Nuno Morais é pai de Frederico Morais, conhecido como Kikas, o nome de quem se fala como o sucessor de Tiago "Saca" Pires. Por estes dias, o surfista e o pai estão na Austrália, palco da estreia no Championship Tour, divisão principal da World Surf League (a liga mundial de surf). Uma competição em que, até aqui, Portugal tinha estado representado, entre 2008 e 2014, apenas pelo "Saca". A estreia na prova não correu tão bem quanto pai e filho gostariam, mas Kikas acabou eliminado, na sexta-feira, por um nome que dispensa grandes apresentações, já que se trata de Kelly Slater, campeão do mundo de surf por onze vezes. Esta é só mais uma viagem que pai e filho fazem juntos. A somar a muitas, em busca de um sonho. Olhando para trás deram já “sete voltas ao mundo”.
Tem no seu consultório de fisioterapia revistas com o “Kikas” na capa. Não é normal. Costumamos ver outro tipo de revistas nos consultórios ...
É filho! (sorrisos). Os clientes trazem e fica aqui.
E já que estamos a falar de revistas, vamos recuar no tempo e vou pedir-lhe que conte a famosa carta que o “Kikas” escreveu à revista Surf Portugal.
A carta foi escrita com a ajuda da mãe. O Kikas surfava e comprava a Surf Portugal. Um dia perguntou: "quando é que apareço aqui?". Decidimos então juntar um texto e uma fotografia e perguntámos o que é que ele gostava de dizer. A mãe redigiu. Foi aos 6 anos.
E no mar, como é que tudo começou?
Foi nas ondas do Guincho. Não sei muito bem como aconteceu, foi uma força que me levou para aquilo. Via-o a pôr-se em pé nas espumas. Eu nunca olhei para o surf, só olhava o râguebi [Nuno foi jogador de râguebi]. Como via que ele não estava a fazer nada nas espumas, levei-o lá para a frente, para junto de surfistas que andavam por lá. Depois vinha a nadar atrás da onda. Um dia apanhei um susto num agueiro. Fomos os dois apanhados ...
Desde então nunca mais parou esta dupla pai-filho?
Comprei umas barbatanas (pés de pato) e um fato. Tornou-se uma rotina. Ia buscá-lo à escola primária às 16h00 e íamos para a praia até as 18h00. Em vez de jogar à bola, atirava-o para as ondas. Nessas idades se não formos nós a levá-los, eles também não vão. E depois como achava que ele tinha algum jeito, uma força extra levou-me a fazer aquilo.
Ou seja, a relação pai e filho foi sendo construída no mar ...
Íamos juntos durante a semana. Parava de trabalhar durante duas horas, das 16h00 às 18h00, e íamos até Carcavelos ou ao Guincho. Às vezes esperávamos para ver se entrava alguém na água, porque não gostava de entrar sozinho com ele que era muito pequeno. Fomos evoluindo, a frequência foi subindo. Passou a ser sábados e domingos e o dia todo. Hoje em dia é diferente (risos)...
Mas não era demasiada intensidade para uma criança?
Eu levantava-me às 05h30 para ir para o ginásio. Ele vinha atrás e queria seguir o exemplo. Umas vezes levantava-o, outras não. Às vezes, ia ao Guincho, às seis da manhã, para ver se havia ondas. Se não houvesse, poupava-o. Se fores um pai a tempo inteiro e um pai dedicado, os teus filhos, quando entrarem no desporto, vão também ser dedicados.
A família adaptou-se em função do Kikas?
Íamos todos juntos de férias para o Havai quando ele tinha 10, 12 anos. O Kikas faz anos em janeiro e íamos sempre na altura do Natal para lá. Fazíamos as compras de Natal em Honolulu. Tudo normal ...
Se tens hipóteses de apoiar o sonho do filho, não interessa se entra no Circuito Mundial de surf . Interessa apoiar o sonho
O Kikas não é filho único. De que forma é que a irmã conviveu com o percurso dele?
A irmã fez bodyboard. Tem a sua vida, bem resolvida. Não houve nenhum atropelo à vida normal. Se a minha filha quisesse fazer um mestrado em marketing que era o sonho dela, faria todos os sacrifícios. Trabalhamos para ter economias para ajudá-los a crescer.
Ajudar o Kikas a crescer foi, ainda sim, menos típico do que num percurso mais normal ...
Se tens hipóteses de apoiar o sonho de um filho, não interessa se entra no Circuito Mundial de surf . Interessa apoiar o sonho. Vai ganhar mundo, conhecer pessoas, e depois, se não conseguir, podemos encaminhar para um curso ou uma profissão, ou para um trabalho, mesmo sem licenciatura, que o faça feliz e que seja uma profissão honrosa.
A receita é apoiar os sonhos?
