury — e os seus jovens pares presentes — doutra luta, aquela que ele considerava que tinha sido o realmente o melhor combate dos últimos 50 anos. De sua justiça, saiu a lendária noite do Thrilla in Manilla. Isto é, o terceiro combate entre Muhammad Ali e Joe Frazier.
"Esse foi o combate dos combates", revelou Izenberg. "Em Manila, os rapazes não estavam a lutar pelo título da WBC; estavam a lutar pelo título entre eles. Deus decidiu essa luta. Os olhos de Joe começaram a fechar no 13.º assalto. As suas pernas estavam do tipo esparguete fervido. Tudo aquilo que Ali tinha de fazer para nocauteá-lo era dar um passo em frente e aplicar-lhe um golpe. [E] ele não conseguiu fazê-lo", disse o experiente repórter — que, por acaso, era, até há umas semanas, um dos dois jornalistas ainda vivos que cobriram todas as finais do Super Bowl desde 1967. Este ano, decidiu que se iria afastar. Mas ainda escreve a sua coluna do jornal The Star-Ledger, de Nova Jérsia.
Esta longa viagem ao passado e lição de história serve apenas para anunciar que este Wilder-Fury 2 pode muito vir a ser um combate do qual se falará nos mesmos termos de outros embates com estatuto de lendário no desporto. As comparações não são assim tão exageradas para quem viu o primeiro embate entre esta nova geração de pesos pesados. Foi uma batalha épica que acabou num empate que mereceu repetição imediata — e que mediante o resultado de hoje poderá gerar interesse para uma trilogia de tira-teimas. Tal como aconteceu com Ali e Frazier muitos anos antes. Em suma, de acordo com a The Athletic, há agora a possibilidade de se regressar a outros tempos de glória; tempos semelhantes aos de Ali, Frazier e George Foreman na década de 1970, e que Holyfield, Lewis e Mike Tyson repetiram no final dos anos 90 e início dos anos 2000.
Além disso, o burburinho em torno desta luta parece trazer reminiscências que não são apreciadas desde os tempos (de declínio) de Tyson e em que este saiu derrotado num combate com Lennox Lewis em 2002. Aliás, nem mesmo o Fury vs Wilder 1 esteve sequer perto do mediatismo de que este evento está a ser alvo. (Na "candonga" um bilhete pode chegar quase aos 12 mil dólares).
Wilder é um pugilista com uma força no punho tremenda. É uma autêntica máquina de KO’s. Mas Fury mostrou no primeiro combate que consegue aguentar com pujança do norte-americano. Levar em cheio na cabeça com um soco e um gancho de Wilder não é para qualquer um. Porém, no 12.º assalto, Fury foi ao tapete para mostrar estofo de campeão e levantar-se.
"É um combate para mostrar quem é o melhor. Títulos à parte, cinturões à parte, glória à parte. Dois homens vão estar frente a frente para ver quem é o melhor; ambos no seu prime. É raro assistirmos a isto. Quero deixar tudo no ringue. Quero sair do ringue a sentir-me totalmente estafado", revelou Fury.
Não é muito normal falar-se de boxe e não associar a modalidade a um atleta alto, forte e com um físico de Adónis — um pouco à imagem de Anthony Joshua. Mas num tempo recente, a verdade é que a sua popularidade tem sido alavancada por pugilistas mais pequenos e de divisões que não a de pesos pesados. Gerações mais novas estão familiarizadas a nomes como Floyd Mayweather Jr., Manny Pacquiao, Shane Mosley, Gennady Golovkin ("Triple G" ou "GGG") ou Canelo Álvarez. A divisão maior parece sentir-se um pouco à deriva desde que o reinado dos irmãos Klitschko.
"Podemos relembrar quando a América estava num túnel escuro em que ninguém sabia quem era o campeão do mundo de pesos pesados", disse Wilder durante a semana. "Quando estás a crescer na divisão de pesos pesados na América, [esse facto] é um pouco deprimente", referiu.
Premonições: arrojadas ou acertadas?
Fury, de resto, está confiante. Tanto assim é que se mostrou capaz de fazer previsões: não só diz que está mais forte, como vai nocautear o seu oponente logo no segundo assalto. Wilder, por seu turno, assegurou durante a semana que poliu combinações que vão levar Fury ao tapete — mas para lá ficar estendido. Ou seja, para que seja diferente das duas vezes que Fury foi ao tapete, mas que teve calibre para se levantar e continuar.
