Para os clubes de um país periférico como o é Portugal, dependentes sobretudo das receitas obtidas com as transmissões televisivas e, no caso dos três grandes, dos prémios que a UEFA oferece a quem joga a “sua” Liga dos Campeões, a janela de transferências de verão é mais do que uma oportunidade: é uma questão de sobrevivência. Especialmente se uma pandemia se atravessar no caminho, fazendo com que a restante Europa do futebol, sobretudo a Europa rica do futebol, pense duas vezes antes de depositar os seus euros nas jovens promessas ou talentos pré-consagrados que Portugal produz ano após ano. Temos muito para vender, podemos é não ter quem compre.
O velho adágio negocial – comprar barato e vender caro – encontrou, por isso, em 2020 um obstáculo bastante difícil de se transpôr. Difícil, mas não impossível. Especialmente quando é português o homem que consegue vender mais que nenhum outro, o empresário a quem só falta conseguir vender toneladas de areia à Arábia Saudita: Jorge Mendes, patrão da Gestifute e manager de super-estrelas como Cristiano Ronaldo.
Jorge Mendes acaba por ser, uma vez mais, o grande campeão deste defeso. Em apenas um mês, o empresário português arrecadou cerca de 20 milhões de euros em comissões, provenientes das transferências de nomes como Rúben Dias (do Benfica para o Manchester City), Nélson Semedo (do Barcelona para o Wolverhampton), Fábio Silva (do FC Porto para o Wolverhampton) e Diogo Jota (do Wolverhampton para o Liverpool). O toque de Midas, ou de Mendes, é tal que o empresário sai praticamente incólume da crise, como fez notar o jornalista Pippo Russo em declarações ao New York Times.
Mas o sucesso também atrai polémica. As comissões obtidas nas transferências de Trincão, do SC Braga para o Barcelona, e de Tapsoba, do Vitória SC para o Bayer Leverkusen, prometem fazer correr ainda muita tinta. O famigerado “carrossel” de Mendes continua a pasmar e a irritar os adeptos, que não compreendem certas decisões ou contratações (a ida de Otamendi para o Benfica, no mesmo negócio que envolveu Rúben Dias, por exemplo). E pur si muove: o dedo de Mendes continua a estar presente em algumas das transferências mais lucrativas do futebol, e a máxima ultra que exige a morte do futebol moderno é cada vez mais um anacronismo. Se não fosse o empresário, o futebol em Portugal seria muito, mas muito diferente.
Uma novela uruguaia
Jorge Mendes pode ter sido o melhor realizador do mercado de transferências do verão de 2020 mas, no que toca a interpretações, nenhum outro ator conseguiu bater Edinson Cavani. Durante semanas, os jornais e as televisões abordaram a sua possível ida para o Benfica, deixando os adeptos a salivar (em primeira instância) e a desesperar (em segunda). Sonharam-se golos, discutiram-se valores (nomeadamente salariais), houve garantias, houve passos atrás. A história chegou a envolver um avião para Ibiza, para que Cavani assinasse contrato com os encarnados e, supomos, desfrutasse de uma noite regada no Pacha antes de vir trabalhar para a Luz.
Foi pura ilusão, alimentada não a Ecstasy, mas a Euros. O avançado uruguaio não gostou das condições oferecidas pelos vice-campeões e virou-se para outras paragens, já depois de passar uns dias de férias, e amedrontado com um potencial prognóstico positivo de Covid-19. O seu destino acabou por ser o Manchester United, equipa que tem oscilado entre o bom e o banal desde a saída do mítico Alex Ferguson. A novela acabou por ser uma machadada forte na ilusão benfiquista: as redes sociais confirmam que já havia gente a usar o nome Cavani nas suas camisolas encarnadas...
Mesmo sem Cavani, o Benfica não deixou de contratar, e bem, durante o defeso. Otamendi, como já foi escrito, talvez seja o nome mais incompreensível – não pela sua qualidade, mas pelos moldes do negócio. O Manchester City pagou ao Benfica por Rúben Dias, o Benfica pagou ao City pelo argentino. Ninguém percebeu. Mas toda a gente percebeu Éverton Cebolinha, que caminha a passos largos para ser o novo mago da Luz. Os 20 milhões de euros pagos ao Grêmio pela sua contratação podem vir a ser peaners, como dirá Jorge Jesus.
Pedrinho, Luca Waldschmidt, Gilberto e Helton Leite também engrossaram o plantel encarnado, e não poderemos esquecer Darwin Núñez, que se tornou no jogador mais caro de sempre do futebol português. A sua contratação rendeu ao Almería 24 milhões de euros. Dele, não se exigirá um ou outro golo ocasional, mas sim um hat-trick todas as partidas. A ideia é a de “arrasar”, e isso sai caro: Núñez não se poderá dar ao luxo de desiludir. O mesmo será válido para Todibo e Vertonghen, o primeiro emprestado pelo Barça, o segundo vindo a custo zero do Tottenham, que terão como missão fechar os caminhos para a baliza encarnada.
