Caro leitor, interrompa tudo o que está a fazer e leia as próximas linhas. Suspenda todos os programas sociais previstos para este fim de semana, dê uma espreitadela ao calendário e estenda a vista até ao próximo dia 28 de outubro para não falhar nada, não se deixar surpreender a si, à sua cara-metade nem o círculo de amizades.

A razão é simples? Começa hoje a 10.ª edição do campeonato do mundo de râguebi.

Sim, leu bem. Râguebi. O jogo da bola oval, jogado à mão (maioritariamente) para trás para se chegar à frente (pode usar o pontapé para encurtar distâncias), no decurso do qual os lances que suscitam dúvidas ao líder da equipa de arbitragem são analisados no TMO (o VAR desta modalidade, criado no longínquo ano de 1999), o Television Match Official, em inglês, imagens essas sempre suportados pelo áudio do árbitro. Claro como água, sem mãos à frente da boca, tudo a bem da verdade desportiva e sem perdas de tempo e respeito.

Antes de se falar sobre a competição, fica um aviso prévio. No calendário a ter em atenção, há já esta noite um evento a sincornizar: 20h45 (Sport TV3), França-Nova Zelândia, no Stade de France em Paris, dois pesos pesados da modalidade, duas cores e dois hemisférios frente a frente: os Les Bleus e os All Black, ou em português, os azuis (seleção francesa) e os homens de preto vindos dos mares Sul, da Oceânia.

Já lá iremos a este jogo, na Cidade das Luzes, onde todos os holofotes estão projetados para o primeiro pontapé para o ar a ter lugar no mesmo caldeirão de emoções com capacidade para 80 mil adeptos e que está reservado para acolher a final, no último sábado de outubro.

Mas voltemos ao Mundial de Râguebi, a terceira competição internacional mais mediática e o maior evento desportivo do ano.

Pela segunda vez, na história das 10 edições, decorre em França (a cidade já tinha recebido o torneio em 2007), competição que coincide com o bicentenário da invenção do jogo, segundo reza a história contada criado na cidade de Rugby por William Webb Wellis.

Serão 9 os estádios e nove as cidades, prolongar-se-á por sete semanas, 51 dias, contempla 48 jogos e cada seleção, 20 nações ao todo, terá, na fase de grupos (cinco países divididos por quatro grupos), cinco dias de intervalo, no mínimo, entre cada um dos quatro encontros da fase de grupos. O físico assim o exige. E, nesses hiatos de tempo – haverás sempre dois a três dias sem competição a meio da semana -, podemos também nós respirar e dedicar atenção a outros assuntos mundanos.

Portugal é uma das 20 seleções presentes. Será a segunda participação portuguesa, marcada pelo regresso 16 anos depois ao mais alto patamar competitivo, de novo em França, país de vasta diáspora portuguesa.

Os lobos, como é conhecida a seleção nacional, entram em jogo na 2.ª jornada. O País de Gales, dia 16 (16h45, RTP 2), em Nice, é o adversário da estreia. Segue-se a Geórgia, dia 23 (13h00, RTP 2), Toulouse, Austrália, a 1 de outubro (16h45, RTP 2), Saint-Étienne e ilhas Fiji, a 8 de outubro (20h00, RTP 2), novamente em Toulouse. Anotou as datas?

Para quem liga a pormenores de ranking (no râguebi internacional, mais que em qualquer outra modalidade, esse diferencial ajuda a explicar os resultados), Portugal é 16.º. O melhor na tabela privada são as Ilhas Fiji. À seleção do Pacífico Sul é 7.ª, segue-se a Austrália, 9.ª, País de Gales (10.º) e Geórgia (11.ª).

O peso do Hemisfério Sul

Antes dos prognósticos, a estatística dos campeão nas nove edições anteriores: foram quatro as nações campeãs, sendo uma só da Europa, isto, é do Hemisfério Norte. O Sul é, neste caso, mais “rico” que o outro lado do ponteiro da bússola e, por isso, tem sido quem mais tem largado os foguetes do triunfo.

A África do Sul (2.ª do ranking mundial) é a campeã em título. Soma três títulos mundiais no curriculum (1995, 2007 e 2019), os mesmos da Nova Zelândia (1987, 2011 e 2015), atual n.º4. Austrália, integrada no Grupo C ao lado de Portugal, soma dois (1991 e 1999).

