Ricardo Filipe da Silva Duarte Braga, mais conhecido por Ricardinho, despede-se esta quinta-feira da seleção portuguesa de futsal. Depois das lágrimas, quando um mês depois de Portugal se ter sagrado campeão mundial anunciou que ia deixar de vestir a camisola que representa desde 2003, vem um encontro de despedida, o último com as Quinas ao peito.
O adeus vai acontecer contra a Bélgica no Multiusos de Gondomar, município onde fica a cidade de Valbom, terra natal do atleta que na quarta-feira foi ali homenageado com a inauguração de um pavilhão batizado com o seu nome.
"É maravilhoso. É algo que tu nunca imaginas. Eu, quando comecei a jogar futsal, nunca pensei que isto pudesse acontecer: ser uma referência da modalidade e também como cidadão para as crianças da minha cidade. Não só da minha cidade [Valbom, Gondomar], mas sobretudo, porque foi aqui que eu nasci, a cidade que me acolheu e me fez crescer como homem. E hoje poder estar a retribuir... não há sensação como esta", disse o jogador na cerimónia.
O bairro social em que cresceu, em Valbom, é o berço de que se orgulha, mas também o primeiro grande desafio. Numa família humilde e nem sempre com comida na mesa, foram várias as vezes em que contou que era em casa do vizinho que acabava por jantar, o amor ao desporto nunca o tentou a virar-se para a droga e ao crime que todos os dias lhe batiam à porta de casa.
Aos 13 anos, refeito de um incêndio que consumiu os seus pertences na habitação de Fânzeres e o realojou num bairro social de Valbom, foi descartado durante os treinos de captações da formação de futebol do FC Porto, onde o pai tinha jogado, devido à baixa estatura.
Ricardinho, que se tinha mudado do Estrelas de Fânzeres para o Cerco do Porto, fez uma espécie de luto pelo sonho frustrado de ser futebolista em ano e meio, fase em que acabou por ter as melhores notas na escola, até ressurgir com a equipa do bairro num torneio de futsal.
O talento incomum levou Carolina Silva, técnica do Gramidense Infante FC, adversário derrotado na final, a desafiar o rapaz que, em vez de ir longe nos estudos, passava horas a dar toques com a fruta trazida pelo pai, empregado no Mercado Abastecedor do Porto, do trabalho.
Volvidas três épocas, em 2001/02, e já ajustado ao jogo no pavilhão, aquele que agora tem o seu nome, o esquerdino cruzou o rio Douro na companhia da treinadora e de vários colegas de equipa rumo ao Miramar, onde iniciou pelos juvenis, foi campeão nacional de juniores e se estreou nos seniores.
Em 2003, com 17 anos, o Benfica colocou em cima da mesa um contrato de 2.250 euros e Ricardinho, que mal conhecia os arredores da sua urbanização, aceitou a custo sair debaixo da ‘asa’ dos pais e deixar a namorada, mesmo perante a tentativa tardia do Freixieiro em demovê-lo.
Partilhar casa com os já batidos André Lima e Arnaldo ajudou-o a disfarçar dúvidas durante a adaptação a Lisboa, onde o filho do meio da família Braga se orientava apenas com 250 euros do ordenado mensal, enviando o restante para Valbom.
Dentro das quatro linhas, foi rivalizando com colegas mais calejados, mas foi obrigado a travar a fundo no caminho do estrelato devido a uma fratura da tíbia, após dura entrada de um oponente irado com os seus truques técnicos desconcertantes. Foi a primeira grande lesão da carreira.
Ao subir de produção nos pavilhões nacionais, Fernando Santos, então técnico do futebol do Benfica e atual selecionador nacional, tentou a sua sorte em chamá-lo aos relvados na pré-temporada de 2007/08, assunto que circulou na imprensa e nunca passou à prática.
E ainda bem. Porque se não sabemos que jogador de futebol Ricardinho poderia ter sido, sabemos muito bem o jogador de futsal em que se tornou. Depois de sete épocas, deixou a Luz com quatro campeonatos, três Taças de Portugal, quatro Supertaças e com os primeiros troféus de campeão europeu de clubes e de melhor jogador do mundo.
