Nascida e criada no bairro de Pirituba, na periferia da cidade de São Paulo, Brasil, Jacqueline Cavalcanti aterrou, em 2009, em Portugal. “Vivia com as minhas tias, e aos 11 anos a minha mãe, que veio três anos antes, chamou-me para cá”, informa a atual campeã de peso-leve da Legacy Fighting Alliance (LFA), organização de MMA (Artes Marciais Mistas) pertencente à UFC (Ultimate Fighting Championship).
O propósito era um. “Dar-me uma vida melhor, mais segurança e tirar-me daquele meio onde vivia. É considerado um dos bairros mais perigosos de São Paulo, é maior que toda a Lisboa”, esclarece. “Para uma criança sobreviver nesse meio onde há crime, roubo e drogas ... pode influenciar o seu futuro. Sabia que havia os dois lados, quem passasse dificuldades e quem roubasse”.
Apesar do cenário negro, a vivência não era, assim, tão sombria. “Graças a Deus que a minha mãe sempre trabalhou muito. Separou-se do meu pai quando eu tinha 4 anos, mas os meus primos, tios e toda a família era trabalhadora e nunca passámos por dificuldades”, recorda Jacqueline em conversa com o SAPO24, no ginásio Reborn Figth Team, escola de artes marciais localizada na Pontinha, Loures.
A adaptação a Portugal não foi fácil. “Fui viver para o Pragal, para perto do Cristo Rei. Eram pessoas mais velhas e não havia crianças. Era um sossego, não havia barulho, nem ninguém. Em São Paulo tinha mais liberdade, ia para a escola de autocarro ou a pé e, no meu bairro, não faltavam crianças na rua até certa hora, claro”, comparou.
Entrou na escola e deu um passo atrás. “Vim com o 5.º ano, mas regredi um ano por causa das equivalências. Na escola pública do Brasil não aprendemos nessas idades muita coisa. Aqui, recordo-me de a professora falar do plural e singular. E eu falava, “oi, não entendi”, sorri. “Aqui no 5.º ano uma criança já teve aulas de inglês. Onde morava, não. Tínhamos música, íamos ao quadro e copiávamos”, sintetiza.
“Sempre tive a chama do desporto de combate dentro de mim”
Feita a apresentação de onde veio é tempo de saber quem é Jacqueline Cavalcanti, a lutadora de MMA de 25 anos que quer ser a primeira portuguesa a entrar da elite do UFC. “Desde pequenina que gosto de luta, a minha mãe adora luta, ficou super empolgada, os meus tios eram capoeiristas. Sempre tive a chama do desporto de combate dentro de mim”, regista.
Num português em que o português do Brasil se esvaneceu com o tempo, justificado pelos quase 15 anos a viver na Pátria de Camões, regressa às bases do desporto. “Aos 9 anos fui para judo, numa escola pública (no Brasil). Acordava às cinco da manhã. Saía de casa uma hora depois, demorava mais de 40 minutos, ia, a pé, com mais duas amigas e os treinos começavam às 7h00. “Treinava duas vezes por semana e adorava a trajetória”, adianta. “Não era fácil para uma menina dessa idade levantar-se aquela hora”, admite. “Elas não quiseram mais” e a classe viria a “acabar por falta de alunos”. Terminado o judo, seguiu-se a estreia na Capoeira.
A queda para os desportos de combate viajou entre as duas margens do Atlântico. Veio para Portugal com a luta no corpo e o passo seguinte foi o prelúdio do que se segue. “Fiz taekwondo durante dois anos e pensava: porque só usar as pernas e não usar as mãos. Sempre gostei de bater no total. Saí”, conta.
Em 2012, novo desporto. “Apaixonei-me pelo kickboxing e muai thai. Podia usar tudo, mãos, pés e cotovelo”. Foi campeã nacional e ibérica e, em seis anos, “25 lutas, 25 vitórias”, quantifica.
Não se envergonha da infância e adolescência passada entre combates e treinos. As bonecas não entravam no reportório de brincadeiras. “Não gostava muito, talvez se existisse uma barbie lutadora ... Era maria-rapaz, jogava ao papagaio e ao berlinde. Mas os meus tios não gostavam porque era jogo de rapaz”, solta uma gargalhada.
O MMA, “um amor à primeira vista” entra no seu léxico em 2018. “Quando me apresentaram o MMA achei incrível ir para dentro da jaula. Dás e levas um pontapé e um soco, estás em pé e vais ao chão. Estranhas na fase inicial, mas quem gosta de arte marcial, é uma magia”, carateriza. Frequenta um seminário com a Cris Cyborg e tem o primeiro combate profissional.
