Spooooooortiiiinnnnng. Benfiiiiiicaaa. Cada vez que se aproxima o derby dos derbies uma voz começa a ecoar na minha cabeça. Já lá vão pelo menos, citando de memória, 34 ou 35 anos. Quase tantos quantos os tais jogos especiais a que assisti. A memória puxa as cores. Verdes, brancas e vermelhas. Os olhos atentam os cachecóis ao ar e as bandeiras ao vento. Os ouvidos escutam os tambores a rufar, as buzinas a apitar e as gargantas a cantar. As palmas batem umas nas outras. O corpo vibra com o estádio a transbordar de paixão. Uns experimentam o sabor da vitória. Outros, a azia da derrota.
Qualquer criança, a quem desde tenra idade seja injetada a paixão do futebol, sonha, um dia, estrear-se naquilo que é muito mais que um jogo. Seja pela mão do seu pai, pelo braço do seu avô, guiado pelo irmão mais velho ou por um tio afastado. O mesmo é válido para qualquer progenitor ou ascendente familiar. Os elos familiares, as cumplicidades, para muitos, começam nestes palcos. Lado a lado. De braço dado. De pé e sentados. Com sol ou chuva, de dia e de noite. Gritando, saltando, chorando, rindo, festejando e esquecendo. Avós, pais, filhos, netos, primos e tios - e acrescento, amigos, juntos naquela que é a segunda família.
Não fui exceção. Ou antes, fui. O meu pai, adepto do Sporting, uma clubite que herdou, ensinou-me que o Sporting-Benfica é muito mais que um simples jogo, levou-me e ao meu irmão a ver muitos jogos - dezenas deles ! - percorreu connosco Portugal e além fronteiras. Tudo para ver o Sporting. Tudo, à excepção de um Sporting-Benfica ou Benfica-Sporting. Aquele jogo. O tal jogo. Estranho, dizem todos a quem conto isto.
Tem uma explicação, como tudo na vida. Perante o derby, o meu impôs-se uma tática anos a fio: abstrair-se do mundo. Ia trabalhar, folheava os livros nas livrarias do velhinho Centro Comercial Alvalade, Apolo 70 ou Arco Íris, em Lisboa. Mais recentemente, refugia-se no cinema. Simplesmente, não consegue ver. Os meus 44 anos ainda não me permitem encontrar explicação para esta espécie de hara-kiri. Não sei se o leitor compreende. Ele lá saberá o porquê. Adiante.
O meu primeiro derby
Ora, sem o empurrão do meu pai, com o meu avô materno adepto do Torreense, já sem a presença do meu avô paterno, o meu primeiro jogo do século foi na companhia de... um tenente-coronel que vivia no mesmo prédio onde morávamos. Foi a ele que o meu pai decidiu confiar os dois filhos, a alguém que, pelas insígnias ao ombro, impunha respeito. E ordem. E assim foi. Corria o ano de 1982, nos melhores lugares do estádio, na central, debaixo da pala do velho José de Alvalade, com os anéis olímpicos a servirem de auréola em cima da minha cabeça que vi aquele jogo. Com tanta gente respeitável (e velha) ao nosso lado, eu e o meu irmão comportamo-nos como verdadeiros meninos de coros, rapazes que mais pareciam ter saído do Colégio Militar. O Sporting venceu por 3-1. Jordão meteu os golos na baliza de Bento que acabou expulso por agressão ao capitão Manuel Fernandes. O máximo do vernáculo utilizado foi um “Buuuuu... fora o árbitro. O árbitro é ladrão. O árbitro é ladrão”.
Passaram uns anos, ganhei “asas” e vocabulário e comecei a ir ver os Sportings-Benficas com amigos. Mudei de lugar. Deixei de ver a bola sentado e passei a vê-la à distância, atrás das balizas, entre cabeças de gente que se acotovelava à minha frente. Com amigos, muitos dos quais ainda hoje me acompanham. O derby começava logo no início da semana. Nos bancos da escola e nas antecipações lá em casa. Antecipado que estava este fim de semana desde que era conhecido o calendário oficial da época, nesse dia, nada, mas mesmo nada, me poderia desviar da romaria a Alvalade. Uma caminhada que começava sempre à hora do pequeno almoço. Fosse a que horas fosse o encontro. Íamos para as concentrações. Juntava-me àquela família chamada “A Tribo do Futebol”. Saia de casa a gritar. Tinha voz até as cordas vocais me permitirem. A horas de distância do apito inicial, puxava dos pulmões um reforço para aguentar, metia pastilhas de mentol pela boca abaixo e resistia com as forças que quem corre maratonas.
