Às 16h00 do dia 20 de novembro, a Al Rihla ("A viagem "), bola fabricada pela marca alemã Adidas, com desenho inspirado nos barcos Dhow e cujo branco perolado remete para a indústria de pérolas tradicional do Qatar, estará no centro do relvado do Estádio Al Bayt.
A infraestrutura com capacidade para 60 mil lugares, localizada na cidade de Al Khor, a 35 quilómetros de Doha, construída pela Webuild SpA, empresa italiana, desenhada pela Dar Al-Handasah Consultants em parceria com a assinatura da AS+P Albert Speer + Partner, de Albert Speer Jr., octogenário arquiteto alemão, filho do homem que refez Berlim durante o III Reich, arrasta adeptos e espetadores para o mundo das tendas nómadas do Qatar.
A relva Platinum TE Paspalum, da Atlas Turf International, empresa norte-americana, testemunhará o pontapé de saída do Mundial 2022. A partida entre o país anfitrião (50.º do ranking FIFA, e número 113 aquando da atribuição da organização da prova, em 2010) e o Equador marca a estreia do primeiro mundial num país do Médio Oriente e islâmico.
Uma estreia, espera-se faustosa, realizada em estádios desenhados pelos melhores ateliês do mundo, de Norman Foster a Zaha Hadid, mas que não apaga um pesado rasto de um mar de acusações ao longo de anos, respeitante às violações dos Direitos Humanos e ocultação do número de mortes registadas na edificação dos estádios.
“O Mundial deveria ter sido feito noutro país. É o que penso, não tenho vergonha de o dizer”
Mais de 12 anos depois da decisão tomada em 2010, pelo então presidente da FIFA, Joseph Blatter, um arrependido de última hora assumido a poucos dias do arranque, nunca uma competição mundial foi tão questionada e escrutinada como esta. A pegada é pesada e na marca de água ficou registado o nome de “Mundial da Vergonha”. Dito e soletrado em todas as línguas da Arca de Noé.
O jornal britânico Guardian destacou em 2013 as mortes de trabalhadores migrantes (estima-se hoje mais de 6750) ocorridas durante a construção faraónica das oito obras de arte plantadas no deserto e equipadas com ar condicionado, aliadas aos abusos sobre os trabalhadores migrantes.
Desde então, vozes de protesto e acusações seguiram o trajeto de um comboio de dominós em queda. Eric Cantona, antigo internacional francês, avisou que não irá ver o Mundial do Qatar. Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, admitiu não se entusiasmar com a competição. A seleção australiana, numa manifestação coletiva, ecoou um protesto a propósito da violação dos Direitos Humanos no Qatar, e Ana Vitória, internacional brasileira ao serviço da equipa de futebol do Benfica, entrou em campo do lado das críticas. “O Mundial deveria ter sido feito noutro país. É o que penso, não tenho vergonha de o dizer”, afirmou ao SAPO24. “Espero que sirva como exemplo e lição”, completou.
As vozes contra não se cingiram ao balneário. Nas bancadas de vários estádios europeus, adeptos erguem tarjas. Pedem o boicote. Questionam as mortes.
Fora de campo, Paris e outras cidades gaulesas boicotaram os fun parks e não replicam a competição de seleções nas ruas.
A marca Hummel vestirá a seleção dinamarquesa de forma diferente.
Organizações Não Governamentais, Amnistia Internacional e diversos relatórios, como o recente relevado pela Equidem Research and Consulting, alertaram para as (degradadas) condições de trabalho dos migrantes.
A escolha do Qatar, país mais rico do mundo, para albergar a maior competição de nações, deu ainda origem a um filme – "The Workers Cup" — e levou a Netflix a produzir uma série: "FIFA: Futebol, Dinheiro e Poder?", estreada a 11 dias do arranque da competição.
Há 30 anos, o futebol passava por cima. Hoje é diferente
É neste ambiente que se vive a contagem decrescente para a 22.ª edição do campeonato do mundo de futebol, prova organizada pela FIFA.
“Estamos sentados em cima de uma bomba-relógio e ninguém sabe muito bem o que vai acontecer. É tão inédito o que estamos a viver que é difícil prever o desfecho de tudo isto”, avisa Daniel Sá, diretor executivo IPAM (Instituto Português de Administração de Marketing).
“O que há de relevante, e de novo, é efetivamente o comportamento de marcas e de adeptos. Se fosse há 20 ou 30 anos, não era assunto. Não havia tanto esta questão da responsabilidade social, vamos-lhe chamar assim, e o futebol passava por cima de tudo, porque era futebol”, comparou.
Hoje, no entanto, tudo parece ser diferente. “Isto é uma prova que os consumidores de hoje não são os mesmos de há 20 anos. São pessoas informadas e não pactuam com coisas que acham que não devem pactuar”, sustenta.
