Quando Mark Twain escreveu “O Príncipe e o Pobre”, que se viria a tornar num dos seus contos mais populares, o seu próprio idealismo – enquanto defensor do movimento operário e apoiante de causas cívicas, como a abolição da escravatura – conferiu à obra um importante caráter moral que se resume em poucas palavras: independentemente do nosso estrato social, dos cargos de poder que ocupemos ou das experiências de vida que tivemos, somos todos, seres humanos, semelhantes. E o futuro, que no caso significa moral e justiça, constrói-se pacífico, caso nos consigamos colocar por um breve instante que seja na pele do outro.

O príncipe Edward percebe-o quando sai do seu palácio e é forçado a olhar a pobreza de frente, a mesma em que Tom Canty chafurdou ao longo da sua existência. A sua compreensão do que o rodeava para além das muralhas e dos ensinamentos que lhe foram dados, sobretudo o de que o povo existia para o servir, fez dele, em última análise, melhor rei. O mesmo é válido para o próprio Tom, que na pele do príncipe entendeu que quem ocupa posições de poder vive dentro de uma redoma que, a si, lhe parece incompreensível.

O positivismo com que o conto termina esbarra, claro está, na realidade: o poder corrompe, por mais boas intenções que se possam ter. Corrompe, e ajuda a corromper. O Manchester City, há mais de uma década detido por realeza árabe, é disso exemplo. Ainda que a UEFA tenha colocado o clube em xeque – sem querer fazer um trocadilho com o título que enverga Mansour, membro da família real dos Emirados Árabes Unidos e que é de facto dono dos azuis de Manchester –, devido a violações dos regulamentos respeitantes ao fair-play financeiro, a sentença final do Tribunal Arbitral do Desporto ajudou o City a manter-se nas Liga dos Campeões, de onde havia sido excluído.

Por seu turno, o FC Porto continua intervencionado pela mesma UEFA, pelos mesmos motivos, vendo-se obrigado, desde há alguns anos para cá, a ter muito cuidado com as contas que apresenta anualmente. Que é como quem diz: o Príncipe lá se safou, enquanto o Pobre continua a penar. E mesmo que, dentro de campo, o dinheiro pareça não importar grande coisa (se assim fosse, o City seria campeão europeu todos os anos), a verdade é que ajuda. E muito. Segundo o Transfermarkt, o City detém um valor de mercado avaliado em 1,08 mil milhões de euros – uma soma assombrosa, principalmente quando comparada com os “míseros” 251 milhões de euros que vale o FC Porto.

Parte disto serviu para que muitos adeptos portistas entrassem em campo (isto é, no sofá, já que as bancadas do Ettihad ainda se encontram a braços com a pandemia) já derrotados: o City tem mais, logo é melhor. Esquecendo-se, porventura, que no ADN portista está a ideia de que o FC Porto nunca se rende, e de que se supera sempre nos momentos mais difíceis. A história encontra-nos inúmeros exemplos disso, mesmo que o passado recente não o faça. Antes deste City, nas últimas cinco deslocações a Inglaterra, os azuis-e-brancos somaram quatro derrotas e um empate, frente ao Liverpool, já depois de terem sido goleados por 5-0 no Dragão. Se andarmos mais para trás, os números são ainda mais assustadores...

Se a Velha Albion fez tremer o FC Porto, o facto de ter somado dois resultados negativos de forma consecutiva – derrota surpreendente frente ao Marítimo, em casa, e empate com o Sporting, em Alvalade, ao cair do pano e num jogo onde podia e devia ter produzido muito mais – deixou, do mesmo modo, os portistas naquele modo depressivo tão sobejamente conhecido por quem de facto ama o futebol e o clube para o qual torce: quando ganhamos ninguém nos para, quando nos param nunca mais caminharemos.