Anthony Joshua recuperou os seus três cinturões no segundo combate com Andy Ruiz Jr. em dezembro. E Frank Warren, co-promotor de Fury, lembrou que o derrotado do evento tem o direito de invocar a cláusula de desforra dentro de 30 dias após o desfecho desta madrugada. O que é a mesma coisa que insinuar — ou assim se assume — que o vencedor da trilogia terá planos para encontrar Joshua pelo caminho.
"[Este combate] parece especial porque eu sei quão especiais são porque vi estas lutas quando era miúdo; quando estava a crescer; quando era um adolescente; enquanto sou homem. Sabe bem saber que estou a dar às pessoas o tipo de entretenimento que me deram a mim há uns tempos atrás", disse Fury. Ele que assume que é um entertainer acima de tudo o resto.
Há uma pessoa nova na equipa de Fury. Tem nome de rapper, mas é um ex-polícia de Detroit. SugarHill Steward tem 48 anos e tem a missão de ajudar a nocautear Wilder. Ben Davison tem sido o seu treinador nos últimos combates, mas SugarHill é agora quem comanda as operações para elevar o jogo de mãos de Fury. Ou, por outras palavras, utilizando um jargão do boxe, ajudar a aplicar a magia do soco Kronk — uma marca regista do tio de SugarHill, que tanta mossa fez quando disparado por lutadores como Tommy Hearns, Lennox Lewis e… Klitschko.
Fury parece estar a entrar na linha de Muhammed Ali. À frente das câmeras, mind games e previsões. Não são muitos aqueles que acreditam que o britânico tem poder de fogo nas mãos para deitar abaixo Wilder. É muito alto (mais de dois metros de altura), rápido e está munido de uma agilidade pouco natural para uma homem da sua envergadura. Mas daí a meter o norte-americano "a dormir", é outro tipo de conversa. No entanto, também ninguém lhe dava crédito quando bradava aos sete ventos de que iria derrotar Klitschko em 2015 (como acabou por acontecer).
"Ele está a tentar encurralar uma galinha num quintal enorme. É uma tarefa difícil", revelou Fury à The Athletic. "Quando ele falhar os socos, em vez de fazê-lo errar e sair do seu caminho, vou fazê-lo pagar e nocauteá-lo. Estamos a trabalhar bastante [no sentido] de bloquear os seus golpes e ripostar — o que pode ser muito perigoso para alguém como Wilder", explicou.
Tyson Fury, o Rei dos Ciganos que nasceu prematuro e pequeno
No final de 2018, se alguém me perguntasse "Quem é para ti a personalidade do Ano?" no mundo do desporto, responderia, com a maior honestidade, "Tyson Fury". Por toda a história que o envolve, pela personagem que desempenha sempre que está à frente das câmaras, mas sobretudo pela forma como humanizou o problema da depressão que atinge muitos atletas de alta competição.
Fury é considerado um dos dois melhores pesados do mundo, um ex-campeão que perdeu os cinturões durante os quase três anos que esteve afastado do boxe — o que não é a mesma coisa que se escrever que esteve afastado da ribalta. Durante esse período Fury travou uma intensa batalha com uma depressão, ganhou uma quantidade de peso absurda (bateu os 180kg) e abusou de substâncias pouco lícitas como a cocaína. Bateu no fundo, como o próprio muitas vezes o disse, mas parece estar a viver uma fase em que aproveita cada momento.
O New York Times fez um extenso trabalho sobre a sua reabilitação, assim como a BT Sports do Reino Unido fez igualmente um documentário sobre a matéria quando apareceu à frente das câmeras a falar de tudo aquilo que tinha passado e vivido. Foi campeão do mundo, derrotou aquele que muitos diziam que era impossível derrotar, tinha milhões no banco. Tinha o mundo do boxe a seus pés, fama e prestígio. Já para não falar de carisma para dar e vender. Porém, tudo isso só veio provar algo: de que, no final do dia, somos todos humanos e ninguém está livre de ficar doente. Até mesmo o campeão do mundo de pesos pesados.
"Tinha milhões no banco, andava de Ferrari e tinha três filhos. Mas só pensava em matar-me. Tentei fazê-lo com bebida, mas aparentemente sou um tipo que aguenta uma enorme quantidade de álcool. Engordei 70kg. Bati no fundo. Hoje, pergunto-me como seria possível [pensar dessa forma]. É a coisa que mais gosto de fazer: ir buscar e ir pôr os meus filhos à escola. Não há dinheiro que pague isso. Hoje vejo isso de forma clara. Mas durante muito tempo não pensei", confidenciou no documentário.
