Imagina que vais na rua e há quem chame por ti. Uma pessoa grita Tarantini e outra Ricardo. À qual respondes primeiro?
Provavelmente olho mais rápido se me chamarem Tarantini, porque na rua provavelmente não irá ninguém que me conheça por Ricardo. Tarantini é um nome que nunca mais vai sair, penso eu. Atualmente são poucos os que me chamam Ricardo, só a família, pais e irmãs. A esposa, por exemplo, chama-me Tara. Foi um nome que um treinador, João Cavaleiro, no Sporting da Covilhã, começou a chamar-me, ele dizia que eu era muito semelhante a um jogador da seleção argentina [Alberto Tarantini].
“O Caçador de Sonhos” é o segundo livro que escreves, qual a mensagem que pretendes passar como escritor?
Sempre senti o interesse de deixar algo de mim, por onde passava. E sabia que tinha de ser algo importante, não apenas palavras ditas, por que essas leva-as o vento. Tinha de deixar algo que ficasse e lembrei-me de escrever. Admito que não é fácil, até porque nunca fui um grande aluno a português. E acabou por vir da necessidade, da vontade de colocar na escrita o que tinha para dizer. O primeiro livro veio na sequência do meu projeto, A Minha Causa, e é mais uma biografia. Este, "O Caçador de Sonhos", é mais uma história, um livro para os mais jovens, que visa misturar as minhas vivências no futebol com alguns ensinamentos que entendo serem importantes numa carreira de jogador. Tenho um outro escrito, em eBook, da relação do futebol empresarial; um dia poderá sair um outro tipo de livro, mas não é algo que me inspire. Mas não há dúvidas que, desde que abracei esta causa, esta é a minha marca.
Licenciaste-te, fizeste o mestrado e já este ano concluíste o doutoramento. O que se segue?
Acho que já fiz muito em termos de ensino e não vou estudar mais. Tive a sorte de ter um orientador incrível, aliás dois, que me empurravam sempre para a frente, mas foi duro. No entanto, acabei por conseguir algo que sempre sonhei, que foi o doutoramento. Não sou o único doutorado no futebol, mas penso que fui o único a tirá-lo ainda a jogar. Agora quero tirar o 4 nível como treinador. Esse é o passo seguinte.
Não é fácil jogar ao mais alto nível e ao mesmo tempo ser estudante universitário. Como te preparaste para isso?
Tem de haver muita motivação. A dada altura da minha carreira, comecei a sentir que podia não chegar a um alto nível, concretamente em termos de grandes clubes e chegar à seleção. Então percebi também que poderia construir uma marca minha. Tudo o que tenho feito vem de trás, foi algo que comecei a perceber, com o tempo, que poderia ir construindo, fora do futebol. Chegou a um ponto que percebi que poderia crescer nisto. E na prática era uma gestão do tempo, ao minuto. Acredito que na maior parte das vezes exagerei, mas nunca coloquei em causa a minha carreira no futebol, nunca me desleixei. Mas senti que por vezes exagerava, em vez de descansar, ia para uma palestra, ou estudava, e ficava mais cansado. Superar isto tudo só com muita motivação e foco.
"Foram 20 anos de carreira e não pode acabar de um dia para o outro, tem de se preparar com tempo. É isso que quero deixar para as gerações futuras"
O "Caçador de Sonhos" foi então o nome escolhido para este livro. É mesmo uma tarefa para a vida, correr atrás dos sonhos?
No meu caso, sim. Até faço a comparação dos sonhos com as bolas de sabão, quando tocamos nelas desaparecem e depois surgem logo outras a seguir. Reconheço muito essa vida de desafios, que sempre fui tendo e alimentando. Sempre tive uma vida de sonhos: tirar uma licenciatura a jogar futebol, depois veio o mestrado, ainda a jogar futebol, depois o doutoramento, o meu projeto A Minha Causa, escrever um livro, as palestras, trabalhos de investigação, um segundo livro, etc. A minha vida tem sido um pouco assim, um alimentar os sonhos.
No livro há uma passagem onde realças que tu e a bola eram amigos inseparáveis. Parece ser uma frase comum a todos os futebolistas...
Em Baião, de onde sou, não há ninguém com ligação ao futebol. Na minha família também não havia. Não sei a razão de andar sempre com uma bola, mas é verdade, nasci com aquilo. Antes de entrar na escola pegava na bola e andava a chutá-la contra as paredes, almoçava e jantava com ela nos pés. A minha mãe ficava possuída, mas não consigo explicar porque era assim. Pode ser uma frase feita de futebolistas, mas era a minha realidade.