Claro que para lá desse mal estar dos adeptos há sempre quem acredita e, principalmente, quem trabalha. Antes do jogo, Pepe (que em Alvalade demonstrou uma vez mais que é o melhor central da nossa liga) confessou ter o sonho de voltar a ganhar a Liga dos Campeões. Jorge Nuno Pinto da Costa relembrou que o FC Porto “nunca foi favorito” em qualquer competição internacional, e nem isso o impede de ter sete troféus (mais seis que o City, que “só” ganhou uma Taça das Taças há meio século). E Sérgio Conceição voltou a vestir a capa de Sérgio Conceição e declarou que a equipa iria tudo fazer para contrariar a mesma história que nos dizia que, antes deste jogo, o FC Porto nunca havia ganho em Inglaterra.

Para o efeito, o treinador português começou por surpreender, mexendo no 11 titular e alimentando a estreia de Sarr com a camisola portista, fazendo também entrar Fábio Vieira para o centro do terreno. Manafá, titularíssimo até hoje, foi remetido para o banco de suplentes. Otávio nem a isso teve direito: bancada com ele. Começaram aí as dúvidas: Sarr a lateral, posição que também conhece, e manter o esquema habitual? Ou fazer subir Mbemba para o meio-campo e jogar num 3-5-2 que foi testado na pré-época, com Marega ao lado de Corona? O City, vindo de uma vitória à tangente sobre o Arsenal, dispôs três portugueses em campo – Rúben Dias, João Cancelo e Bernardo Silva –, com Sterling e Agüero na frente para atacar a baliza de Marchesín.

As dúvidas existentes dissiparam-se logo aos primeiros segundos de jogo, quando deu para perceber que, sim, iriam ser três os centrais que o FC Porto apresentaria em Manchester. Corona, à direita, e Zaidu, à esquerda, desciam do meio-campo para ajudar, num modelo de 5-4-1 a defender – talvez seguindo a velha máxima de que casa arrombada, trancas à porta, já que nos primeiros quatro jogos a contar para o campeonato o FC Porto sofreu seis golos, o pior registo do milénio para os azuis-e-brancos.

A aposta de Sérgio Conceição deu resultado. O FC Porto entrou no jogo com respeito, mas sem medo. Ao apito inicial (depois de um momento em que ambas as equipas se ajoelharam em silêncio, numa iniciativa de apoio ao movimento Black Lives Matter, com a câmara a focar-se em Marega, célebre vítima de racismo em Guimarães) seguiu-se o estilo de jogo comum às equipas de Guardiola: muita troca de bola, à procura do erro adversário.

Que raramente surgiu. Com Pepe a comandar, Sarr e Mbemba mostraram-se muito seguros ao longo de todos os primeiros 45 minutos, cortando lances potencialmente perigosos e antecipando-se a tantos outros, aparecendo quase sempre no sítio certo. A pressão alta do City, nos primeiros minutos da partida, pouco serviu para assustar a turma da Invicta, que acabou por chegar primeiro ao golo, com a genialidade de Luis Díaz em evidência.

O colombiano recebeu a bola a passe de Uribe, que aproveitou uma má jogada de Rúben Dias, fintou dois e rematou cruzado, ao canto inferior direito, sem hipóteses para Ederson. No Porto, e onde houvesse um portista, não houve garganta que não gritasse. Sol de pouca dura. Três minutos volvidos, o árbitro letão, Andris Treimanis, assinala penálti a favorecer os ingleses, por falta de Pepe sobre Sterling. Um pequeno grande pormenor: antes dessa falta, Gündoğan pisa visivelmente Marchesín, numa jogada confusa e cheia de ressaltos. O VAR analisou o lance, mas não recuou. Da marca dos 11 metros, Agüero fez o empate.

O empate, contudo, não empolgou o City. A equipa de Guardiola mostrou-se bastante nervosa na primeira parte, aparentando tiques de soberba, não respeitado suficientemente o FC Porto e pensando que mais cedo ou mais tarde os golos surgiriam. E quase que surgiam, mas para o lado dos portugueses. Aos 21 minutos, Uribe não aproveitou uma distração de Ederson e atirou por cima com a baliza praticamente escancarada. E, aos 42, um passe rasgado de Corona para Marega acabou com o maliano a cruzar para o centro da defesa, onde já estava um jogador do City. Logo a seguir, Pepe queixou-se de ter sido empurrado na grande área; Treimanis nada assinalou.