Por fim, a Inglaterra (2003), a oitava da hierarquia neste momento, a única seleção europeia (e do Hemisfério Norte, reforce-se) a erguer a Taça Webb Ellis. Conseguiu o feito depois de ter perdido três finais, tantas quantas a França (n.º 3 do ranking) perdeu.

A Irlanda entra na prova na qualidade de líder mundial do ranking, mas a história não joga a seu favor. Ficou sete vezes pelo caminho nos quartos de final e nunca passou dessa fase.

O pensamento jogo a jogo deve nortear os irlandeses até porque estão colocados no chamado “grupo” da morte, ao lado da Escócia (4.º) e sul-africanos.

 

Les Bleus vs All Blacks. Uma questão de história e finais perdidas

História é algo que França, país do melhor jogador do mundo da atualidade, Antoine Dupont, e tricampeã mundial de sub-20, quer fazer e contrariar.

Em nove edições somente dois anfitriões conseguiram terminar a competição como campeões mundiais: os sul-africanos, em 1995, na primeira participação na prova (os Springboks estiveram ausentes nas edições de 1987 e 1991 devido ao Apartheid) e a Nova Zelândia, em 2011. Nesse ano e nessa final, frente à França, os All Black venceram a partida decisiva com menor margem de diferença: 8-7. Uma final realizada no mesmo palco, Eden Park, em Auckland, em 1987, ano em que a França se estreou a perder o jogo do título (29-9). Pelo meio sentiu ainda o sabor amargo do vice-título em 1999, derrotada pela Austrália na edição organizada pelo Reino Unido e França (final em Cardiff, País de Gales).

Os XV comandado por Fabien Galthié quer, por isso, quebrar uma dupla barreira psicológica. Chegar à final e ser campeã em casa.

Para efeitos psicológicos nada melhor que começar frente à Nova Zelândia, a seleção que transformou o outrora inofensivo e descoordenado haka numa poderosa arma de jogos mentais.

No entanto, é-se forçado a olhar de novo, para a história e a estatística. Em oito jogos disputados nos campeonatos do mundo, além das duas finais perdidas frente aos neozelandeses, França soma mais três desaires nos sete encontros disputados. Um pesa na memória pela negativa, e remonta à altura em que foram esmagados (62-13), na Catedral a norte de Londres.

A afagar o ego francês, duas vitórias. E que vitórias frente ao adversário de hoje. A primeira, em 1999, em Twickenham, catedral da bola oval, frente aos All Blacks debaixo da batuta de Jonah Lomu (um dos maiores de todos os tempos) num dos melhores jogos que há registo, os franceses recuperaram de uma desvantagem 24-10 para 43-31, uma reviravolta na qual marcaram 33 pontos em 28 inesquecíveis minutos, atirando ao tapete a todo-poderosa Nova Zelândia.

Oito anos e duas edições depois, em 2007, os azuis e os homens de preto voltam a encontrar-se, em Cardiff para uma nova cambalhota no marcador. A Nova Zelândia vencia ao intervalo 13-3, mas a França seguiu em frente na competição ao vencer por 20-18.

Mas há mais dados estatísticos que alimentam este icónico duelo de nações. Os All Blacks, de Richie Mo’unga e Ardie Savea, chegam a França imbatíveis nas fases de grupos em todos os mundiais. No entanto, o XV comandado, por Ian Foley, aterra em Paris com uma derrota história frente à África do Sul no último jogo de preparação. Os Springboks venceram por 35-7.

França não perde em casa desde o jogo com a Escócia a contar para o Torneio das Seis Nações 2021, num Stade de France vazio devido à pandemia do COVID-19. Foi o único desaire caseiro dos 39 jogos da era Galthié, desde 2020. Entra em campo 100% vitorioso nos duelos caseiros, em agosto, antes de arrancar o Mundial (Austrália, Fiji, adversários de Portugal e Escócia).

Por fim,  há um dado que pode baralhar o fardo da história. Em 2019, a Nova Zelândia derrotou a África do Sul no primeiro embate, mas seriam os sul-africanos a levantarem a Taça Webb Wellis. No final se saberá se a história pesa ou é o jogo que dita as leis.