O que sente uma criança quando alguém lhe diz que o futebol não é para meninos de aldeia, como dás exemplo n' "O Caçador de Sonhos"? ["Isso do futebol não é para rapazes da aldeia. Ele que se deixe de ilusões", rematou a vizinha]
Naquela altura, Baião era conhecido como o concelho mais pobre da Europa. Havia a ideia de que quem ali nascesse, iria ali morrer ou emigrava. O sonho de ser jogador era inaceitável, impossível. Lembro-me de dizer, na altura, a uma amiga, que um dia ainda havia de assinar um poster meu e no final isso aconteceu. Mas essas palavras das pessoas da aldeia magoavam muito. Hoje em dia já não é assim, acredito que há muito orgulho no meu trajeto. Quando vou a casa sinto isso.
"Fazes tudo por ele". Esta é uma frase da tua mãe sobre o teu pai, que retratas também no livro. As carreiras devem-se aos pais?
Não tenho dúvidas. Se não fosse o meu pai e a minha mãe, a minha vida teria sido outra. Mais até o meu pai, porque a minha mãe era sempre mais renitente sobre o que iria ser a minha vida no futebol, sobretudo por causa do dinheiro e do tempo que perdia. O meu pai era diferente. É preciso ter uma paixão muito forte, como o meu pai tinha. Sair de casa a meio da noite ou ao final do dia de trabalho para conduzir numa estrada sinuosa, com neve. Na altura não havia auto-estrada, não era nada fácil. Fazer isso por um miúdo... a carreira que fiz deve-se a eles. E acredito, claro, que com os outros jovens é igual. Claro que tem de haver muito trabalho individual, mas também muito sacrifício dos pais.
E é fácil correr atrás de sonhos quando uma criança tem de acordar às 6h00 para ir para a escola e chegar tarde a casa depois dos treinos?
Quando fui para Amarante, para o 10º ano, tinha de apanhar dois autocarros e admito que houve alturas complicadas. Com os estudos, os treinos e o cansaço, pensei várias vezes se valeria a pena. Admito também que possa ter pensado em desistir, mas a paixão pelo futebol era tanta que conseguia vencer tudo.
"Os pais colocam muita pressão sobre os miúdos. Isso pode prejudicá-los imenso, há muitos com uma baixa autoestima incrível"
A escola sempre esteve muito presente na tua vida, o teu gosto pela leitura, pelos livros, etc. Quando é que os estudos passaram para um plano B e o futebol para um A?
Não tenho dúvidas que até assinar um contrato profissional, na Covilhã, o plano A eram os estudos, o futebol era o B. O futebol foi crescendo ao lado dos estudos. Isso foi sempre óbvio para mim e penso que tem de ser para todos. O futebol, e qualquer outro desporto, é uma paixão, mas a cabeça tem de estar na escola.
A pressão dos pais é outro exemplo que é necessário ultrapassar e que dás como exemplo no livro...
Sim, os pais colocam muita pressão sobre os miúdos. Isso pode prejudicá-los imenso, há muitos com uma baixa autestima incrível. Das crianças com as quais tenho contacto, sinto, por vezes, sentimentos muito negativos. Há tanto desejo que os filhos consigam bons resultados desportivos que por vezes prejudicam. Há boas intenções, mas a forma como as transmitem é a errada. Durante este percurso, os jovens têm de ter paixão pelo futebol, ou outro desporto, e não a pressão de ter de ganhar.
E mesmo com muitos obstáculos ultrapassados, para singrar também é preciso ter sorte...
Conto a história do Zé Diogo no livro, uma história verdadeira de um amigo com quem joguei, que era o melhor, o que tinha mais talento. Foi fazer testes a Inglaterra, mas acabou por não ficar. Hoje em dia é professor. Tive muitos Zé Diogos e posso dizer que nem todos os talentos foram jogadores de futebol. Só o talento não chega, é preciso muito trabalho e sorte. O compromisso caracteriza um jogador de topo, mas há depois muitos outros fatores, ainda que talento e trabalho seja meio caminho andado.
"Levanto a questão se, com os meus valores, posso ser treinador"
A indústria do futebol tem de preparar os jovens para o falhanço?
