Sexta-feira, 21 de maio, foi o primeiro dia de três do Vodafone Rally de Portugal. Um ano após a suspensão devido à Covid-19, a 54.ª edição da histórica prova automobilística regressou com arranque marcado para Coimbra e final em Lousada, a norte, com direito a uma superespecial.

A Região Centro de Portugal foi rainha nos 122,88 quilómetros cronometrados, divididos por oito especiais, sete das quais nas estradas do Centro. Dupla passagem por Lousã, Góis e Arganil e um regresso: 20 anos depois, Mortágua reentra no roadbook com um novo traçado desenhado ao longo de 18 quilómetros à volta da Barragem da Aguieira.

O percurso desta 4.ª etapa do Mundial de 2021 serviu ainda de segunda prova do ano do Campeonato de Portugal de Ralis, ganha por Armindo Araújo (Skoda Fabia Rally2 Evo).

O belga Thierry Neuville (Hyundai i20) viria a sofrer um embate na 7.ª classificativa. Sébastien Ogier ganhou a classificativa, Ricardo Teodósio recebeu muitos aplausos e André Villas-Boas mostrou outros dotes ao volante de um Citroen C3 depois de ter oferecido a camisola do Marselha a Ogier. O treinador de futebol terminou o primeiro dia em 39.º da classificação geral, a pouco mais de 17 minutos do líder Ott Tänak.

Paulo Rascão / Madremedia

As máscaras que substituem lenços à cowboy

Num ano marcado pela pandemia, a crise sanitária obrigou a adaptações especificas para o público amante da velocidade. Um plano de contingência passou e passa pelo controle de lotação em espaços reservados, pedidos para evitar aglomerados, apelos à manutenção de distância social e uso obrigatório de máscaras.

As máscaras servem de proteção sanitária e não só. Substituem o habitual lenço de cornucópias, estilo cowboy, contra o mar de pó provocado pelos carros e pilotos entre travagens nas curvas e acelerações à saída destas, antes de levantarem voo nas retas e elevações do terreno.

Em Mortágua, as estradas foram cortadas 120 minutos antes de o primeiro carro, às 16h05, acelerar debaixo de gritos e aplausos. Momentos vividos pelos espectadores de telemóvel na mão, acompanhando o sentido do percurso até serem obrigados a virarem costas às máquinas e ao mar amarelado de terra batida que se levanta a cada passagem.

“Era 1h00 da manhã quando vim. Não apareceu ninguém até às 5h00. O segundo a vir foi a GNR”

A ida quase de véspera é uma boa conselheira para quem tem a tradição no corpo de passar uma noite ao relento para ver os “muitos cavalos” passarem à frente do nariz.

A zona é um verdadeiro anfiteatro municipal. O “povo” espalha-se pelas encostas naturais de troços já existentes que mais não são do que vias utilizadas pelos produtores florestais do concelho.

Paulo Rascão / Madremedia

Fábio Abreu está habituado a estas romarias. “Tenho 21 anos. Não... tenho 26”, exclama. O cansaço talvez explique esta idade subtraída pelos cinco dedos de uma mão. A razão é simples. É que a outra foi utilizada repetidamente a contar as horas até ver ao vivo o que já não via há duas décadas na sua terra natal. “Tinha 6 anos quando passou por Mortágua”, recordou. “Acompanho o rali desde pequeno”, acrescentou.

Natural deste município abraçado pelas Serras do Caramulo e do Buçaco, com receio de não conseguir lugar reservado, a noite dava início à madrugada quando assentou praça na zona ZE-18. “Era 1h00 da manhã quando vim”, adiantou. “Vim, não — viemos. Somos 5”, retificou, apontando para a carrinha.

“Não apareceu ninguém até às 5h00. O segundo a vir foi a GNR”, sorriu. “Dormi 10 minutos numa cadeira, acordei fresquinho com a Guarda Nacional Republicana. Uns dormiram ao relento e outros no carro”, explicou apontando para cada um dos locais de repouso, uns mais decorados com mantas que outros.

Ao redor de Fábio Abreu, há vestígios do farnel escolhido para a ocasião. “Panados, leitão, vinho, 150 litros de cerveja e água”, menu resumidamente apresentado.

“Onde o homem vai, a mulher vai atrás”

A paixão pelo desporto automóvel é transversal. Rodeada de amigas, Ana Paes, funcionária da Câmara Municipal de Mortágua, assume: “amo o rali”. Uma paixão introduzida pela figura paternal. “Desde 11 anos que vou a Arganil e passo lá a noite. Há mais de 30 anos, portanto”, atestou, lamentando, no regresso dos carros à terra que a viu nascer, a ausência do seu pai. “É pena não o ter aqui”, disse, enquanto mostra fotografias antigas.

Quem não faltou ali foi a amiga e colega, Natacha Ferreira. Enquanto conversa, sem máscara, enaltece um precioso líquido que transporta numa pequena caneca. “É vinho caseiro. Tinto. É maravilhoso. Tem 13 graus”, informou.

Entrou no mundo automóvel pela mão da amiga “Anita”. A longa espera de mais de quatro horas para ver duas horas de prova não a incomodou. E deixa uma garantia assim que as máquinas seguirem para norte. “Vou fazer esta merda no fim a esgalhar”, prometeu debaixo de uma gargalhada.

A boa disposição faz parte da família Batista, Paulo e Carla. Paulo tem “30 anos de ralis”. Já Carla, garante: “Onde o homem vai, a mulher vai atrás”, uma adaptação de “#OndeVaiUmVãoTodos”, lema do SCP. E foram mesmo todos. Os dois filhos não faltaram à chamada. Um faltou à creche e a filha Ashley a uma prova intercalar na escola.

Paulo Rascão / Madremedia

Mas o rali e a ida ao local não se faz apenas no dia da prova. 15 dias antes do regresso de Mortágua ao percurso do Rally de Portugal, Joaquim Gomes foi inspecionar o terreno.

Natural de Águeda, veterano de idade, 60, desde os 15 nestas andanças, a antiguidade é um posto que lhe permite citar de cor vários campeões que viu passar. Jean Luc Therier, Markku Alen, Ari Vatanen, Michèle Mouton ou Tommi Makinen. E confere-lhe ainda autoridade para elogiar, com saudade, o troço do Préstimo (Águeda) e repetir o que muitos aclamam sobre Arganil. “É a Catedral”.

Uma ideia reforçada por Carlos Quaresma, de Albergaria-a-Velha. “Falar de rali, é falar de Arganil”, defendeu. Em suspenso, deixa um recado à organização. “Um rali tem de ter uma etapa à noite. Faz parte, ver as luzes e travões”.

Os últimos carros passavam ainda quando muitos dos que para ali foram desde cedo começaram a desmontar. A pé pela serra, caminharam em segurança, até aos carros, estacionados ao milímetro nas bermas das estradas de pó. Alguns a um bom par de quilómetros de distância do sítio de onde assistiram ao regresso de Mortágua aos ralis.

Este artigo faz parte do dossier "Aqui, no Centro" que conta com o apoio do Turismo do Centro