A história do futebol faz-se de grandes. De grandes vitórias, de grandes campeonatos, de grandes marcadores, de grandes jogadores, de grandes treinadores e de grandes adeptos. Mas nem todos são grandes, e quando os que não são grandes querem ficar na história o que fazem? Agigantam-se.
De alguma maneira sabemos que estes, que conjugam o verbo agigantar, não vieram para ficar, mas sim para serem contados. Estes jogadores, treinadores ou equipas não são necessariamente os melhores. Jogam com mais coração do que técnica, mas acreditam que nos livros de história estará lá o nome deles.
Nunca ninguém se esquecerá do Leicester de Ranieri que se agigantou e colocou o pé entre emblemas como o Chelsea, Manchester United, Manchester City, Arsenal ou Liverpool e ergueu o troféu de campeão de Inglaterra. Nunca ninguém vai esquecer quando o “patinho feio” da seleção portuguesa se soltou de um defesa francês e, do meio da rua, sem sequer olhar para a baliza, fez o golo que fez saltar um país. A vitória na temporada passada do Moreirense na Taça da Liga, com Augusto Inácio no comando, será uma história para contar a filhos e netos.
Há momentos em que o pequeno se faz grande, reclama o seu lugar na história. O Caldas também. Já escreveu história nos seus livros, pela primeira vez estão nas meias-finais da prova rainha do futebol português. E podem não ficar por aqui.
Se recuarmos no tempo os exemplos de emblemas que alcançaram o mesmo feito são escassos. É, aliás, preciso recuar 16 anos para vermos, tal como o Caldas, uma equipa do terceiro escalão do futebol português nas meias-finais da Taça de Portugal.
Estávamos em 2002 e, na altura, um tímido Leixões, orientado pelo jovem Carlos Carvalhal, lutava para chegar à segunda divisão portuguesa. Sem sequer imaginarem escreveriam a maior epopeia de uma equipa dita pequena até ao Jamor.
Tudo começou no estádio Albano Martins Coelho Lima, casa do Pevidém, equipa de Guimarães que o sorteio da Taça ditou que confrontaria a equipa de Matosinhos na 2.ª eliminatória. O encontro diante de uma equipa de um escalão inferior, por isso, mais fácil, à partida, foi ultrapassado com um golo solitário e madrugador, logo aos 10 minutos de jogo, da autoria de Sérgio André Oliveira da Silva, mais conhecido no mundo do futebol por Pedras.
Se o primeiro sorteio da prova rainha fez sorrir a turma leixonense, o adversário seguinte não seria para brincadeiras: as bolas ditavam que o Desportivo de Chaves, na altura na segunda divisão, visitaria o Estádio do Mar, no primeiro dia do mês de novembro de 2001.
Depois de um nulo no tempo regulamentar, Pedras, mais uma vez, com um golo solitário, ‘chutou’ os flavienses para fora da competição e começou a dar forma a um sonho. Caía o primeiro “gigante”.
A história começava a ser escrita, mas ganharia outra dimensão na 4.ª eliminatória. As bolas, novamente azarentas, davam ao Leixões um adversário da primeira divisão, o Varzim, e um jogo fora de casa, na Póvoa.
A deslocação ao Estádio do Varzim culminou, aos 90 minutos, com um resultado inesperado: o placard a assinalar um nulo sem golos. O jogo ia para prolongamento. E que prolongamento! Na meia hora seguinte de jogo seriam marcados quatro golos, dois para cada equipa. Primeiro o Varzim adiantou-se, por Paulo Piedade. Depois, de seguida, Detinho empatou o encontro. A turma leixonense ainda chegou a estar em vantagem, com um golo de Antchouet, aos 114 minutos, mas um golo de Vítor Manuel aos 118 minutos ditou uma segunda-mão de desempate, numa altura em que os tira teimas não eram feitos a penaltis.
Se lá fora os adversários poderiam dar luta, no Estádio do Mar quem reinava era o Leixões. E a segunda-mão foi isso mesmo. O Varzim deslocou-se até Matosinhos para o desempate da eliminatória, e regressou à Póvoa do Varzim, eliminado, após uma surpreendente derrota por 3-1 diante dos comandados de Carlos Carvalhal.
Daí em diante a vida não seria mais fácil. O sorteio ditou um Moreirense, comandado por Manuel Machado, que militava na segunda divisão e que os pupilos de Carvalhal souberam derrotar por 1-2 em Moreira de Cónegos.
Será justo dizer que o único momento de algum fôlego para os bebés do mar foi quando no sorteio para os oitavos-de-final que ditava, devido ao número ímpar de emblemas, que um clube passava automaticamente aos quartos-de-final. Calhou a sorte ao Leixões. O adversário nos quartos foi um Portimonense de segunda divisão que, tal como o Varzim, foi eliminado por 3-1.
