Iniciemos esta crónica com um dos mais conhecidos postulados filosóficos do mundo: “Se uma árvore cair na floresta e ninguém lá estiver para ouvir, será que faz um som?". A frase, atribuída ao irlandês George Berkeley, pretende ser um exercício quanto a relatividade dos nossos sentidos face à realidade, aquilo que percecionamos face àquilo que realmente existe.
Este, porém, não é um texto sobre filosofia, irlandeses ou sequer árvores, pelo que tentemos voltar ao tema com uma questão do mesmo género: “Se Bruno Fernandes, cada vez que faz um jogaço, está mais próximo de sair do Sporting, isso é bom ou mau para os sportinguistas?”. Se quiser, pode ir pensar um pouco no assunto e retomar depois o texto abaixo.
Havia várias hipóteses quanto à narrativa deste embate entre Sporting e PSV em Lisboa. A história poderia ter sido o regresso de Bruma a Alvalade depois da sua acrimoniosa saída do clube em 2013, mas o internacional português, enterrado sob um coro de assobios, foi espelho da pálida exibição da sua equipa e saiu ao intervalo. O enredo também se poderia ter prendido na sempiterna capacidade dos verde e brancos complicarem o que seria fácil, mas também não: o Sporting precisava de vencer este jogo para garantir o apuramento e assim o fez numa exibição autoritária e onde nunca houve margem para dúvidas de qual seria o vencedor.
Não, o busílis deste jogo teve de recair fatalmente naquilo que já se tornou no Alfa e no Omega desta equipa: Bruno Fernandes. Frente ao adversário de maior valência do seu grupo, o Sporting conquistou uma vitória por 4-0 onde todos os golos tiveram dedo do seu capitão, algo, diga-se, até inédito para um jogador já habituado a bater recordes.
Os mais céticos (ou cínicos) apontaram para a mais recente renovação de contrato de Bruno Fernandes como o tónico para a forma como se apresentou em campo. Mas se é verdade que o capitão será sempre um mal-amado para a franja de adeptos que não lhe perdoa a rescisão em 2018 e que o acusa de mercenarismo, é igualmente necessário reconhecer que o médio esteve sempre lá quando foi preciso, para não dizer que tem carregado esta equipa às costas.
Muito se tem apontado ao Sporting de sofrer de Bruno-dependência e nem por isso esse diagnóstico tem sido injusto. Basta atender à estatística vertiginosa de que 40% dos golos que os leões marcaram desde que chegou a Alvalade passaram pelo médio: 100, ao todo, com 59 golos e 41 assistências. Só nesta época, e a contar com o atropelamento desta noite, Bruno Fernandes já leva 11 golos e sete assistências em 18 jogos (pela mesma altura, no ano passado, ia em sete golos).
Mas sejamos honestos, o mérito desta vitória retumbante não recai exclusivamente nos méritos do seu capitão. Há muito que Silas desesperava por trabalhar o processo defensivo da sua equipa e esta paragem de duas semanas deu frutos. O PSV não encontrou aqui o Sporting macilento que se apresentou em Eindhoven, encontrando uma turma verde e branca bem mais robusta. Se ganhar segundas bolas e ditar o ritmo de jogo foi uma miragem nessa derrota por 3-2, aqui foi a regra.
Foi apenas há pouco mais de dois meses que as duas equipas se defrontaram, mas muito mudou desde então. Se o Sporting nessa altura atravessava a tempestade pós-Kaiser tendo como timoneiro um demasiado hesitante Leonel Pontes, aqui já vinha num rumo de bonança com Silas. Já o PSV, por outro lado, se em setembro encontrou os leões numa fase em que vinha numa senda de nove jogos sem perder, agora chegou timidamente a Alvalade vinda de uma vitória tangencial, a única nos sete últimos jogos.
