A data de 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição ou de Nossa Senhora da Conceição foi, durante anos, celebrada em Portugal como Dia da Mãe.
Mudou de mês, saltitou de dia e para evitar atropelos entre datas simbólicas no calendário litúrgico, a Igreja Católica fixou-o no primeiro fim de semana de maio, mês de Maria e da Vida, deixando o 8 de dezembro reservado a Nossa Senhora, padroeira de Portugal.
Octávio Pudivitr, boxeur luso-moçambicano, 36 anos, pouco dado a datas, assume desconhecer as mudanças perpetradas pela Igreja a propósito destas celebrações.
“Não sabia... não sabia que dia 8 de dezembro já tinha sido Dia da Mãe”, disse em conversa com o SAPO24, antes de subir ao ringue no Pavilhão de Congressos de Matosinhos, por coincidência, divina ou terrena, exatamente no outrora Dia da Mãe e feriado nacional, 8 de dezembro. Um pormenor nada despiciente como se verá.
Nessa noite, disputou um combate para o título de campeão mundial da UBO (Universal Boxing Organization), uma das organizações da modalidade, na categoria de 79 kg. O colombiano Juan Boada foi o adversário.
Ganhou por KO. Octávio Pudivitr é campeão do mundo da UBO nos 79 kg e junta esta vitória, a nona em dez combates desde 2019, três delas por KO, ao cinto de campeão da WBU (União Mundial de Boxe), conquistado em junho.
Antes do combate, cumpriu o mesmo ritual de sempre. “Nunca entro no ringue sem a bênção da minha mãe. Não consigo entrar sem a sua bênção, sem falar com ela e sem uma oração dela. Até posso estar chateado com ela, mas é fundamental na minha cultura africana, a nossa matriarca é muito importante. A mãe será sempre vida, o nosso Deus na terra como diz a Bíblia”, confessou antes de calçar as luvas. “É o meu enchimento da alma”, resumiu.
A religiosidade invade a conversa. “Sou muito religioso. Estive num colégio adventista, no Porto, e acredito muito em Deus. Ele está connosco na altura e momento certo”.
E, provavelmente, esteve naquele instante na vida deste pugilista tardio cujo percurso começou há apenas cinco anos e onde tudo “tem sido muito rápido”, admite.
Ocupa o 1.º lugar no ranking nacional da modalidade, é 10.º entre todos os lutadores africanos, 80.º a nível europeu e era, antes do duelo, o 143.º melhor do mundo da categoria 79 kg. “Espero ficar abaixo do top-100”, disse antes de vencer. É n.º 111.
“Não esqueço de onde vim. Para não me acomodar, tenho de perceber de onde vim”
Fala do passado e de onde veio. Nascido em Maputo, filho de mãe moçambicana e pai checo, viajou para o Porto aos 11 anos, juntamente com o irmão mais velho. Vieram estudar num colégio interno. Pudivitr concluiu a licenciatura em Ciências Políticas e Relações Internacionais, na Universidade Lusófona.
Vive há um quarto de século em Portugal, mas não esquece as origens e a infância difícil. “Nasci em Moçambique, país do terceiro mundo. Não esqueço de onde vim, passei muito tempo num gueto com a minha avó, no bairro do Chamanculo, em Maputo. Para não me acomodar, tenho de perceber de onde vim”, refere. “Vim de uma realidade completamente diferente da que tenho hoje e isso faz-me acreditar todos os dias em mim e que tudo é possível. Conseguimos chegar onde quisermos, basta acreditar em nós”, reforça.
Embalado nas memórias, recua ao primeiro lar. “Em casa, a minha mãe era super quente, uma cultura festeira. O meu pai, mais frio e racional. A minha mãe dava-me um abraço apertado e perguntava se estava bem, o pai limitava se ao 'então como estás'”, compara.
Introduz os progenitores. “O meu pai era engenheiro agroflorestal e conheceu a minha mãe. Era um dos melhores, esteve na FAO, na ADRA, a UNICEF agrícola”, anota. “Acabou o contrato por ser branco, vivíamos ainda o espírito da guerra colonial”, lamenta. “Tivemos dificuldades, tenho fotos de um beliche numa casa onde vivíamos. A casa de banho era fora, os meus pais dormiam em baixo e eu e o meu irmão em cima, mas tínhamos o vício de fazer chichi na cama e incomodava os meus pais em baixo. Era terrível”, sublinha.
“A minha mãe começou a vender melancias no mercado. O meu pai nunca a deixou”, elogia.
O amor ao Sporting e a vida no Porto
Recua aos primeiros anos em Portugal. “A língua mãe é a mesma, mas temos os nossos dialetos e calões. Aqui é mais requintada. Clima, comida, era tudo diferente, e foram pequenas coisas que criaram dificuldade de adaptação sem os nossos pais”, relembra.
