Nas próximas três semanas, é tempo de apreciar as belíssimas paisagens naturais dos elegantes vilarejos das montanhas dos Alpes aos locais históricos mais citadinos de Paris, e de apreciar toda a índole bem sui generis desta prova centenária, considerada por muitos como o pináculo da excelência desportiva das bicicletas. Criada em 1903 para impulsionar as vendas de um jornal em declínio (L’Auto), a Tour de France é hoje um fenómeno mundial que este ano celebra a sua 110.ª edição (só parou nos anos em que houve guerra).
Em 2023, o Grand Départ da Volta à França está marcado para este sábado, dia 1 de julho, em Bilbau, no País Basco, e vai terminar 3.404 quilómetros depois, nos Champs-Élysées, em Paris, a 23 de julho. O mapa com todos os detalhes pode ser consultado aqui, mas refira-se que as 21 etapas pelas quais os ciclistas vão dar ao pedal (23 dias de prova, dois de descanso) contemplam dois países, seis regiões e cinco cadeias de montanhas (Pirenéus, Maciço Central, Jura, Alpes e Vosges). O pico mais alto será alcançado durante a passagem por Col de la Loze (a 2.304m de altitude) e há órgãos de comunicação a escrever que os ciclistas vão consumir entre 5.000 a 7.000 calorias diárias, pedalar, em média, durante cinco a seis horas das 24 que compõem o dia, e ao longo da prova o ciclista vencedor vai queimar a nível de calorias o equivalente a 210 Big Macs.
Em França, a Tour é mais do que uma corrida que dura três semanas — é um fenómeno cultural no qual trabalham mais de 4.500 indivíduos. Nas estradas, a aplaudir e dar força aos 176 atletas das 22 equipas presentes, são esperadas milhares de pessoas. Em casa, já se sabe: estarão milhões a assistir por televisão (ou streaming) nos quatro cantos do globo (é transmitida em 190 territórios, em Portugal vai passar na RTP e na Eurosport). Neste âmbito, 2022 foi mesmo um bom ano a nível de audiências, pelo menos para a estação pública FTV (France Télévisions), que acumulou 41,5 milhões de telespetadores, o melhor resultado do canal desde 2011. Este ano, o mais provável é que a tendência ascendente permaneça e as audiências continuem a subir.
Não só devido à entusiasmante rivalidade entre os dois titãs favoritos à vitória (Jonas Vingegaard, o dinamarquês da Jumbo-Visma e vencedor da edição do ano passado, e o esloveno Tadej Pogačar, da UAE Team Emirates, protagonistas de um dos momentos mais memoráveis da história do Tour) que promete continuar a dar que falar, mas também por causa da Netflix. Mais concretamente, devido à série-documental "Volta à França: No Coração do Pelotão", que estreou na plataforma no dia 8 de junho.
Entre lágrima s e triunfos
Em março de 2019, a série documental "Fórmula 1: A Emoção de um Grande Prémio" chegou à página inicial da Netflix com a promessa de mostrar um acesso sem paralelo ao paddock e às boxes da prova rainha do automobilismo. Facto: a Fórmula 1 é uma prova popular há muitos, muitos anos. Os nomes de Michael Schumacher, Ayrton Senna ou da Ferrari são reconhecidos facilmente até por quem nunca viu uma única corrida. A sua popularidade não vem de agora nem do fenómeno Internet.
Portanto, é popularidade que procede a tais fenómenos. No entanto, era de nicho, com um público-alvo muito particular. Mas após a estreia de "Drive to Survive" (o título original da série), este mundo ambulante de riqueza, ego e engenharia de ponta do asfalto passou a ser "cool" e mainstream. A prova disso está na subida das audiências nos EUA e na venda dos bilhetes para as corridas. (Passou também motivar discussão entre os amigos, seguidores antigos e novos, estilo "viste uma série na Netflix e agora já pensas que vens dar lições de pitstops e pneus duros ou macios" — vá, pelo menos no meu grupo.)
Como nota a Esquire, até os norte-americanos, resistentes há décadas à F1 em detrimento do seu NASCAR, parecem ter-se rendido à novela dos bastidores da Fórmula 1. Tanto assim é que os protagonistas da série já não só estrelas dentro dos seus monovolumes, são estrelas globais como atores ou artistas. Lewis Hamilton, sete vezes campeão mundial, ganhou 100 mil novos seguidores no Instagram quando estreou a 5.ª temporada há uns meses. Toto Wolff, o chefe da Mercedes, ganhou tanta notoriedade desde o início da série que o austríaco até passou por Portugal e pela Web Summit em novembro passado para falar do futuro do biodiesel. O australiano Daniel Ricciardo, mesmo sendo terceiro piloto da Red Bull, é reconhecido por onde quer que passe e é um dos rostos mais populares da grelha nas redes sociais.