Abandonando o 3-5-2 que retirava poderio ao meio campo leonino, Silas montou a equipa num 4-3-3 que permitiu aos seus jogadores apresentarem-se muito mais pressionantes e mandões sobre o PSV. Sem Renan nem Coates, Luís Maximiliano e Ilori cumpriram, e bem, sendo a restante linha defensiva composta pelo regressado Mathieu no centro da defesa e por Rosier e Acuña nas laterais. No meio campo, Doumbia foi o tampão para Bruno Fernandes e o também ele “recuperado” Wendel construírem, tendo como alvos Bolasie e Vietto nas laterais e Luiz Phellype na frente.
Se na defesa o Sporting esteve praticamente incólume — durante todo o jogo o PSV apenas ameaçou verdadeiramente num raid de Bruma e num remate de Mohammed Ihattaren no coração da área, respondendo Maximiliano com uma grande saída no primeiro lance e uma melhor defesa ainda no segundo — no ataque notaram-se ainda algumas deficiências.
Apesar das inúmeras recuperações de bola a meio-campo — o PSV, ou atacava, ou defendia, junto ao grande círculo era raro ter jogadores a fazer transições — os lances pelas alas pouco ou nada resultaram, sendo Vietto e Bolasie frequentemente inconsequentes e Phellype um mero expectador durante a maior parte do jogo.
É aqui que entra Bruno Fernandes. Apesar de toda a equipa se apresentar geralmente a bom nível, não houve lance de perigo sério onde o capitão não tivesse participado, a não ser uma honrosa exceção de que já falaremos. Mostrando que este jogo era para ganhar, o Sporting começou logo a tomar conta do meio campo adversário nos primeiros minutos houve logo bomba em arco do capitão, esbofeteada pelo guarda-redes Lars Unnerstall para canto.
O aviso tinha sido dado, mas da segunda vez o Sporting não perdoou. Lance estudado do lado esquerdo do ataque, Acuña fez um lançamento de linha lateral, Bruno Fernandes respondeu com um centro estilo taekwondo “à Ibrahimovic” para Luiz Phellype, que mal precisou de saltar para se antecipar a Nick Viergever e fazer o primeiro de cabeça. Só que ainda os holandeses não se tinham refeito do primeiro golpe, já estavam a sofrer o segundo. Pouco depois, Bruno Fernandes demonstrou porque é que não convém dar-lhe espaço à entrada da área. Vendo-se em posição para rematar, o médio atirou com precisão milimétrica ao poste e fez o segundo.
Perante estes dois súbitos baldes de água gelada, o PSV finalmente acordou e tentou disputar o jogo, mas foi tarde de mais. O Sporting, sem precisar de grandes dinâmicas ofensivas, passou a controlar o jogo a seu bel prazer e, depois de suster alguns avanços holandeses, chegou mesmo ao terceiro já perto do intervalo. Canto, bola é deixada para, lá está, Bruno Fernandes, que num longo cruzamento ao segundo poste, coloca a bola para Mathieu fazer um remate acrobático.
Explodiu Alvalade de alegria e, possivelmente, alguma incredulidade, ao ver uma equipa que tinha sido subjugada na Holanda a fazer sumo a partir desta laranja desenxabida chamada PSV.
Na segunda parte, a história foi semelhante. Já sem Bruma nem Pablo Rosario em campo — substituídos por Gaston Pereiro e Cody Gakpo — partiram os pupilos de Marco Van Bommel ao ataque para tentar protagonizar uma recuperação miraculosa, mas na sua única tentativa, acima descrita, esbarraram em Luís Maximiliano. O lance assustou, mas resultou mais de uma desatenção do que de uma alteração fundamental ao jogo. Pouco depois, o Sporting voltou a controlar e chegou mesmo ao quarto.