Campeão de caras novas
“Desilusão” é uma palavra torpe, mas que definirá melhor o estado de espírito dos adeptos do clube campeão nacional. A primeira contratação anunciada pelo FC Porto não foi a de uma grande promessa do futebol ou a de um jogador consagrado, mas sim a de... Carraça, lateral direito que os azuis e brancos foram buscar ao Boavista a custo zero. Quase dois meses após o anúncio da sua contratação, Carraça ainda é alvo de piadas e esgares de estupefacção por parte de uma massa adepta acabada de festejar uma dobradinha, e que passaria bem sem que lhe chupassem o sangue.
O pior é que não há sangue – neste caso, dinheiro. Ainda sob a intervenção da UEFA, por não ter respeitado o fair-play financeiro, o FC Porto viu-se obrigado a vender, e muito, para poder ir ao mercado. A saída de Fábio Silva, que nos relvados é um promissor ponta de lança e fora deles um admirável Tadzio, foi a que custou mais, no sentido emocional e económico da palavra. Ganhou a colónia portuguesa de Wolverhampton, que também conseguiu “sacar” outra grande promessa, Vitinha, por empréstimo com opção de compra obrigatória.
Tais negócios servem, sobretudo, para escapar à UEFA. O que não se gasta este ano irá gastar-se no ano que vem, e assim sucessivamente, nunca ultrapassando a linha vermelha imposta pela União. É assim que o PSG tem garantido, nos últimos anos, estrelas como Mbappé, que passou um ano em Paris, emprestado pelo Mónaco, antes de ser adquirido a título definitivo. É também assim que os parisienses conseguem anunciar o capitão Danilo Pereira, a dois dias do fecho de mercado: 4 milhões de euros pelo empréstimo, por agora, mais 16 milhões no próximo ano.
As vindas de Evanilson, um diamante por lapidar, Zaidu, para a lateral e Cláudio Ramos, para aquecer o lugar de Marchesín, também merecem destaque. Mas é Taremi que alimenta as esperanças dos portistas: em golos, em revalidar o título, em vender camisolas no Irão. Os “nobres” poderão não gostar, mas Taremi tem mesmo que rockar, não a casbá, mas as balizas. Ao “Príncipe da Pérsia” juntam-se Toni Martínez, Felipe Anderson, Grujic e Malang Sarr, anunciados pouco antes do fecho. Com uma despedida chata pelo meio: a de Alex Telles, peça importante no jogo ofensivo dos dragões. E agora, quem marcará os cantos?...
Limpezas de verão
A braços com uma saída precoce, e desastrosa, da Liga Europa o Sporting procurou estabilizar o plantel, com o regresso, anunciado praticamente à última hora, de uma das suas maiores pérolas da formação: João Mário, que chegou emprestado pela Internazionale. Depois de (mais) uma época em que a turma de Alvalade andou arredada do título, as esperanças parecem estar sobretudo depositadas em Rúben Amorim, que se tornou no terceiro treinador mais caro da história.
Amorim veio ainda na época passada, mas também esteve envolvido numa pequena e chata telenovela neste mercado, com o Sporting de Braga a acusar, muito simpaticamente, o Sporting de Portugal de calote... O que terá pesado na decisão dos minhotos em não vender o avançado Paulinho aos verde e brancos, no último dia do mercado.
Os cofres de Alvalade não esticaram, fruto da pandemia e da não-qualificação para a Liga dos Campeões, mas ainda houve espaço para algumas entradas interessantes: Pedro Porro, por empréstimo do Manchester City, Adán, contratado ao Atlético de Madrid a custo zero, e a dupla portuguesa Pedro Gonçalves e Nuno Santos, retirados a Famalicão e Rio Ave, respetivamente. O mercado interno possibilitou ainda a chegada de Tabata, uma das peças-chave do Portimonense, que anda agora à procura de outros voos que não os que fez com a águia algarvia.
O Sporting soube, sobretudo, vender. Wendel chegou a Alvalade como promessa, mas sai talvez sem ter conseguido mostrar todas as suas capacidades (ainda que tenha mostrado outras coisas). Com a sua transferência para o Zenit, rendeu 20 milhões de euros ao clube leonino, praticamente o dobro do que o Sevilha pagou por Acuña, que doravante tentará não ser amarelado no país vizinho. A limpeza da casa envolveu também transferências a custo zero, duas em destaque: a de Francisco Geraldes, o único futebolista em Portugal que gosta de Tame Impala, e a de Gelson Dala, ambos para o Rio Ave.
Quanto menor o clube, maior a surpresa
É no banco que se encontra aquela que parece ser, para já, a grande contratação da equipa vilacondense para esta época: Mário Silva. O treinador português, que levou o FC Porto ao seu primeiro título europeu de juniores, tem aqui a sua primeira prova de fogo no escalão principal do futebol luso. Com meia dúzia de jogos jogados, o Rio Ave ainda não estabilizou o suficiente para ganhar no campeonato, mas também ainda não perdeu. Melhor: assombrou o velho continente ao quase eliminar o todo-poderoso Milan da Liga Europa, caindo apenas após uma épica sucessão de penáltis.