E é tendo por base todo este efeito Netflix, que agora chegamos a "Volta à França: No Coração do Pelotão", que replica a fórmula "Drive to Survive". Os organizadores do Tour deram aos produtores do sucesso automóvel um acesso sem precedentes à equipa de produção liderada por Yann Le Bourbouac'h, que espera fazer pelo ciclismo o que "Drive To Survive" fez pela Fórmula 1: fazer crescer um desporto já popular, mostrando as histórias dos bastidores a um público inteiramente novo.
No Coração do Pelotão
Para quem não está familiarizado, o líder do Tour é o ciclista com menos tempo acumulado, que é fácil identificar: é aquele que veste a icónica maillot jaune, ou camisola amarela, ao fim da etapa de cada dia. Ou seja, o ciclista que fizer o tempo mais rápido após a linha de chegada em Paris, é o líder da Classificação Geral (CG) e o vencedor absoluto do Tour de France.
Porém, importa deslindar que a beleza destas corridas por etapas é aquilo que torna o ciclismo interessante — e também a razão pela qual são por vezes referidas como xadrez sobre rodas. É que, ao contrário de outras vertentes ou de outros "desportos de corrida", que são na sua maioria contra-relógios individuais, o ciclismo vive do sacrifício de equipa e tem muito mais estratégia e tática do que aparenta ao olho inexperiente destas andanças. Tal como no futebol, há "posições" e especialistas em diferentes funções. Há quem defenda, há quem ataque, há quem faça o trabalho "sujo" para que no final alguém brilhe. Há quem seja bom a subir, há quem seja bom a liderar a armada mesmo que não acabe o dia com uma camisola vestida (mais detalhe aqui).
- Além da amarela, existem: a verde, para o ciclista com mais pontos no final de cada etapa; a branca, para o ciclista mais bem classificado da Geral com menos de 26 anos; uma às bolinhas vermelhas, para o líder das subidas e a qual, chegados a Paris, concede o estatuto do outro "título" em jogo: o do Rei da Montanha.
Mas de volta à série. "Tour de France: Unchained" (no original) é uma série de oito episódios que, à semelhança do que faz o irmão mais velho "Drive to Survive", documenta e rebobina a história do que "está para trás". Neste caso, recorda o caminho traçado em 2022 por Jonas Vingegaard até este vestir a amarela. E, sem grande surpresa, desde que estreou no dia 8 de junho, tem havido debate sobre as qualidades da série.
A reação daqueles que já são fãs do ciclismo foi mista. Há quem tenha apreciado bastante, mas lendo os comentários dos principais sites da modalidade, fica a sensação que os mais conhecedores e puristas sentem que a série tem uma natureza demasiado simplista e foca-se muito na parte "da novela" em vez de mostrar a fundo as decisões estratégicas, como é que funciona o Tour, os papéis de cada elemento dentro de uma equipa (i.e, a influência dos elementos que andam pelo pelotão, qual é o funcionamento do abastecimento dos ciclistas a nível da água durante a prova, a própria dieta, etc).
Porém, há quem tenha ficado fascinado com o que viu. Como é o caso deste um espetador, que escreveu para o recém-formado "Escape Collective", um novo site independente de jornalismo dedicado ao ciclismo. Depois de explicar que considera "a série ótima", o autor explica que antes "não conseguia perceber a modalidade, tinha ideia que era um desporto individual", reiterando que "pensava que era aborrecido". No entanto, "Volta à França: No Coração do Pelotão" trocou-lhe as voltas e fê-lo mudar de opinião (ainda que tenha apontado algumas das falhas que os puristas salientaram).
Um guião sem estrela
Quanto à série em si, logo nos dois episódios de abertura — o primeiro segue a Quick-Step Alpha Vinyl e o sprinter Fabio Jakobsen, o segundo a Jumbo-Visma e Jonas Vingegaard — percebemos que não há nada que enganar: pelo estilo, pela montagem e pela estética, é em toda a linha uma série dos criadores de "Drive to Survive". A edição é rápida, frenética e impressiona. O drama também está instalado e há muito efeito slow motion para aumentar a adrenalina e a ação na montagem final. Porque o guião/fórmula, na verdade, já está escrito.
