A reta final da passada época do Sporting teve dois destaques: o novo modelo de Rúben Amorim e Jovane Cabral. Se a proposta de jogo do técnico — assente na linha de três defesas e alas móveis — acusou dores de adaptação no decorrer do campeonato e deixou uma nota amarga nos adeptos, o extremo cabo-verdiano essencialmente demonstrou que era ele e mais dez, tal o protagonismo que assumiu.
O prenúncio era de que esta seria a sua temporada de afirmação, abandonando o rótulo de abre-latas que já tinha desde que se fixou na equipa sénior em 2018, especialmente quando saiu do banco para desbloquear um nulo contra o Feirense. Os primeiros jogos de 2020/2021 trataram de frustrar as suas ambições.
Perdido num papel em que tinha de fazer de ponta de lança móvel em vez de ser um extremo desequilibrador, as suas atuações insequentes — em conjunto duas lesões que o arredaram de um total de sete jogos — tiraram-no do onze titular, remetendo-o à familiar condição de suplente de luxo e vendo quer Sporar, quer Tiago Tomás, a ocupar o lugar para si originalmente designado. À entrada desta partida, alguma imprensa equacionava, inclusive, a sua venda para financiar um ponta de lança de raiz.
Aos rumores, Jovane respondeu com golos. Mas já lá vamos, que esta não é a única história do jogo, mas é a derradeira.
É certo e sabido que quase todos os “clássicos” disputam-se antes do jogo sequer começar. “Mind games” e provocações, recados a partir dos gabinetes de comunicação, denúncias de pressão sobre os árbitros, todas estas coisas tornaram-se parte comum do futebol em Portugal.
Desta vez não foi diferente, e a pandemia veio ainda agravar o tom. Tudo porque, de um lado e do outro, houve jogadores que não puderam ir a jogo por terem testado positivo à covid-19. Do lado do FC Porto, Otávio (que já tinha falhado a partida anterior), Sérgio Oliveira, Luis Díaz e Evanilson foram as baixas anunciadas. Já do lado do Sporting, Nuno Mendes, Sporar, Luís Neto e, mais recentemente, Bruno Tabata. Mas houve um senão.
Na véspera do encontro, o Sporting anunciou que tanto Nuno Mendes como Sporar iriam a jogo pois tinham, na verdade, sido casos em que os testes PCR deram falso positivo, e que outros dois testes efetuados “em laboratórios distintos”, nos dois dias seguintes, foram negativos. Tal decisão espoletou uma reação do FC Porto, acusando os leões de proceder a um "atentado à saúde pública" ao querer contrariar o protocolo adotado de cumprimento de 10 dias de isolamento para casos positivos e ameaçando até não jogar “para defesa de todos os intervenientes”.
O "bruaá" continuou hoje com o Sporting a acusar em resposta o Porto de "pressionar, de forma absolutamente inaceitável, as autoridades da Saúde e a Liga” e a questionar os critérios do laboratório que fez os testes, a Unilabs. Até o Sporting de Braga se meteu ao barulho, acusando os seus homónimos de querer ter “tratamento de exceção neste contexto pandémico". Por fim, o veredito deu-se pouco antes do jogo: a Direção-Geral da Saúde pronunciou-se e Nuno Mendes e Sporar não puderam subir ao relvado.
Entrariam então quer de um lado, quer do outro, jogadores que não figuram habitualmente nos onzes titulares: do lado do Porto, Grujić foi escalado para o meio campo, Felipe Anderson entrou a extremo esquerdo e a equipa alinhou com uma defesa a três defesas composta por Pepe, Mbemba e Diogo Leite. Já o Sporting teve Gonçalo Inácio na sua linha defensiva e Antunes a ocupar a ala esquerda.
O Sporting vinha para esta partida com a pior sequência de resultados desde o início da época — derrota (e consequente eliminação) frente ao Marítimo para a Taça de Portugal e empate em casa com o Rio Ave para o campeonato —, o que diz muito do que tem sido a época positiva dos leões. Já o FC Porto viu interrompida uma sequência ininterrupta de 10 jogos consecutivos a vencer na passada sexta-feira, já que empatou no Dragão no “Clássico” frente ao Benfica. Ainda assim, importa reter que a equipa portista não perde desde 30 de outubro, quando caiu com o Paços de Ferreira na Mata Real. Tendo ambas as equipas vindo a percorrer um caminho sobretudo de vitórias ao longo da temporada, foi justamente o encontro que ambas tiveram em Alvalade que as fez perder pontos, anulando-se num 2-2 pleno de polémica.
Tendo em vista colmatar uma das raras lacunas no seu palmarés, o Porto subiu ao Estádio Magalhães Pessoa querendo marcar presença na final para finalmente conquistar uma Taça da Liga. O Sporting, por seu lado, deslocou-se a Leiria tendo em vista uma das suas vítimas preferidas no que toca a provas a eliminar: o leão não sabe perder frente ao dragão em campo neutro.
À semelhança do que se passou contra o Benfica, neste duelo o Porto também “encaixou” taticamente com o Sporting. Todavia, ao contrário da partida com os encarnados, os azuis e brancos desde cedo tomaram conta do jogo, sem, no entanto, transformar esse domínio em lances de real perigo.