A nortada voltará a bafejar alguém da “casa”. Numa das maiores surpresas do último dia do mercado, e porque o português deixa tudo para o fim, o Rio Ave foi buscar Fábio Coentrão, que esteve sem clube ao longo do último ano. O lateral esquerdo, supõe-se, irá preencher uma potencial vaga deixada por Matheus Reis, que esteve associado ao FC Porto e que agora está sob alçada disciplinar, por se ter recusado a jogar frente ao Vitória SC. Note-se também a vinda de Pelé (não esse; o português), por empréstimo do Mónaco.
Coentrão pode ter sido uma surpresa, mas a boca só se abriu de espanto quando Quaresma foi confirmado no Vitória SC. Depois de mais uma época na Turquia, o rei das trivelas começou por ser falado para o FC Porto (naquele que seria o seu segundo regresso ao Dragão), depois para o Boavista, e acabou no berço da pátria, deixando os vimaranenses a sonhar com uma dupla temível: Marcus Edwards de um lado, Quaresma do outro. A máquina precisa, para já, de carburar. O Vitória ainda só conseguiu marcar um golo em jogos oficiais... E de grande penalidade.
A rivalidade entre Vitória e Boavista tem já largos anos, e a balança – no que ao mercado diz respeito – parece pender esta época para os axadrezados. A equipa portuense prepara-se para vender a maioria da SAD a Gérard López, dono do clube francês Lille, mas colheu já os frutos dessa eventual parceria. Esta época, mudaram-se para o Bessa o defesa francês Adil Rami (que não só foi campeão do mundo como ainda foi namorado de Pamela Anderson), o lateral norte-americano Reggie Cannon, o espanhol Javi Garcia e o colombiano Sebastián Pérez – para não falar dos empréstimos de Chidozie, Léo Jardim e Angel Gomes.
Misturando jovens talentos com jogadores já consagrados, o objetivo do Boavista passará pelo regresso às competições europeias, que não disputa desde que caiu com estrondo nas divisões inferiores. Nem uma derrota pesada em casa frente ao FC Porto (depois de um jogo muito elogiado na Madeira, frente ao Nacional) deverá beliscar as pretensões do “clube das camisolas esquisitas”, como é carinhosamente apelidado lá fora.
A lutar por um lugar na UEFA estará também o Famalicão, depois de ter falhado esse objetivo por uma unha negra em 2019/20. A equipa minhota manteve, neste mercado, a mesma abordagem que no ano passado: construir um plantel sobretudo à base de empréstimos. O nome mais sonante é o de Dyego Souza, que não se conseguiu impor no Benfica, e que terá aqui nova oportunidade para mostrar o seu valor.
A tentar consolidar o seu estatuto como “quarto grande” do futebol português atual, sem desprimor para ex-campeões como o Boavista e o verdadeiro Belenenses, o SC Braga continua a manter vivo o sonho do seu presidente, António Salvador: conquistar o campeonato. A tarefa é todos os anos hercúlea, e todos os anos há qualquer coisa que falta ao SC Braga – uma ponta de sorte, um treinador acima da média, jogadores que façam a diferença.
A primeira é sempre impossível de garantir, mas as outras duas já moram em Braga. Carlos Carvalhal tentará fazer com os arsenalistas melhor do que fez com o Rio Ave, na época passada, quando terminou em 5.º lugar – mesmo sabendo que tudo o que seja abaixo do 3.º já não satisfará os adeptos do seu novo clube. Iuri Medeiros, Castro ou Schettine foram aquisições valiosas, mas nenhuma chegou aos calcanhares da de Nico Gaitán, anunciado com mais que pompa e circunstância. Lamentavelmente, uma lesão impediu-o de se estrear com outra camisola vermelha em Portugal.
Entre os clubes mais pequenos, não houve espaço para entrar em grandes loucuras, tal o impacto da crise. Se bem que também não houve motivo, já que a grande maioria procurará obter sobretudo uma posição respeitável no campeonato, sem pensar num qualquer potencial europeu. O Belenenses SAD, que foi notícia por pretender mudar-se do Jamor para Grândola (como se a Liga NOS fosse a NFL), está no mesmo lote que o Farense, o Santa Clara ou o Gil Vicente: construir plantéis com recurso a empréstimos, a contratações a custo zero ou a aquisições por valores tão irrisórios que nem entram no Transfermarkt. O Marítimo também faz parte desse grupo mas com um bónus: vendeu Nanú ao FC Porto dois dias após o lateral marcar o golo da vitória maritimista no Dragão. Três jornadas após o seu início de facto, poderemos dizer: começou verdadeiramente a Liga NOS 2020/21.
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