O dia seguinte era (e muitas das vezes ainda continua a ser) preenchido com algumas horas de silêncio para recuperar a voz e outras tantas para mergulhar nas páginas do jornal desportivo publicado no dia seguinte. O resumo televisivo dos 90 minutos era momento de prime time lá em casa. Hoje, tudo é diferente. Já não se cola o ouvido ao rádio para saber se é penalty. No próprio estádio não desgrudamos os olhos do smartphone enquanto não escalpelizarmos as três repetições do lance. É golo. É grande penalidade. Tem de ser expulso.
Nestes jogos que já valeram dois pontos, valem três, nem mais ponto nem menos ponto, há derrotas, há empates e há vitórias. Umas mais expressivas que outras. Da adolescência recordo, em especial, alguns jogos. A tal tarde-noite de dezembro dos 7-1, em 1986. Aquela, num ano em que o Benfica terminaria campeão, serviu de consolo, numa espécie de troféu de caça, para quem torce pelos rapazes de verde e branco. Mais um pulo na história e na estatística e entra a célebre vitória do Benfica por 3-6. Recordo-o não tanto pelo passo de gigante que as águias viriam a dar rumo ao título, mas porque era dia da minha festa de anos. Tudo programado a seguir ao jogo. Restaurante marcado para mais de 40 pessoas. No final, sem recurso a telefonemas, emails, whatsapps, facebooks, faxes, pombos-correio ou outra forma, uma fibra óptica ligou a mente de todos os convidados e cada qual foi para casa. Uns a rirem. Outros a chorarem. Desconheço o estado de espírito do dono do restaurante. A viagem no tempo termina em 1999, ano de quebra do jejum leonino, em que um egípcio de nome Sabry gelou Alvalade e adiou por uma semana o festejo do título.
A família entra em campo
Estamos a poucas horas de mais um jogo. Com quatro filhos lá em casa, dois rapazes e duas raparigas, os mais velhos são do Sporting, a número três na hierarquia decidiu pegar os irmãos (e resto da família) pelos cornos e assumiu-se como benfiquista. O outro, o benjamim, ainda não tem voto na matéria, embora, na privacidade das brincadeiras de todos os eles, seja uma verdadeira bola disputada entre quem está em minoria e os outros.
No ano passado, foi ano de estreia do rapaz mais velho na ida ao clássico dos clássicos. Confidencio que esteve para não ir. Tudo porque naqueles castigos de impulso que impomos, sobre os quais nem sabemos o porquê de o ter feito e que lá bem no intímo sabemos que não iremos cumprir, o tal castigo separava-o de entrar pela minha mão no jogo das nossas vidas. Com as lágrimas a caírem em jato pela cara, a palavra “vamos embora” serviu de aspirador daquelas cataratas do Niagara. Poderia ter outro castigo. Comer sopa de brócolos, peixe cozido todos os dias da semana seguinte, eu sei lá, qualquer coisa menos impedi-lo de ir à bola ver o tal jogo. E assim fomos e regressamos com um empate (1-1).
Este ano, o derby já começou. Já foi falado e falado lá em casa. Discute-se na rua. Nos cafés, nas escolas, nos transportes públicos e no local de trabalho. Programas televisivos e de rádio dedicam horas e horas aos 90 minutos de sábado. As redes sociais elevam o tom e estão a “bombar”, como diria o nosso ex-primeiro-ministro.
Eu vou. O meu filho de 11 anos também vai. O meu irmão leva a filha. Ah... o meu pai, que nunca entrou neste filme, vai ao cinema na companhia da mulher que, por acaso, é benfiquista. Já todos nós antecipamos o resultado. O meu filho confidenciou-me que, independentemente do desfecho final, vai entrar em casa a cantar a música “o mundo sabe que...” aos ouvidos da irmã, que é afeta do rival.
A ver vamos se não enfia a viola no saco.
Nota do SAPO24
Conte-nos também as suas memórias do derby. Quando foi a primeira vez, qual o jogo que nunca esqueceu, como vai viver o derby de amanhã. Envie-nos a sua história para conteudos@mail.sapo.pt e as melhores serão publicadas aqui.
(actualização a 7 de Março 2016, 11h00)
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