Após mais de dois anos de julgamento e com uma sala de audiência completamente cheia no Juízo Central Criminal de Lisboa, Rui Pinto falou durante cerca de três horas, respondendo ainda apenas a perguntas do coletivo de juízes. As declarações prometem, assim, prolongar-se por mais sessões, face aos vários assistentes no processo e ao facto de ainda não terem sido abordados todos os pontos da acusação elaborada pelo Ministério Público (MP).
“[A sabotagem é] curiosa, porque não aconteceu. Ficou claro pela testemunha David Tojal [responsável pela informática do Sporting à data dos factos] que não houve qualquer interferência externa. Não tive inicialmente conhecimento desta situação”, começou por explicar o principal arguido deste processo.
Rui Pinto recordou a este respeito que tal ocorreu quando preparava a contestação em “meia dúzia de dias” e apenas respondeu ao seu advogado, Francisco Teixeira da Mota, para referir que não teve intenção. Agora, explicou que foram duas pessoas que estiveram por trás dessa iniciativa, mas que não foi o responsável pelos problemas informáticos de então no Sporting.
“Terá sido um problema interno, não foi um problema externo. A explicação que me deram é que se aperceberam do problema no Sporting e arranjaram uma maneira… já que o servidor estava fragilizado, poderia ser usado algo que permitisse otimizar os acessos”, frisou, além de abordar as contas de email de dirigentes de então do Sporting a que acedeu e de confirmar que o clube de Alvalade foi a primeira entidade visada nos acessos efetuados no Football Leaks.
Recuando às origens da criação da plataforma eletrónica que abalou o futebol português e internacional a partir de 2015, o arguido contou que a ideia surgiu quando estava com alguns amigos em Praga (República Checa). “Tive a ideia, eles no início não levaram muito a sério, mas depois empenharam-se bastante no projeto”, assinalou, reiterando sempre a existência de mais elementos envolvidos, mas sem nunca revelar nomes ou até o número de pessoas em causa.
“Se formos pensar no início do projeto Football Leaks, a minha ideia foi sempre tentar ir ao fundo da questão e a várias entidades nacionais e internacionais. No meu caso, nas entidades que foram acedidas por mim, não houve nenhuma que não tivesse lá um indício forte do cometimento de crimes. Era feita uma análise da informação que tínhamos naquele momento e a partir daí íamos perceber as ligações”, observou, reconhecendo que já tinham tido acesso a informação “através de acessos ilegítimos”.
Sublinhou também não ter sido o autor dos primeiros acessos a outros sistemas informáticos, mas que a partilha da informação lhe revelou a existência de “coisas duvidosas”. Por outro lado, vincou a natureza coletiva do trabalho da plataforma, apesar de ser o único rosto conhecido.
“Se bem me recordo, soube antecipadamente de todas as publicações no Football Leaks e houve divergências. Eu sabia o que acontecia, eu sugeria, mas era tudo decidido em conjunto”, anotou, refutando também uma motivação clubística nas revelações do site, embora tenha admitido ser adepto portista: “O FC Porto é o meu clube e é o que tem mais contratos divulgados”.
Em relação à Doyen, Rui Pinto justificou o porquê de ter sido visada pelo Football Leaks com o mediatismo alcançado com diversas transferências no futebol nacional e internacional.
“O que estava por detrás [da Doyen] era dinheiro escuro do Cazaquistão. A maior parte dos fundos de investimento eram danosos para os clubes de futebol. Muitas vezes o jogador não queria sair, mas os clubes eram pressionados a vender. O Football Leaks conseguiu demonstrar a todo o mundo o que eram os ‘third party ownership’ [TPO, partilha de passes com terceiros] e a Doyen”, disse, numa breve referência ao fundo de investimento, que foi uma das entidades a apresentar queixa logo em 2015.
Num dia em que assumiu ter “perfeita noção” de estar a proferir declarações que “contradizem bastante” aquilo que disse no primeiro interrogatório judicial, o criador da plataforma eletrónica atribuiu essa diferença ao contexto vivido no início de 2019, quando foi detido na Hungria, e às dificuldades que revelou ter passado enquanto esteve detido em solo húngaro.
“Todo o processo de extradição foi bastante penoso e complexo. O mediatismo do caso deixou-me um pouco fragilizado e o período de detenção no estabelecimento prisional húngaro foi bastante complicado. É público que as prisões húngaras são das piores da União Europeia. Só podia tomar banho três vezes por semana, a alimentação era completamente medíocre e os guardas prisionais não me viam com bons olhos. Foi uma tortura psicológica”, contou.
“Estava bastante fragilizado, disse aquilo que me veio à cabeça e tentei basicamente negar. Não o devia ter feito, é verdade”, admitiu Rui Pinto, fazendo uma referência particular à acusação do crime de tentativa de extorsão à Doyen: “A tentativa de extorsão é aos olhos do público a situação mais negra”.
O julgamento do processo Football Leaks prossegue com a continuação das declarações de Rui Pinto na próxima segunda-feira, a partir das 09:30, no Campus da Justiça.
Rui Pinto, de 33 anos, responde por um total de 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo, visando entidades como o Sporting, a Doyen, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por extorsão, na forma tentada. Este último crime diz respeito à Doyen e foi o que levou também à pronúncia do advogado Aníbal Pinto.
O criador do Football Leaks encontra-se em liberdade desde 07 de agosto de 2020, “devido à sua colaboração” com a Polícia Judiciária (PJ) e ao seu “sentido crítico”, mas está, por questões de segurança, inserido no programa de proteção de testemunhas em local não revelado e sob proteção policial.
Comentários