Mas ao contrário do que acontece na Fórmula 1, no Tour não dá para seguir e contextualizar a vida de quase 200 ciclistas e 22 equipas. Uma coisa é na versão automóvel a quatro rodas acompanhar 10 equipas e 20 pilotos; outra bem diferente é acompanhar quase duas centenas de indivíduos na Volta à França. Por isso, "Volta à França: No Coração do Pelotão" não é bem um resumo "completo" da prova, pois centra-se em apenas 8 equipas: EF Education-EasyPost, Ag2r Citroën, Alpecin-Deceuninck, Groupama-FDJ, Jumbo-Visma, Bora-Hansgrohe, Ineos Grenadiers e Quick-Step Alpha Vinyl (que em 2023 rebatizou para Soudal-Quick-Step).
E, sim. Não há nenhum erro. Na lista do parágrafo anterior não está o prodígio Tadej Pogačar, estrela maior da UAE Team Emirates (atual equipa do trio português João Almeida, Rui Oliveira e Ivo Oliveira), 2.º classificado da geral em 2022 e vencedor do Tour em 2021 e 2020. Porquê? Bom, basicamente porque a UAE Team Emirates optou por não participar alegando preocupações com a privacidade e com os patrocinadores — pelo que não dá para culpar os criadores por a sua história não ter o contributo daquele a quem muitos já comparam ao belga Eddy Merckx (o Michael Jordan do ciclismo). No entanto, para compensar, o esloveno e o resto do pelotão aparecem nos episódios devido à utilização extensiva das transmissões das televisões.
Porém, tal falha não quer dizer ou significa que não existam imagens para mostrar. Antes pelo contrário — ou não tivessem as equipas de filmagem acesso a todas as áreas das oito equipas em questão, que captaram momentos raros nos autocarros das equipas, nos hotéis e até mulheres de ciclistas a gozar com a idade dos maridos. Contudo, é preciso ter noção que é tudo escolhido a dedo e nenhuma das histórias foi ali colocada aleatoriamente (basta pensar que há um episódio quase todo ele dedicado a um ciclista cuja alcunha é Jasper "Desastre" Philipsen e que a tirada "eu sou só o filho de um agricultora belga" de Yves Lampaert depois de ganhar uma etapa não foi esquecida).
Ver ou não ver
Segundo esta crítica do site Cyclist, é uma daquelas decisões que vai depender de cada um e da preferência pessoal. "Volta à França: No Coração do Pelotão" fornece informações pormenorizadas sobre as nuances do ciclismo "sem carregar demasiado no jargão" para não afetar quem é novo no Tour, nem é demasiado desenxabido para os fãs da modalidade. Porém, quem quiser um documentário com uma análise mais profunda e detalhada, se calhar fica melhor "servido" se for à procura de projetos de equipas (a própria Netflix tem um documentário - The Least Expected Day - da Movistar).
Já o site Cyclingnews, salienta que cada episódio é "cuidadosamente escrito para se enquadrar numa narrativa simplista e agradável", seguindo o formato 'Drive to Survive' e captando "as tensões e rivalidades entre as equipas e o pelotão" e "a adrenalina do ciclismo de estrada". Em jeito de remate, assinala que é "fácil" criticar esta série pelo seu "formato Netflix" (música excessivamente dramática e narrativa adocicada), mas que, ao final do dia, os produtores alcançaram o seu objetivo: é "muito viciante e divertido de ver".
Portanto: pode a "Volta à França: No Coração do Pelotão" fazer pelo ciclismo o que "Drive to Survive" fez pela Fórmula 1? É difícil de prever nesta fase e dizer já que "sim" ou que "não". Contudo, a julgar pelo que se lê nas redes sociais ou até nas opiniões "do povo" em sites bem conhecidos do entretenimento como o IMDb ou no Rotten Tomatoes, "Volta à França: No Coração do Pelotão" parece estar a criar a reação pela qual foi feita na primeira instância: a de abrir as portas ao ciclismo a um enorme conjunto de pessoas que de outra forma nunca iria prestar grande atenção à prova e a fornecer diversão recreativa de sobra a quem já seguiu ou segue as peripécias de uma das provas de resistência mais duras e difíceis do desporto à face da Terra.
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