Nos dias que correm, pode também dizer-se que é uma das figuras mais vocais nesta matéria. Em dezembro do ano passado, numa série de Stories publicadas na rede social Instagram, Fury revelou como ajudou um estranho a não cometer o suicídio. A sua reabilitação também o levou a outro tipo de ringue em 2019: ao da WWE na Arábia Saudita. Defrontou o gigante Braun Strowman e bebeu umas cervejas com Ric Flair (uma lenda modalidade e o autor do afamado grito "woooo") e Roman Reigns, uma das grandes estrelas do wrestling.
Fury trilhou a sua carreira ao surpreender em combates que poucos esperavam que tivesse sucesso. Mas foi em em 2015, quando terminou com o reinado de 11 anos de Wladimir Klitschko no topo da divisão de pesos pesados e juntou o seu nome ao de uma linhagem que inclui lendas como Jack Johnson, Gene Tunney, Muhammad Ali e o homónimo Mike Tyson, que se começou a ver que Fury era mais do que um fala barato. E se é verdade que esteve de fora quase três anos — perdendo os títulos que ganhou a Klitschko — a contas com uma doença mental e obesidade mórbida, mas isso não o impediu de desafiar o bicho papão que é Deontay Wilder — e de ficar por cima em quase todos os assaltos do combate com o seu jogo de pés e capacidade mental. Todavia, nesse combate, o momento que sobressai de Fury, foi a sua resiliência durante o 12.º assalto em que um torpedo na forma de uma direita de Wilder — que muitos consideram ser o soco mais letal do boxe atual — o levou ao tapete.
"Muita gente pensou que tinha terminado ali. E para muitos que tivessem levado com aquele soco, tinha acabado. Mas para mim, com a minha mentalidade, nunca esteve perto do fim. Uma pessoa nunca se rende", disse Fury.
Nesta madrugada, quando Fury enfrentar Wilder pela segunda vez, o primeiro será novamente posto à prova. Pode ficar magoado, pode voltar a cair, pode inclusivamente ficar exausto naquelas águas profundas que surgem no ringue de boxe com o passar dos minutos e assaltos. Assim como o tecido sobre o olho direito — onde sofreu um corte na última luta e que necessitou de 47 (!) pontos para suturar — pode abrir logo nos momentos iniciais. Mas para Fury uma pessoa "não pode perder". Por nada.
Este é o lutador que derrotou Klitschko — que dominou a divisão durante quase duas décadas — quando poucos lhe davam qualquer oportunidade de sair vitorioso e que desafiou Wilder — um dos nomes mais temidos da divisão — para regressar. Ninguém pensou que estivesse pronto voltar aos ringues; muito menos que tinha capacidade física e mental para aguentar um combate daquele calibre. O resultado, esse, já se sabe: o empate técnico foi o desfecho oficial, mas a maioria dos observadores achou que Fury merecia ver o seu braço levantado. Ainda que tenha sido nocauteado duas vezes. E daí a necessidade de um novo encontro entre os dois.
Para o combate desta madrugada, Fury surpreendeu meio mundo ao anunciar que iria mudar de treinador e planeava entrar no ringue com mais sete quilos do que da última vez — e até contratou um nutricionista (o mesmo de Conor McGregor) para aumentar a massa muscular porque "não se mete combustível de merda num Lamborghini" nas suas refeições com 4.500 calorias. Mais: afirmou que iria deitar abaixo o seu adversário no segundo assalto ao estilo de uma das mãos mais pesadas da história da sua divisão do boxe. (É pouco provável que assim seja, pois Fury não é conhecido pela força, mas sim pela técnica, velocidade e movimento.)
Depois, é a tal coisa: para muitos, Fury é ainda o verdadeiro campeão de pesos pesados porque na verdade nunca perdeu os títulos que ganhou a Klitschko em novembro de 2015. No entanto, numa reportagem da The Athletic, revelou que não pensa muito nisso. "Não é algo em que, com toda a honestidade, pense. Vivo a minha vida um dia de cada vez", explicou. Contudo, muitos seguidores e puristas da modalidade — problemas à parte — pensam exatamente isso.