Ao intervalo, os dados espelhavam esse nervosismo da equipa de Manchester, que viu também Kyle Walker, Bernardo Silva e João Cancelo serem amarelados. Os 65% de posse de bola para os de Guardiola eram lógicos, mas o FC Porto havia realizado mais remates – 5 contra 3 – e demonstrado uma eficácia de passe próxima da dos ingleses – 77& contra 87%. Os portistas acabaram os primeiros 45 minutos com nota bastante positiva, e poderiam mesmo ter chegado ao descanso a vencer.

Esse sonho de trazer os três pontos de Inglaterra acabou por se mostrar fugaz. À semelhança daquilo que têm sido as suas prestações nos jogos a contar para a Liga NOS, o FC Porto fez uma segunda parte bastante mais pobre, num misto de cansaço, más decisões e quiçá alguma pressão psicológica; não esquecer que seis dos titulares jogaram, esta noite, a Liga dos Campeões pela primeira vez. O City entrou com outra raça, mais pressionante, e podia ter chegado ao golo logo aos 48 minutos, não fosse uma fantástica intervenção de Marchesín a remate de Gündoğan.

O jogador alemão, filho de pais turcos, redimir-se-ia minutos depois dessa partida, já depois de Sérgio Conceição ter retirado Luis Díaz de campo (o colombiano estava a ser o melhor no ataque, mas pareceu ter saído com queixas físicas) e ter colocado Manafá no seu lugar, destacando Corona para o acompanhamento a Marega. Aos 63 minutos, Fábio Vieira cometeu falta (pareceu ter-se limitado a jogar a bola) sobre Gündoğan à entrada da área, em zona frontal à baliza. Chamado a converter, o médio rematou de forma potente: a bola sobrevoou a barreira e Marchesín nada pôde fazer. Estava consumada a reviravolta.

Respirou melhor o City, perante um FC Porto que pareceu ter abandonado a ideia de ataque, impávido perante a pressão e o controle realizados pelos azuis de Manchester. Guardiola percebeu-o, e de uma assentada colocou os dois jogadores que sentenciariam a partida: Phil Foden e Ferrán Torres. Aos 72 minutos, o espanhol marcou um grande golo após tabelar com o seu compatriota, na primeira ocasião em que a defesa portista – e sobretudo Manafá, que não acompanhou Torres – ficou bastante mal vista. Marchesín bem esticou a luva, mas nada a fazer. O City chegava, com mérito, ao terceiro golo.

O 3-1 arrefeceu a partida, devolvendo o City a uma posição na qual se sente mais cómoda: controlando o jogo, sem arrancadas de maior. Alguma iniciativa por parte do FC Porto, natural dada a desvantagem, deu em quase nada – e os Dragões, na segunda parte, só conseguiram rematar à baliza pela primeira vez aos 78 minutos, numa jogada de Marega que saiu demasiado por cima. Nakajima, Nanu e Taremi já se encontravam em campo por esta altura, e logo depois foi a vez de Evanilson se estrear com a camisola do FC Porto.

Sérgio Conceição voltava ao 4-4-2 habitual, com as saídas de Zaidu, Corona e Fábio Vieira, na tentativa de retirar algo mais do jogo, mas sem sucesso. Até final, as jogadas mais perigosas continuaram a pertencer ao Manchester City, que podia ter chegado ao quarto golo num lance em que Marchesín fez boa figura perante remate de Mahrez, e num outro, mais confuso, em que a bola acaba no poste direito da baliza defendida pelo mexicano quando todos esperavam que Treimanis assinalasse falta de Pepe sobe Sterling. O central português viu amarelo e ainda reclamou com o adversário.

Os ingleses não perderam o norte, mas perderam Fernandinho, que se lesionou seis minutos após entrar em campo. Resultado justo, ainda que o FC Porto saia daqui de cabeça erguida e com um certo amargo de boca: tudo poderia ter corrido de outra forma, caso os níveis da primeira parte se tivessem mantido nos segundos 45 minutos, e com queixas de algumas das decisões do árbitro letão, o penalty à cabeça. O Pobre mostrou que o Príncipe não é nenhum bicho-papão.