Na tentativa de tentar contrariar a pressão alta do Porto com igual veneno, o Sporting tentou bloquear os centrais portistas de construir. No entanto, se a turma de Sérgio Conceição conseguiu efetivamente matar o jogo dos leões pelo meio-campo, a estratégia de Rúben Amorim começou por falhar, já que Palhinha e João Mário subiam tarde e a más-horas e recuavam com ainda maior atraso.
O resultado é que nos primeiros 20 minutos de jogo, foi permitido a Jesus Corona enveredar pelo miolo leonino e fazer passes a rasgar uma e outra vez. Se um dos lances acabou com um mau cruzamento-remate de Zaidu (que se magoou no processo), no outro Uribe ficou isolado frente a Ádan, mas o guardião espanhol conseguiu desviar a bola do caminho do médio colombiano. E quando não foi Corona a servir, foi o mexicano a desperdiçar, atirando uma bola por cima, servida por Marega quando este se desenvencilhou de um Feddal que mediu mal a profundidade de uma bola longa da defesa portista.
O Sporting, a acusar o sufoco portista, não tinha conseguido até à metade da primeira parte fazer mais do que uma incursão em que Nuno Santos não chegou a tempo do cruzamento de Tiago Tomás. Felizmente para os leões, Zaidu voltou a acusar dores e o jogo foi forçado a nova paragem. Tal serviu para refrear o ímpeto portista e permitir aos leões repensarem o seu jogo.
O resultado é que, ao fim de 34 minutos, os leões tiveram a sua primeira grande oportunidade da partida, com um ataque conduzido por Pedro Gonçalves, que tendo Tiago Tomás a arrastar os defesas para o lado direito, optou por fletir à esquerda e atirou por cima. Logo a seguir, novo lance em que Diogo Costa foi forçado a fazer o mesmo que Ádan, tirar a bola dos pés de um atacante, desta feita de Nuno Santos.
No entanto, quando o Sporting mostrava estar a equilibrar a partida, o Porto colocou os leões em sentido. Lance em que Antunes voltou a demonstrar não servir para os leões, o João Mário “portista” fez o que quis do lateral leonino, atirou à baliza e foi Coates a parar o remate. A bola sobrou então para Marega que atirou ao poste, ressaltando a bola para Ádan. Os leões respiraram de alívio e a partida foi para intervalo
Após o descanso, retomou a toada da primeira parte: mais faltas que remates, Porto por cima, mas sem criar real perigo, com ambas as equipas incapazes de fazer movimentos de rotura , à exceção de uma perdida incrível de Uribe, servido no coração da área a cruzamento de Marega (desmarcado, sem surpresas, por Corona). Até aos 80 minutos, apenas dois lances ficariam na memória: uma mão de João Palhinha em que o árbitro João Pinheiro perdoou o segundo cartão amarelo, e um lance em que Felipe Anderson se “redimiu” daquele que tem sido o seu fraco percurso com os dragões, ao recuar a toda a velocidade e evitar que Nuno Santos atirasse à baliza escancarada de Diogo Costa, com o guardião portista perdido no meio-campo.
Foi a partir desse momento que o jogo se precipitou numa reviravolta emocionante, em que Porto colocou um pé na final e retirou-o a mando de Jovane Cabral. Pouco depois do cabo-verdiano entrar por Tiago Tomás, Marega recebeu a bola no meio-campo leonino, seguiu por ali fora e, perante a passividade da defesa do Sporting, fez um remate frouxo mas suficiente para deixar Ádan pregado ao chão.
Por cima, tanto na exibição como no resultado, este era o momento em que os dragões pareciam finalmente fugir ao destino que os assolara nos últimos encontros com os leões nas provas a eliminar. Jovane, porém, retificou essa situação com dois lances de génio, tornando-se à força o protagonista da história deste jogo. Primeiro, aos 86 minutos, aproveitando uma bola rechaçada por Mbemba na sequência de um livre, atirou em arco da esquerda para o interior do poste direito de Diogo Costa, sem hipótese para o guarda-redes do Porto.
O jogo caminhava para o prolongamento com laivos à eliminatória de 2018/19, na qual o Porto, a vencer 1-0, consentiu um penalty nos descontos bem convertido por Bas Dost e levou a partida para o desempate por grandes penalidades, onde foi eliminado. Desta vez, contudo, não chegou a tanto. Aproveitando uma má abordagem de Pepe à incursão de Pedro Gonçalves pelo centro, Jovane Cabral desmarcou-se pela esquerda, fletiu para dentro e, num toque de classe com o peito do pé, simultaneamente venceu a partida e calou os seus críticos.
As lágrimas vertidas pelo extremo após o apito final deixam dúvidas se foram apenas uma descarga emocional, se o seu sabor salgado também foi de despedida. Só ele e Rúben Amorim saberão. Mas quer fique em Alvalade, quer rume a outros campeonatos, Jovane Cabral vai hoje dormir sabendo de uma coisa: de que colocou o Sporting na final da Taça da Liga.
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