O feito da chegada às meias-finais da Taça era histórico - apenas comparado à prestação do Lusitânia Lourosa que em 1994 tinha chegado às ‘meias’, onde tombou aos pés do Sporting de Carlos Queiroz -, mas era ofuscado, a poucos quilómetros, pelo Sporting de Braga de Manuel Cajuda que tinha eliminado o FC Porto de Otávio Machado por 1-2 em pleno estádio das Antas.
Sorte das sortes, seria mesmo o clube bracarense o adversário do Leixões na meia-final e ninguém poderia prever um desfecho feliz. Os arsenalistas, então na primeira divisão, tinham um plantel forte, onde pontificavam internacionais portugueses como Quim, Ricardo Rocha Barroso e Tiago, bem como o avançado Barata (autor de 15 golos em 30 jogos no campeonato) ou o médio Castanheira. Já o Leixões tinha no plantel alguns nomes históricos do futebol português como o capitão Abílio, o bósnio Nail Beširović ou o português Tozé, bem como o médio Bruno China (na altura a despontar) e dois avançados que fizeram carreira nos relvados lusitanos: Detinho e Antchouet.
O encontro decorreu no estádio 1.º de Maio, casa do Braga até à mudança para a Pedreira. Após uma primeira parte com poucos lances de perigo, a segunda metade do encontro abriu praticamente com um golo do capitão Abílio que, de livre direto, inaugurou o marcador.
O Leixões baixou as linhas e mostrou que sabia sofrer perante um Braga claramente superior que sofria por não conseguir fazer abanar as redes da baliza adversária.
Saber sofrer é uma arte que, nas equipas ditas pequenas, costuma a ter expressão no contra-ataque. Foi o que o Leixões fez. Aos 80 minutos, um roubo de bola à defesa subida dos arsenalistas fez com que a equipa de Carvalhal saísse rápida em contra ataque e fizesse o 0-2. Cortesia do defesa lateral Nené.
Quando todos davam o jogo por terminado eis que Barroso, de livre indireto, reduz a partida e relança o encontro. A euforia dura pouco tempo, porque aos 90 minutos uma bola bombeada para a frente sobra para Detinho e o brasileiro, sozinho na cara do guarda-redes Marco Gonçalves não tem mais medidas e faz o 3-1.
Pela primeira vez na história do futebol nacional, uma equipa do terceiro escalão estava no Jamor para disputar a final da Taça de Portugal, e com uma garantia: com o outro finalista, o Sporting, já apurado para a Liga dos Campeões, o Leixões iria disputar a Taça UEFA.
Antes dos leixonenses, os maiores feitos pertenciam ao Vitória de Setúbal, em 1943, e Farense, em 1990, que nas respetivas épocas disputaram o campeonato da II divisão e chegaram à final.
A hecatombe foi na altura tão grande que o administrador da SAD do Braga, responsável pelo futebol dos arsenalistas, João Marques, pediu a demissão do cargo na sequência da eliminação.
Se numa das equipas ficava um salário a menos por pagar, no Leixões ficava um cheque por assinar. Tudo porque na flash interview depois da vitória em Braga, Nené, autor do segundo golo da partida, e que tinha chegado nessa mesma temporada a Matosinhos, proveniente do Desportivo das Aves, revelou que tinha um ‘cláusula Jamor’ no contrato.
O defesa português, na altura da transferência, tinha dito ao presidente leixonense que um dos seus sonhos era disputar a final da Taça de Portugal e, por brincadeira, exigiu uma cláusula de opção no seu contrato que estipulava um prémio especial caso a equipa chegasse ao Estádio Nacional. Na altura, relembra o jornal Record, o presidente José Manuel Teixeira sorriu com a tirada, mas acabou por ter de abrir os cordões à bolsa: “Acabei por ter mais sorte. Foi um jogo para mais tarde recordar e estou muito contente”, disse Manuel Teixeira.
A dias do tão esperado encontro entre o campeão nacional e o “tomba gigantes”, Carvalhal reagia ainda incrédulo. "Chegar aos quartos-de-final já seria bom, ir às meias-finais era óptimo e estar na final é algo de transcendente", dizia o português, procurando disfarçar o secreto desejo de surpreender os "leões".
Depois do percurso todos acreditavam que a surpresa no Jamor seria possível, mas pela frente estava um Sporting campeão, com nomes como Hugo Viana, Ricardo Quaresma, Pedro Barbosa, Paulo Bento, João Vieira Pinto e claro, Mário Jardel, a cereja no topo do bolo.
Foi o brasileiro, Bota de Ouro nesse mesmo ano, que apontou o golo que viria a dar a vitória aos leões e colocar um ponto final no conto de fadas do Leixões. Um golo que, na altura, gerou até alguma polémica e que, anos depois, o próprio Jardel admitiu em declarações à Sporting TV, numa entrevista a Fernando Correia, teria sido marcado em posição irregular.
A epopeia chegava ao fim, mas a má notícia chegava depois, com o Leixões a falhar a subida de divisão, apesar de ter terminado o campeonato com os mesmos pontos do FC Marco. Ficava a qualificação europeia e uma história sobre o Jamor para contar aos netos.
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