Guerra dos Tronos, Batman e a alcunha de Gypsy King
Com tudo aquilo que se vê envolvido, a televisão não é uma das prioridades de Tyson Fury. Isto, até dar de caras com a famosa série Guerra dos Tronos. E há 10 anos que Fury não acompanhava nada. Mas durante o camp [período em que um lutador intensifica os seus treinos e cria uma espécie de regime de preparação duro] do primeiro combate com Wilder, Fury viu todos os episódios das sete temporadas do programa da HBO numa virada. A última, que estreou em abril do ano passado, foi para o ar meros quatro meses após o combate. E tanto fãs como a crítica não gostaram muito do desfecho ditado pelos últimos seis episódios de Guerra dos Tronos. Ainda assim, a posição de Fury é diferente de todos estes. E é uma opinião rara.
"Não gostaram da última porque sabiam que ia acabar; porque sabiam que era o fim. É como: 'acabou. O que é que vou ver agora?'", disse Fury.
Fury é conhecido por ser um homem-espetáculo que promove os seus combates como ninguém. Tem um estilo muito próprio onde o humor por vezes extravasa o bom gosto — ainda durante a promoção deste combate Fury avisou a sua audiência (e jornalistas) que se andava a masturbar sete vezes por dia para aumentar os índices de testosterona e a praticar cunnilingus para fortalecer o seu queixo.
Mas os episódios são vários e em várias frentes. Durante a promoção do combate com Klitschko, a quem se fartou de mandar bocas durante anos, Fury apareceu vestido de Batman na conferência de empresa, para depois fazer uma espécie de partida de wrestling com outro indivíduo vestido de Joker. Por outro lado, em 2016, gastou mais de 1.000 euros num bar em Nice, durante o Euro de futebol realizado em França. Porquê? Bom, a conta foi dispendiosa porque o Gypsy King achou por bem pagar 200 Jägerbombs a fãs ingleses que viajaram para ver o jogo. Mas Fury já revelou no passado que fazia pretensões de se candidatar a deputado e participou no último álbum de Natal de Robbie Williams. E estes são apenas alguns episódios. É só ir ao YouTube para mais.
A alcunha de Fury — Gypsy King — provém das suas raízes. Tanto o pai como a mãe fazem parte de um grupo minoritário nómada da etnia pavee. Chamam-lhes Irish Travellers e obtiveram reconhecimento por parte do governo irlandês, enquanto minoria étnica, em 2017. Antes, viveram séculos à margem das sociedades, quer da Irlanda, quer do Reino Unido. No entanto, apesar dos Travellers serem vulgarmente denominados de Gypsies, estes são etnicamente distintos dos ciganos romanos.
Em 2016, Fury abordou este tópico. "Eu sou cigano, é só. Serei sempre um cigano, nunca vou mudar. Vou ser sempre gordo e branco, é o que é. Sou o campeão, mas sou visto como um vagabundo".
A tradição do boxe já existia na família. O pai de Fury, John, era lutador de boxe sem luvas (bare-knuckle boxing) nas ruas, mas chegou a competir enquanto profissional — sendo conhecido por "Gypsy" John Fury. Este tipo de boxe, de acordo com Tyson, faz parte da comunidade de onde cresceu. "Noutras culturas, os miúdos pequenos jogam à bola, [enquanto] nós andamos a dar murros em mãos. E quando entramos numa disputa, não é suposto irmos à polícia, é suposto tirarmos as nossas camisolas e resolver as coisas com os nossos punhos", revelou em 2014 à BBC.
Apesar de muito se assemelhar a uma luta de rua, no boxe sem luvas existem diferenças e regras. Não há tempo limite, nem árbitro ou ringue (senão contarmos com o círculo das pessoas que assistem ao estilo de Fight Club); só acaba quando um dos lutadores desistir e não é permitido atingir o adversário quando este se encontra no chão. No final, vão todos ao pub mais próximo beber cerveja.
Uriah Burton e Bartley Gorman, duas lendas deste tipo de boxe, são parentes distantes de Fury. E ambos tiveram a alcunha de "King of the Gypsies" [Rei dos Ciganos] — que posteriormente inspiraram Tyson.