Na jogada que deu o derradeiro golo à partida, honras sejam feitas, Bruno Fernandes não participou, mas colheu os frutos dessa iniciativa. Depois de sair sob pressão da defesa a passe de Wendel, Acuña galgou metros e metros, passou por Dumfries e acabou por ser rasteirado dentro da grande área. Para converter o penálti esteve o capitão, mas nem mesmo esse lance foi banal: fazendo uma espécie de panenka rasteiro, Bruno Fernandes marcou o quarto e sentenciou a partida.
Ainda entraram Jese, Luís Neto e Rafael Camacho, mas a história do jogo estava selada. O Sporting irá agora à Áustria defrontar o LASK Linz para decidirem quem fica em primeiro ou segundo lugar no grupo, partida essa que não contará para Bruno Fernandes, que tento acumulado mais um cartão amarelo, terá de ficar de fora. Esse, porém, é uma exceção. O problema para o Sporting é se se tornar regra.
Na antevisão a esta partida, Marco Van Bommel confessou a sua admiração por Bruno Fernandes médio e o interesse no passado de levá-lo para a Holanda. “Eu gosto muito dele, gosto muito do Bruno como jogador. Até o quisemos comprar, mas não tínhamos o dinheiro necessário”, disse.
A questão é que há quem tenha essa disponibilidade financeira e a época de Natal, habitualmente ansiada pela maior parte das pessoas, estará a ser temida pelos responsáveis leoninos a cada dia que passa, especialmente cada vez que o seu capitão dá um recital. Por isso, volta-se a colocar a questão: “Se Bruno Fernandes, cada vez que faz um jogaço, está mais próximo de sair do Sporting, isso é bom ou mau para os sportinguistas?”
Bitaites e postas de pescada
O que é que é isso, ó meus?
“Um meio-campo que não constrói nem defende, será que existe??” é a terceira questão filosófica colocada ao leitor, relativa ao setor intermédio holandês durante esta partida. À exceção de Jorrit Hendrix — com nome de rockeiro, mas certinho em campo — pouco trabalho se viu entre setores na equipa do PSV.
Maximiliano, a vantagem de ter duas mãos
Depois de dedicar um sem-número de linhas a Bruno Fernandes, não macemos mais o leitor com panegíricos dedicados ao médio leonino. Olhe-se também para Luís Maximiliano. Depois de duas ingratas partidas onde enfileirou o pior Sporting da época (nas derrotas por 2-1 frente ao Rio Ave, para a Taça da Liga, e por 2-0 contra o Alverca, para a Taça de Portugal), o jovem guardião teve a honra de guarnecer as redes da melhor versão desta equipa, e também teve responsabilidade nisso. Naquela que foi a mais jovem estreia de um guarda-redes pelos leões nas competições desde Rui Patrício, o número 81 mostrou-se seguro, saiu bem quando foi necessário e ainda fez uma defesa de encher o olho.
Fica na retina o cheiro de bom futebol
Sim, a performance do suspeito do costume foi o ponto alto do jogo, mas para esta rubrica seria um crime não destacar em particular o terceiro golo dos leões. Em mais um episódio de “a classe não se ensina, tem-se”, Jeremy Mathieu fez aquilo que — ouso dizê-lo — nenhum defesa central faz aos 36 anos: um pontapé em moinho a rasar o chão. Isto por si só já seria meritório, mas fazê-lo depois de uma bola em balão e num ângulo apertado é só mais uma prova de que o francês é um fora de série num campeonato como o português.
Nem com todas as partes do corpo se marcava esse golo
E se o golo de Mathieu foi o coroar de uma noite onde houve bom futebol, o momento que o antecedeu terá sido o extremo oposto. Naquele que constará como um dos cantos mais caóticos na história do Estádio de Alvalade, deixou de haver futebol dentro da área do PSV para passar a haver por momentos uma interpretação humana de um jogo de matraquilhos, cujos destaques foram o pontapé de bicicleta falhado de Bolasie e as tentativas de Doumbia de marcar com todas as partes do corpo possíveis. No lance seguinte, o francês mostrou aos petizes como é que se faz.
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