Vou dar um exemplo. Recentemente, uma das dez normas que a Premier League reconheceu para um jogador profissional foi a gestão de carreira, concretamente o pós-carreira. Ou seja, querem tratar bem quem lhes deu muito. Nós somos os palhaços do circo e por isso tem de haver uma responsabilização das instituições e entidades para que os jogadores possam não só crescer no futebol, mas essencialmente saberem lidar com o final da carreira. Esta é uma das minhas grandes batalhas, que o jogador tenha consciência do que precisa quando acabar de jogar. Nem todos têm uma boa base familiar, uma boa estrutura à sua volta, tem de haver formas de combater isso. E quem consegue encaminhar isso são as entidades. Se uma das maiores instituições de futebol mundial reconhece que uma das dez principais normas da indústria é a gestão de carreira, então isso tem de ser transversal.
Dizes que quando foste pai sentiste o apelo de ajudar as gerações futuras. Em que sentido?
Quando fui pai senti ainda mais a necessidade de fazer ver aos mais jovens como deve ser a gestão de uma carreira desportiva. Vou dar o meu exemplo, fui das pessoas que mais estudei o tema em Portugal e mesmo assim, quando acabei, no ano passado, senti muito o vazio que ficou. Em todos os termos, mesmo a ocupação diária do tempo. Foram 20 anos de carreira e não pode acabar de um dia para o outro, tem de se preparar com tempo. É isso que quero deixar para as gerações futuras.
Depois de tantos anos no futebol, e do que conheceste, pensas que os jogadores gerem bem as carreiras?
Estamos a evoluir positivamente. Há uma preocupação diferente, hoje, mas a verdade é que continuam a gastar muitos recursos, têm despesas altíssimas. Mas há uma preocupação, sabem que têm de ter rendimentos ativos para depois da carreira, pela vida que vão tendo. Mas tenho notado a preocupação e os projetos que estão a aparecer em Portugal vão ajudá-los. As academias dos clubes também são um avanço nesse sentido, permitem que continuem a estudar ao mesmo tempo que jogam, dá-lhes uma maturidade diferente. Há um dado recente também muito importante, nomeadamente a preocupação muito grandes das mães, grandes influenciadoras da vida dos filhos. São elas que procuram junto dos clubes a formação e educação que estes têm para os seus filhos e isso é determinante para elas na hora de escolherem o clube para os seus filhos. Vi muitos disparates financeiros. É mais fácil ensinar os mais novos, os mais velhos têm mais vícios. Há dados gritantes de jogadores que vão para a bancarrota.
"Se tivesse de voltar atrás teria saído no ano do Carlos Carvalhal"
Revelaste recentemente, após a saída do Famalicão, onde iniciaste a temporada como treinador adjunto, que este era um momento de introspecção. Com tantas áreas por onde te podes mexer, afinal o que queres ser no mundo do futebol?
Essa é a pergunta de um milhão de euros. Tenho na minha cabeça etapas e que tenho de fazer escolhas. A maior preocupação que tenho é a de saber o que o Tarantini quer como treinador de futebol. Há uma ideia clara que vou continuar como adjunto. Há objetivos como jogador que não consegui alcançar: ter ganho uma Taça, ter chegado a outro nível, trabalhar com os melhores. É é por isso que decidi continuar no campo, foi uma decisão de consciência. Enquanto pessoa, contudo, sei que tenho de me enquadrar no futebol. Mas levanto a questão se, com os meus valores, posso ser treinador. Se achar que esses valores não estão enquadrados, então não posso ser treinador.
Qual a maior desilusão e a maior conquista em 20 anos dentro das quatro linhas?
O que mais me entristeceu foi a forma como saí do Rio Ave. Se tivesse de voltar atrás teria saído no ano do Carlos Carvalhal, o melhor ano desportivo do Rio Ave. Não foi bom para mim e não foi bom para o clube, mas há coisas que não controlamos. Em termos positivos, os dois golos que marquei num só jogo ao FC Porto, a classificação para a fase de grupos da Liga Europa, num dia em que a minha mulher perdeu um bebé com 25 semanas, e a final da Taça de Portugal.
Por último, como se recusa um milhão de euros?
É a história que conto no livro sobre a minha ida para um clube iraniano. Nessa altura, cheguei ao Irão numa época pós-troika, com a ideia de ir ganhar muito dinheiro. Fui com um colega, mas sempre contra a ideia da minha mulher, que me perguntava todos os dias se esta opção iria realizar todos os sonhos da minha vida. Eu dizia que sim, ela dizia que não. Fiquei lá uma semana. Quando cheguei percebi outra realidade, que as coisas não eram tão simples. Depois roeram a corda ao acordo com o meu colega e fiquei sozinho. Quando ligava à minha mulher, ela continuava a perguntar-me o mesmo. Fui com um objetivo, mas percebi que para conseguir estar num projeto tinha de ter o mais importante ao meu lado. Voltei e não me arrependi, foi um ensinamento muito grande.
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