O bilhete com a inscrição Portugal alimentou-lhe o sonho de jogar futebol vestido de verde e branco. O futebol foi a primeira paixão, o Sporting o clube do coração. “Sou do Sporting, mas eu e o meu irmão mais velho fomos parar ao Porto”, sorri.
Foi com a bola nos pés que deu os primeiros passos desportivos em Portugal. “Joguei no Pasteleira e no Vilanovense de onde saiu o Hulk para o Porto e o Nélson (Benfica). Era combativo, se não visse um cartão o jogo não tinha corrido bem. Era o Boavista do Pacheco, mas não tinha qualidades que pediam e não me adaptei”, confessa.
Pendurou cedo as botas. “Não aguentava o frio... e a chuva ... eu vim do calor. Deixei e dediquei-me aos estudos”. O desporto não seria, no entanto, fechado numa gaveta. “Fiz um treino de boxe e levei uma surra e acabei no Jiu-Jitsu”.
Na arte marcial fez carreira, ganhou títulos e viajou pelo mundo: Dubai, Brasil, EUA, Espanha e Alemanha. Foi cinco vezes campeão em Portugal, bicampeão ibérico, campeão sul-americano e brasileiro.
“Era profissional, dedicava-me ao treino e não necessitava de trabalhar, os meus pais ajudaram-me, mas não via retorno e não só financeiro, tem a ver com o reconhecimento e a motivação”, esclarece.
Os oito filhos e a morte do pai
Entretanto, o drama familiar bateu-lhe à porta. “Um dos meus filhos teve cancro na bexiga, um caso num milhão, em que viria a ter tratamento revolucionário em França, e andei meio perdido e desligado do planeta. Estava num sufoco muito grande, decidi fazer uma paragem, decidi treinar outra coisa, o boxe, e conheci os meus treinadores, que eram do FC Porto, Rafael Pinto e José Pinto”, expõe.
“A aquela frustração, raiva e impotência e tudo o que estava a acontecer à minha volta, comecei a treinar uma vez por dia, duas vezes por dia, e começam a surgir os frutos”, revela. “Sou a prova viva de que nunca é tarde para começar ou estudar”, atesta.
Ao falar de um dos filhos, abre o véu sobre a família. “Filhos (hein...) tenho oito, quatro rapazes e quatro raparigas, todos em escadinha...10, 9, 8... 4 anos”, conta. “Já nem em África se faz isso”, solta uma forte gargalhada. “A minha mãe diz que eu devia ter nascido na década de 50. “Casei uma só vez, mas os filhos são de três mulheres diferentes. No casamento tive três filhos, depois gémeos, mais um do namorico e outro...”, sorri. “Estão todos no Porto. Não é fácil, pá ...”, graceja. E são as miúdas quem mais insiste em ver os combates do pai.
Tudo parecia ter voltado à normalidade. Puro engano. O pai, que, entretanto, abrira um colégio em Maputo, deveria ter vindo a Portugal conhecer o rol de netos que ainda não tinha visto. Mas “apanhou uma variante de covid-19 da África do Sul e morreu passado cinco dias”, informa de forma seca.
“Vinha a Portugal para conhecer os meus filhos, só conhecia três, acho, e morreu em casa. Por ser agrónomo acreditava nas plantas, dizia que era só uma gripe. E eu... que fui para tratar de cremar o meu pai, apanhei a mesma variante e fiquei muito mal”. Faz uma pausa no discurso. Lacrimeja. Suspira. “São muitas subidas e descidas”, exclama.
Os sonhos do pequeno Mike Tyson
“A minha vida dava uma série da Netflix”, garante Octávio Pudivirt, pugilista que ganhou o nome de pequeno Mike Tyson, rótulo colocado em Moçambique.
“Sempre fui forte fisicamente e explosivo. Ajustando a técnica transmitida pelos meus treinadores, começa a aparecer o nome de pequeno Mike Tyson por causas das semelhanças no estilo, na explosão e na força”, compara.
Recentemente deu uma nega ao comité olímpico moçambicano para representar o país na qualificação para os Jogos Olímpicos Paris 2024. “Conversei com os meus treinadores e recusei. Estou talhado para 12 assaltos e não para os três assaltos de amador que é mais rápido”, confessa.
Quer calçar luvas pelo menos “mais cinco anos em alto nível”, assim espera. “Fisicamente sinto-me um jovem, entrei tarde e não tenho aquelas mazelas da pancada durante muito tempo. Apesar de agressivo defendo-me bem”, assegura.
Continua a descrever-se. “Sou muito inteligente no ringue, independente do estilo ser agressivo e forte. Os pormenores, o tático e da forma que jogo. São coisas que fui ajustando e melhorei não só a parte física, mas também o mental. Pensamos que é só físico, mas o mental é fundamental. É 70% do atleta”, sublinha.
O ano civil aproxima-se da mudança. Octávio Pudivirt tem o pensamento bem delineado. A partir de 2024 “quero lutar por títulos bem maiores, na WBO ou WBA (World Boxing Association)”, informa ao finalizar a conversa.
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