Todas as sextas-feiras temos apontado os inconvenientes do regresso prematuro das actividades desportivas. Diversos campeonatos europeus são da mesma opinião, já que cancelaram as suas edições 2019-20. Em Inglaterra, neste caso particular, essa hipótese parece não agradar à maioria. Assim sendo, uma onda de desconfiança começa a crescer entre os responsáveis principais pelo espetáculo, os jogadores.
Nesta semana que passou, pelo menos dois jogadores recusaram treinar alegando não se sentirem confiantes nas condições de segurança ao voltarem aos treinos — Troy Deeney, capitão do Watford, e N’Golo Kante, médio defensivo do Chelsea.
Deeney justificou a sua ausência com a preocupação em proteger a sua família. O avançado foi pai há cinco meses e o filho já sofreu problemas respiratórios. Após a honestidade e celeridade do capitão em vir a público dar a sua opinião, assim que foi sabido que um jogador e dois funcionários do clube testaram positivo para Covid-19, outros jogadores se seguiram e não participaram no treino da passada quarta-feira. Com o apoio do seu treinador, Nigel Pearson, esses jogadores têm tido todo o respeito e compreensão do clube para voltarem a treinar apenas quando se sentirem seguros.
No caso de Kante, o jogador apresentou-se e treinou com a equipa na terça-feira, dia 19, mas no dia seguinte, alegando preocupações em relação a risco de infeção, decidiu não regressar. Ontem, quinta-feira, o jogador voltou ao centro de treinos do clube, mas não para treinar. Kante apresentou-se ao segundo dia de testes do Chelsea, voltando de imediato para casa. No caso particular do francês, o seu pai faleceu quando este tinha apenas 11 anos de idade e, recentemente, em 2018, o seu irmão faleceu após ataque cardíaco. Se já não fosse compreensível a atitude do médio do Chelsea, o seu historial de família terá pesado de forma determinante na sua decisão.
Além dos respetivos clubes e treinadores, também Jordan Henderson veio a público dar o seu apoio a Troy Deeney e N’Golo Kante. O internacional inglês e capitão do Liverpool disse que respeita plenamente a decisão dos jogadores que não se sentem seguros para voltar ao trabalho no imediato e que tem a certeza que estes também respeitam os que, como ele, decidiram voltar. O médio dos Reds diz ainda que se sente plenamente seguro no centro de treinos do Liverpool, que todos os casos são diferentes e que só pode mesmo falar por ele, mas que respeita na totalidade quem se encontra numa situação diferente.
Além dos jogadores, também o ex-jogador e agora comentador, Jamie Redknapp, em entrevista à Sky Sports, veio dar a sua opinião sobre o assunto e avisar que, após chegar à fala com um número de treinadores, existirão em breve muitos outros jogadores a seguir os passos de Deeney e Kante e que, se tal acontecer, isso colocará em risco o regresso previsto da liga para dia 12 de junho.
“Falei com treinadores, há muitos mais [jogadores] por se saber que não estão confortáveis,” disse Redknapp. “Se uma equipa tem um plantel de 22 ou 23 jogadores e seis ou sete não estão confortáveis, por pensarem que estão a colocar os seus familiares em risco, como pode isso ser uma competição justa? Torna-se num problema real para a Premier League. Torna-se injusto.”
O ex-jogador do Liverpool diz ainda que acha que a situação se vai tornar cada vez mais difícil tanto para os jogadores, que poderão começar a recear repercussões das suas decisões. Mas Redknapp não fica por aqui. “Tento meter-me na posição dos jogadores e pergunto a mim mesmo o que faria. Na minha altura eu teria feito o que me dissessem para fazer. Se um treinador te dissesse para treinares, treinavas. Os jogadores hoje têm uma percepção maior, mais voz, têm agentes que os podem ajudar a tomar essas mesmas decisões, e é-lhes mais fácil, numa situação como esta, dizerem que não estão confortáveis.”
Também Steve Bruce, treinador do Newcastle veio a público com algumas preocupações devido à condição física dos jogadores. Bruce diz que todos os jogadores têm um plano e que não estão completamente parados, mas uma pausa de seis semanas requer uma preparação de seis semanas, com seis jogos amigáveis, para que se esteja preparado para o primeiro jogo oficial. Sem que isso seja possível, Bruce teme pela condição física dos jogadores que, como ele próprio disse, “podem começar a cair como um castelo de cartas.”
Mais justificações a juntar ao rol que temos vindo a dar semana sim, semana sim, para o facto de esta poder vir a ser uma decisão muito arriscada e que poderá colocar em risco não só esta temporada como, quem sabe, o início e fluidez da próxima.
A Premier League planeia a segunda fase do retorno à ação, que incluirá treino com contacto, assim que o governo aprovar o protocolo a ser preparado pela liga neste momento. Após aprovação governamental na próxima terça-feira, dia 26 de maio, será a vez de consultar jogadores, treinadores e o sindicato dos jogadores, antes de colocar o plano em ação. Caso o governo, em primeira instância, aceite o protocolo e de seguida este seja aceite pelos intervenientes, será possível o regresso previsto para 12 de junho. Contudo, existe uma aceitação geral de que, por um motivo ou por outro, o reinício da liga seja mais viável a partir de dia 26 de junho.
Apesar da Premier League estar a demostrar solidariedade consigo mesma e entre os seus participantes, com jogadores, treinadores e staff a saírem em defesa uns dos outros, as decisões tomadas estão longe de ser unânimes e com toda a certeza que, neste processo e pelo menos até ao início da próxima edição, continuarão a não ser.
A Premier League está divida, e poderá ser apenas uma questão de tempo para problemas sérios de fair-play, sejam eles dentro ou fora das quatro linhas, começarem a surgir.
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