Tyson Fury, de 31 anos, é casado com Paris — que partilha a sua herança de Traveller — e vai ter uma documentário de quatro partes baseado na sua vida privada. Numa delas, o pai, John, explica aquilo que já se sabia: de que Tyson se chama assim por causa do Mike (Tyson). Mas conta a verdadeira razão: Tyson (o Fury) nasceu três meses antes do tempo e tinha apenas 500 gramas. De acordo com a rádio talkSPORT, John terá recebido a mensagem dos médicos de que o bebé não sobreviveria. "Disse a todos os médicos que ele não seria pequeno; disse-lhes que teria quase 2,13 metros de altura e 120 quilos de peso e que seria o próximo campeão mundial dos pesos pesados". Se a história for realmente verdade, John não andou longe da realidade.
Wilder, o Bombardeiro de Bronze
Deontay Wilder é diferente de Fury, mas, a par do inglês, é um homem igualmente com uma história de superação. E, na madrugada deste sábado, vai defender o seu cinturão do WBC pela 11.ª vez quando pisar o ringue do MGM Grand, em Las Vegas. Se o fizer, vai ter algo que iluminará a sua carreira para sempre: fará um melhor desempenho que Muhammad Ali (enquanto campeão).
Ninguém chega ao patamar em que Wilder se encontra, sozinho. Durante o caminho, de atleta olímpico a campeão mundial de boxe, Wilder teve a base da sua essência assente na educação de uma pessoa: o pai. Há histórias no boxe entre pais e filhos (a de Floyd Mayweather Jr. talvez seja a mais conhecida) mas, como lembra a The Athletic, a de Wilder é uma que figura numa margem à parte. Porque na jornada da vida, a vivência nunca é feita em linha reta. Especialmente para um jovem negro de uma zona pobre de Tuscaloosa, no Estado do Alabama.
A mãe de Wilder abandonou a família quando este tinha nove anos. (Ainda regressou à cidade, mas nunca reatou a ligação com Wilder e os seus.) Desse dia para a frente, Gary Wilder, o pai do pugilista, revela que teve de ligar o chamado "modo de sobrevivência". Ao todo, eram cinco. Quatro crianças — sendo Wilder o mais velho— e um adulto, que se tinham de governar com um cheque de 635 dólares que chegava semana sim, semana não. Sem a ajuda de outro adulto.
O dinheiro naquela casa era, portanto, escasso. E não esticava para comprar roupas ou sapatos de marca; Deontay andava vestido com roupas do Walmart. Com 2 metros de altura, tal como o dinheiro, os ténis que lhe cabiam nos pés eram escassos. Os que serviam, davam nas vistas. Mas não no bom sentido. Eram laranjas, não estavam na moda e levavam a que os seus colegas de turma o provocassem.
"Imaginem ter que utilizar ténis laranjas com toda a roupa que tinham. É coisa de palhaço", lembra Deontay Wilder. Porém, não era só o facto de serem "feios" aos olhos dos colegas. Para fugir ao escárnio dos seus pares, sentava-se nas últimas filas da sala. No entanto, mesmo que a razão não fossem os ténis, os colegas arranjavam maneira de se meter com ele. Foi então que soube que tinha que começar a defender-se daqueles ataques.
"Lembro-me de sentir a vitória — e a vitória foi tão doce. Não era cobarde, nem rebelde. Apanhavam-me pelas costas, mas ainda assim dava conta deles. Tinha uma capacidade real de vencer", conta Wilder.
Todavia, ao contrário daquilo que normalmente sucede com os campeões de elite, Wilder nunca olhou para o boxe como futuro. Aliás, Wilder nunca viu o boxe como o seu seu desporto. Tanto assim é que jogou basquetebol e futebol americano na Universidade Comunitária de Shelton com o intuito de dar o salto para a parte mais rica da cidade — e tornar-se membro da Universidade de Alabama Crimson Tide. O sonho, no entanto, não passou disso mesmo.
Aos 19 anos, Wilder e a sua namorada descobriram que a filha de ambos, Naieya, tinha nascido com a espinha bífida, uma anomalia congénita do sistema nervoso que se desenvolve nos dois primeiros meses de gestação, algo que ocorre quando a espinha e a espinal-medula não se formam adequadamente. E pouco depois, Wilder viria a sofrer novo contratempo na sua vida. Ainda abalado pela situação perigosa de saúde da filha, a mãe da criança avisou que se iria separar (embora continuasse a fazer parte da educação de Naieya). "Não havia nada que corresse a meu favor. Pareceu que perdi a minha família porque nos separamos", contou.
