No Brasil, as trocas de treinador durante o ano habitualmente são feitas para dar um “facto novo” — expressão utilizada no país semelhante à "chicotada psicológica" que se costuma empregar em Portugal quando se despede um técnico — a equipas em má fase, visando um impacto praticamente imediato na performance durante um campeonato. Não há grande filosofia ou planeamento. Troca-se para chocalhar a moral do plantel e fazer a equipa render mais.
O Flamengo, ao perder Jorge Jesus para o Benfica, viu-se obrigado a repensar a sua visão de jogo e essa mudança é muito mais complexa do que a busca por um simples "facto novo".Domènec Torrent — ou Dome, como é chamado o treinador catalão —, é adepto da escola Guardiolesca de futebol posicional. Jorge Jesus é um criador do caos em campo com um futebol mais agressivo, baseado em movimentação e aproximação. Por mais que se questione o quanto a tática pode explicar um desempenho de uma equipa, a mudança de estilos obriga a um período de adaptação e paciência.
Os primeiros resultados ruins e algumas escolhas polémicas deixaram a “pulga atrás da orelha” dos adeptos. Dome mostrou que ainda não tinha entendido o que causou o sucesso do Flamengo em 2019 e, diferente do que pregou nas conferências de imprensa ao chegar, partiu logo para implementar a sua filosofia de jogo. O mau desempenho no arranque do Brasileirão escondeu o Flamengo, antes favorito a vencê-lo para 10 em cada 10 apostadores.
Mas, para um plantel com a qualidade individual e a fartura de bons jogadores que tem o campeão de 2019, o período de adaptação não duraria para sempre. Nos últimos três jogos, com três vitórias, o Flamengo mostra que começa a entender o pensamento de Domènec e apresenta um repertório tático mais amplo do que dispunha com Jorge Jesus. Soube jogar de forma mais reativa contra o Santos, na Vila, e, com um novo 4-2-3-1, misturou conceitos de amplitude do jogo posicional com a aproximação entre Everton Ribeiro e Arrascaeta, que marcaram os momentos altos do ano passado, nas duas vitórias seguintes, contra Bahia e Fortaleza.
O resultado foi um arranque na tabela, que os coloca na 5ª posição e uma sequência de boas jogadas e golos bonitos, com a assinatura de Everton Ribeiro. Por mais que Gabigol, Bruno Henrique e Gerson tenham tido mais destaque entre os media em 2019, é Everton Ribeiro a cola que une o meio campo do Flamengo. O jogador, saindo da direita para o centro do terreno, sempre com muita qualidade técnica, é o motor que dita o ritmo do jogo. Não à toa, chegou à Seleção Brasileira antes dos demais e está no radar de Tite como alguém que pode trazer algo diferente ao 11 canarinho.
Jorge Jesus teve 50% de aproveitamento nos primeiros oito jogos, contra 58% de Dome. A equipa atual só não supera o começo do Mister em 2019 nos golos marcados. O treinador catalão impõe um rodízio no elenco, sem medo de deixar no banco os destaques da equipa. Já JJ jogava quase sempre com os mesmos 11. Se por um lado, alguns craques como Arrascaeta e Gabigol ainda chiam por ficar no banco, Dome ganha opções motivadas entre os reservas como Pedro e Thiago Maia e isso será muito útil ao longo do ano.
Agora, em crescimento, as equipas que estão na liderança veem um gigante no retrovisor. Com cinco substituições a cada jogo e pouco intervalo entre as partidas, o plantel farto do Flamengo é um grande diferencial. Se continuar a evoluir o seu jogo como pensa Dome, resolver alguns dilemas na defesa, que continua um pouco insegura, e aprender a controlar a partida sabendo quando acelerar e quando respirar, vai ser difícil impedir uma arrancada que os coloque novamente em posição de vencer, com folga, o Brasileirão.
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