No verão de 2010, ingressou com surpresa por três anos nos japoneses do Nagoya, que pagaram a cláusula de rescisão de 250 mil euros ao Benfica, e venceu outras tantas ligas e uma Taça da Ásia, em 2011, enquanto estimulava a modalidade no mercado asiático.
Pelo caminho, logo após ter sentido o tsunami de 2011, quando viajava de táxi para um pavilhão, esteve cedido aos russos do CSKA Moscovo, aguentando seis meses sem títulos, e voltou à Luz, já sem tanta motivação financeira, para ‘selar’ uma ‘dobradinha’.
Ricardinho transcendia a dimensão nacional do futsal e correspondeu ao interesse de longa data dos espanhóis do Inter Movistar, adversário derrotado pelo Benfica na final da UEFA Futsal Cup, em 2009/10, partindo para o período mais dourado do seu palmarés.
Entre 2013 e 2020, conquistou seis campeonatos, três Taças de Espanha, uma Taça do Rei e três Supertaças, além de se ter sagrado bicampeão europeu, em 2016/17 e em 2017/18, em finais com o Sporting. A tudo isto somaram-se mais cinco prémios de melhor do mundo.
O êxito retumbante no país vizinho permitiu-lhe abstrair de questões pessoais, como a amputação da perna esquerda do pai, agora remetido a uma cadeira de rodas, ou a condenação do irmão mais velho a nove anos de prisão, por furtos e desobediência. Histórias e marcos que Ricardinho tem cravados no corpo em tatuagens.
Depois de tudo isto, é hora do adeus definitivo à seleção, aquela onde se estreou em Tavira, em 2003, num amigável com Andorra e em que Portugal goleou 4-8.
A despedida vai ser como sonhou, depois da conquista do inédito Campeonato da Europa em 2018 e das lágrimas ao entoar ‘A Portuguesa’ antes da final de Kaunas, pouco tempo antes de somar ao título europeu o primeiro título mundial de Portugal em futsal, e depois de uma conferência de imprensa emocionada. Ricardinho terá direito a "um dia especial", onde tudo começou, onde jogou o primeiro Europeu, rodeado de amigos, família e adeptos.
"Será um dia especial, vou ter a possibilidade de me despedir onde tudo começou, onde joguei o primeiro Europeu, na minha casa e com os meus. Acima de tudo, com o grande desejo que sempre tive: entrar em campo com os meus filhos, num jogo da seleção nacional. Eternamente grato por todo o carinho", disse o jogador, citado pela FPF, na semana passada.
É difícil resumir toda a carreira de um atleta como Ricardinho e não dizer, logo no título, que é o maior. Não só porque foi considerado o melhor do mundo por seis vezes, algo inédito na modalidade, ou porque venceu três UEFA Futsal Champions League com o Benfica e o Inter Movistar, um Mundial e um Europeu com Portugal, somando a tudo isto o prémio de melhor jogador em ambos os torneios. Mas, sobretudo, porque o ‘capitão’ e número 10 nacional, de 1,65 metros, marcou definitivamente a modalidade. A forma como olhamos e vivemos futsal antes e depois de Ricardinho é diferente. A seleção antes e depois de Ricardinho é diferente. E a prova disso é que, já sem o ala, que abdicou de lutar pela revalidação do título europeu em janeiro de 2022, nos Países Baixos, para concentrar forças no segundo ano com o campeão francês ACCS Paris, despromovido na secretaria ao segundo escalão, Portugal foi capaz de revalidar o título de campeão europeu de futsal. Uma verdadeira prova da grandeza do feito de Ricardinho, de toda a atmosfera vencedora que criou em torno da modalidade no país e que possibilitou que se investisse mais e que se seguisse mais o futsal, que para muitas pessoas o som da borracha das chuteiras a chiar em pequenas fintas no chão de um pavilhão fosse tão apelativo como pisar um relvado.
Depois de hoje, de um jogo de lotação esgotada diante da Bélgica, Ricardinho será embaixador da seleção nacional de futsal, um exemplo brutal de como o desporto, a ambição, resiliência e vocação são fintas tão boas como qualquer outra ferramenta para contornar o destino que tantas vezes é traçado tão cedo.
*com Lusa
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