Daniel Sá recua na fita do tempo. “Começando no processo de escolha do Qatar, no mínimo estranho, e não tenho prova de nada, a uma data estranha, em que jogar nesta altura é pôr tudo de pernas para o ar, afeta as competições todas”, opina.
“É uma prova de fogo para a FIFA e pode acabar muito mal”
Este Mundial “é uma prova de fogo para a FIFA, e pode acabar muito mal. Vamos ver o que vai acontecer”, atira.
Debruça-se sobre o passado e o impacto económico desta competição e compara. “Do que víamos das edições anteriores, era sempre a somar de edição para edição, e ganhava proporções cada vez maiores”, relembra.
Para o Qatar 2022, “creio que provavelmente entraremos num cenário onde teremos isto travado. E onde pela primeira vez, não será ascendente, mas sim descendente”, antecipa. “Precisamente por coisas deste género, quando as marcas decidem boicotar. Os fun parks são exemplo disso”, alude.
“Uma prova no Qatar tem impacto económico em Portugal. Fizemos durante anos essa análise. Nos fun parks consegue-se recriar a competição no mundo inteiro. Agora, se uma parte do mundo está zangada com isto, vamos ter um consumo mais modesto, seguramente, logo será natural enfrentar um impacto económico abaixo do estimado”, antevê.
A associação Frente Cívica, por exemplo, pediu às câmaras municipais de Lisboa e do Porto que "boicotem" o Mundial, em protesto contra "a corrupção e as violações de direitos humanos" no Qatar. Segundo um comunicado, a associação pediu a Carlos Moedas e a Rui Moreira que não instalem nem permitam a criação, em Lisboa ou no Porto, de "quaisquer áreas para visualização coletiva dos jogos". As autarquias não se pronunciaram sobre o tema, mas, a poucos dias da competição, não há qualquer indicação de que estes espaços, que costumam ocupar zonas nobres das cidades, sejam montados.
A overdose Mundial que pode apagar tudo
As críticas, as vozes de protesto e as ameaças de boicote foram em crescendo à medida que nos aproximamos do apito inicial. Mas, e depois de a bola rolar, será que permanecem no radar.
“O futebol tem emocionalidade, que nos faz a todos, uns mais e outros menos, ser irracionais”, qualifica Daniel Sá. “Dificilmente choramos por uma marca que não o futebol. Nunca chorei pela marca das minhas calças de ganga ou de iogurtes, e pelo futebol já chorei de alegria e tristeza”, garante.
“O espetáculo tende a fazermos esquecer tudo isto. A bola começa a rodar e o Mundial é uma overdose de um mês que toda a gente gosta. Há esse efeito que passa por cima de tudo”, avisa.
Faz uma pausa no mundo da bola e na pontaria ao Qatar. “Isto que vivemos no Qatar, este tema da responsabilidade social, não é exclusivo do futebol. Se olharmos para as sociedades e quisermos apontar inconsistências políticas e económicas, não há país que se safe. Todos têm telhados de vidro”, assegura.
O risco do Mundial deixar do ser o que é
"Quem é que paga o futebol, a maior festa do mundo e o Mundial?”, questiona Daniel Sá.
Enumera dois grupos. “Os patrocinadores, que pagam grande parte da fatura, e os espetadores, os que compram os bilhetes e vão ao estádio e os que assinam as Sport tv’s desta vida e permitem o encaixe da televisão”, responde.
Ora, se um conjunto significativo daqueles que pagam (adeptos e patrocinadores) estão” desagradados” e “querem deixar de pagar”, não é de admirar que o impacto do ponto de vista económico seja “muito grande”, alerta.
O especialista em marketing desportivo pega no presente e antevê o futuro dos mundiais. “Isto pode ser um marco do que podem vir a ser as próximas edições dos mundiais, daqui a 20 ou 30 anos”, vaticina. “Pode ser um momento de quebra neste tipo de competição e o Mundial de futebol deixar de ser o que é. Honestamente, acho que existe esse risco”, assume.
Antecipações à parte, Daniel Sá promete vestir a camisola de adepto e analista assim que começar a prova.
“Vou ver e sou um indivíduo atento, mas, por ser tão estranho o Mundial nesta altura, eu próprio como consumidor ainda não tenho os horários. Confesso que noutro dia fui ver o grupo de Portugal, já não me lembrava”, reconhece.
“Não são só os jogadores que entram em estágio. O próprio adepto também entra em estágio. Para este consumo. E eu, enquanto adepto, ainda não entrei na fase de estágio. Parece uma coisa tão distante, mas na verdade começa em dias. É um efeito no mundo inteiro, um efeito mundial, não é só em mim, porque se o fosse era irrelevante, e isso pode ter um impacto negativo”, finalizou Daniel Sá, diretor do IPAM.
O SAPO24 é a marca de informação do Portal SAPO, detido pela MEO, que neste Mundial se associou à Amnistia Internacional numa campanha pelos direitos humanos no Qatar.
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