“Nós, mulheres, temos de mostrar que não é um desporto só de homens”
Jacqueline faz uma pausa no percurso desportivo para falar sobre o papel da mulher nas artes marciais. Desbravou caminho num desporto de combate inclinado para o sexo masculino. “Não conhecia academias com mulheres que me incentivasse a treinar. Havia ginásios, mas era muito estilo bairro. Até que a Reborn abriu esta academia, nas Laranjeiras. Tinha lá uma menina e conhecia o Artur Lemos”, explica.
Ser mulher num desporto de combate dominado por outro género não a desmotivou, nem desmotiva. “Está a crescer, já não é o desporto de bairro. Mas para as mulheres ainda é muito masculinizado e temos de mostrar que não é um desporto só de homens. Podemos ser tão boas ou melhores que os homens. Não comparo a nível de força e velocidade, mas a técnica e inteligência podemos ser iguais ou superiores”, reitera a vencedora de cinco combates internacionais, em seis disputados.
Treina com homens e mulheres. “A Mafalda, Gabriel, David e o Diogo”, enumera. Reconhece necessitar de mais competição. “Concorrência em Portugal? Não tenho”, questiona e responde. “Por mais treino que faças com homens, por mais leves, será sempre diferente do treino com mulheres. Terão sempre mais velocidade, força e resistência”, assegura. “Treinar com mulher sabes que não tens desculpa, tenho de ganhar, se perder é porque ela foi mais inteligente”, frisa.
“Entrar no UFC sempre foi o meu objetivo. É o meu plano A. Não tenho plano B”
Fez recentemente um segundo camping nos Estados Unidos da América (EUA). “Treinei com outras mulheres que estão a chegar ao UFC. Duas horas de treino, uma hora de ginásio e mais uma hora de ji jutsu. Cinco horas quase todos os dias. É para fazer de nós máquinas e aumentar a tua resistência e técnica”, detalha.
Todas as horas gastas, ou ganhas, conforme a perspetiva, ajudam a preparar o combate. “Focas-te três meses naquela luta e no adversário”, aponta. “Antigamente ficava stressada, mas hoje controlo mais. Imagina acordares todos os dias a pensar no combate, naquele dia, naquela hora. Atualmente, tento abstrair-me”, vinca.
Desvenda o comportamento quando está em combate. “Na jaula, desligo do público e foco-me nas vozes conhecidas no meu canto. Quando estou no outro canto, naquilo que o treinador da adversária diz”, murmura.
Nas horas em que não está entre cordas, é para os tachos e panelas que vira o foco. “Adoro cozinhar”, confessa. “Tenho cuidado com a dieta. Gosto de sair, mas quando está próxima da luta não saio, tem bebida, comida e pessoas fumam. Então, não saio”, diz a lutadora profissional e Personnal Trainer, uma das faixas desempenhada a nível profissional enquanto a luta “não dá rendimento para viver só disso”, informa.
A independência financeira pode estar à distância de um pontapé certeiro. Assinado um contrato com a PFL (Professional Fighters League), campeã do SCC (Strikers Cage Championship, Liga Ibérica) e no LFA, “evento que mais atletas leva para o UFC”, aponta a outros voos. “Quero chegar ao alto nível e rodeio-me dos melhores para me levarem lá”, garante.
Jacqueline Cavalcanti regressa ao sonho e à meta que traçou. “Entrar no UFC sempre foi o meu objetivo. É o meu plano A. Não tenho plano B”, afirma sem rasto de dúvidas ou hesitações. Um sonho bem vivo apesar do quarto de século no cartão de cidadão.
Os campeões são acima dos 30 anos. Tem a ver com a experiência. Quem entrou na jaula 20 vezes esta à frente sobre quem entrou 5”, compara.
“O país proporcionou-me isso e devo-o a este país”
“Sempre soube que este é o topo e é lá que quero estar”. Lá, em representação de Portugal, aponta a menina nascida num bairro problemático de São Paulo. “Tudo o que consegui, onde estou e quero chegar é pelo facto de ter vindo para Portugal tão pequenina. O país proporcionou-me isso e devo-o a este país”, assevera.
Aguarda serenamente a chamada. E nesse dia, no dia em que o sonho se transformar realidade, quando receber a notícia de que entrou na UFC, sabe o que irá fazer. “Muito provavelmente vou treinar”, sorri.
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