"A pensão de alimentos começou a chegar e uma pessoa já tinha contas. Estás a ganhar dinheiro, mas da mesma forma que o ganhas, gastas. Houve um momento em que acabei por ceder, em grande parte porque não podia ver a minha filha todos os dias", relembra Wilder. "[A situação] lixa-te a cabeça. Lembro-me de ter uma arma na mão e contemplar verdadeiramente [o suicídio]", chegou a confidenciar.
A vida passou-lhe uma rasteira, mas não se deixou a ir abaixo. Depois desse episódio, recompôs-se e "levantou-se". Enquanto adolescente, trabalhou numa cadeia de panquecas (a IHOP), onde lavou pratos e serviu às mesas. Chegou também a trabalhar como distribuidor de cerveja. Até que, em 2005, decidiu ver onde é que os seus dotes naturais de atleta o podia levar.
Sabendo que o boxe tinha um horário de treino flexível, aventurou-se no Skyy Gym e deu de caras com o treinador local, Jay Deas. Mas entrou no ginásio sabendo que não tinha aspirações para ser mais do que um journeyman — lutadores que costumam competir com jovens talentos emergentes em jeito de os preparar para a ribalta; no entanto, este tipo de lutadores ocupam frequentemente vagas de última hora nos cartazes dos desportos de combate. No fundo, atletas que aparecem no circuito mas sem grandes aspirações, vivendo de cheque em cheque.
A verdade é que não foi bem isso que aconteceu. Wilder deu nas vistas num importante torneio amador (Golden Globes, competição por onde passaram Muhammad Ali ou Joe Frazier) e chegou a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 2008. Nada mau para quem começou a praticar a modalidade aos 20 anos de idade. Esta história, de resto, tem muitos pontos semelhantes à ascensão meteórica de Anthony Joshua. No entanto, a resiliência, ética de trabalho e lealdade para com o seu treinador são trunfos que muitos atribuem ao seu sucesso. Isso e nunca ter desistido quando era lutador sem um tostão e que jantava uma Sprite e um saco de gomas.
As vozes críticas de Wilder dizem que este é um lutador "cru" e que não tem a escola do boxe. Assim como a sua lealdade ao treinador já foi questionada. Sobre esta questões, Deontay lembra uma das lições que aprendeu com o pai: "Independentemente daquilo que Deus te faça crescer, não te esqueças das pessoas que te viram enquanto eras invisível", justificou. E Wilder também não parece incomodado com aquilo que se tem escrito sobre o facto de Fury ter ganho aos pontos no primeiro encontro de ambos — apesar de ter ido ao tapete duas vezes.
"Vou mostrar a minha força e habilidade. Precisas de competência de coordenação de visão e timing para atingir o alvo. É o que eu exibo: a coordenação para ser capaz de por a cabeça de um homem na posição ideal para chegar a um fim. Eu materializo aquilo que digo. E é por isso que me ouvem falar sempre em nocautes", disse Wilder.
A julgar pelos rematches de Deontey na carreira (nocaute no primeiro assalto contra Bermane Stiverne, vitória frente a Luis Ortiz no sétimo assalto) a sua confiança está em alta. O que não quer dizer que esteja satisfeito com o crédito que lhe tenham dado.
"Não recebo o crédito devido por tudo o que faço. [É algo] que será sempre algo que vai acontecer, o que é OK, porque a vida tem sido assim para mim e provei a todos que estavam errados. Fico a com a sensação de que tenho que provar algo. Tenho-o várias vezes. Portanto, como é que duvidam de mim depois de tudo isto [que fiz na minha carreira]?", questionou.
O campeão dos pesos pesados da WBC é um homem que derrotou brutalmente 40 oponentes (quando se diz brutalmente, leia-se nocautear até o adversário cair estatelado no chão) até chegar ao recorde de 42-0-1 (42 vitórias, zero derrotas, um empate, precisamente contra Fury). Wilder acredita que a sua técnica, mais do que qualquer outra coisa, é a responsável pelo seu sucesso no ringue.
Tyson Fury foi o único lutador com quem combateu que não conseguiu nocautear. O que nos leva à questão: será à segunda? Os especialistas estão divididos. Segundo a BBC, de um lado diz-se que Wilder tirou uma lição do primeiro encontro e que vai acompanhar a pressão de Fury pelo controlo do ringue. Por outro lado, outros alegam que Fury está mais forte e que o combate só vai ser decidido nos pontos e a favor de inglês. Nas casas de apostas, o favoritismo é ligeiro, mas parece que estão com Wilder. No fundo, melhor, melhor, é esperar para ver.
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