A receita é formar como homem. E ir em busca dos sonhos. Nunca desistir. Quando tudo começou disse-lhe: vamos embora, eu vou contigo e acompanho-te no sonho. Não preciso de começar uma etapa com os meus filhos a saber que vão ser doutores ou campeões do mundo. Eu quero é que eles estejam a fazer aquilo com alma, realizados e a sonhar. É preciso sonhar para chegar mais à frente. E não temos que ser ricos nem pobres para ajudar a construir um sonho.
Se queres ser padeiro que faças o melhor pão.
Nunca teve a tentação do “canudo”, de ter filhos doutores e engenheiros?
O Kikas foi até ao 12º ano e parou. Por opção. Na altura discuti com a minha mulher e mãe dele. Dizia que deixava-o ir assim até aos 24 anos e depois logo se veria no que dava. E deu. Aliás já dava na altura. Opção pelo canudo? Zero. Sou viciado em gostar daquilo que faço e fazê-lo bem. Utilizava a expressão padeiro. E dizia sempre. "se queres ser padeiro que faças o melhor pão. Serás aquele que vai ser conhecido pelo pão". Ser o melhor é pouca humildade.Tentar ser o melhor naquilo que escolhemos fazer, temos é quetentar ser o melhor. Dizia-lhe sempre: 'trabalha que o teu dia chegará. Treina porque gostas de treinar e depois virá a consequência'.
Desde os seis anos, o Kikas sempre foi o melhor do mundo ou apenas era o melhor para si?
Para mim tinha jeito. É o melhor. O número 1. E eu passei-lhe isso. Se não passasse essa a energia para ele, quem passaria?
Andou sempre atrás do sonho do Kikas. Austrália, Maldivas, Havai ..
Ia a cada um dos locais em busca de cada um dos tipos de ondas diferentes. Para evoluir. O Kikas tinha treinadores na Austrália e no Havai. Eu via os treinos, aprendia e durante o ano acompanhava. Filmava tudo. Tinha um sistema de filmagem. Agora toda a gente anda com câmara. Antes ouvia comentários que o pai era um vaidoso ...
Filmava nessa altura como se faz hoje em dia nos treinos de outras modalidades?
Uma vez, em conversa com o meu irmão, falei da aprendizagem em espelho. Ou seja, eu filmava todas as ondas do Frederico mesmo aquelas que ele não fazia, as que caía e as que surfava. Quando íamos no carro, mostrava-lhe a filmagem e ele ia a ver o que tinha feito. Fica com uma aprendizagem espelho. Se eu filmasse só as ondas boas, ele ficava com a ideia errada que fazia tudo bem. Isto dava o conhecimento ao Kikas. Tínhamos o compromisso de durante uma hora ele surfava e eu não podia perder uma onda dele. Se pegasse na câmara de filmar e filmasse só um pouco era vaidade ou distração. Muitas vezes chovia e eu estava ali. Ele na água e eu ali. Quase tirei um mestrado em surf.
Um desporto individual tem que ter um pai que ama o filho e um treinador que ajuda o pai nesse amor
Fez de pai, amigo, treinador, fez de tudo um pouco?
Eu era treinador, psicológico, motivador e condutor. E pai. Ainda hoje tenho uma enorme relação com o meu filho.
Quando é que entrava o pai e quando é que entrava o treinador?
O papel do treinador é pedir algo. E eu tentava ver onde estava o erro e onde ele podia dar mais. Amor de pai leva-nos a tudo. É tramado. Um desporto individual tem que ter um pai que ama o filho e um treinador que ajuda o pai nesse amor. É a simbiose. O treinador não está com o atleta o dia todo. Quem o faz é o pai, mas tem de ter um treinador que o oriente.
A partir de certa altura começou a haver um treinador entre o pai e o filho. Quando é que se apercebeu que o Kikas estava a ganhar asas e necessitava de algo mais?
A certa altura comecei a perder o barco. Ele começou a ter um surf muito evoluído e eu já não o conseguia acompanhar num nível competitivo. Foi aí, quando ele tinha 16 ou 17 anos, que apareceu o “Dog” (Richard Marsh, treinador), que caiu do céu. É amigo, é um bocado pai dele. Vi que era a pessoa certa, olhando-o olhos nos olhos. Foi criada a simbiose. Chorei. Chorámos os dois nesse momento. Agora tens que ir sozinho, disse-lhe. Cortou-se o cordão umbilical e as coisas foram mudando. E aconteceram coisas boas.
Deixou a pele de treinador mas continua sempre ao lado dele.
Agora só vou quando dizem para ir. E estou lá presente (e está atualmente na Austrália, na Gold Coast, palco da primeira etapa do CT).
Neste percurso todo nunca teve dúvidas que era o caminho certo que estava a fazer?
Temos sempre dúvidas e os campeões fazem-se sempre com essas dúvidas. Na mente tinha: temos esta estrada. A estrada é esta. E o caminho é a direito. Não viro à esquerda, porque depois tenho que virar à direita. Não. O caminho é este. E é aqui que temos que seguir. Se falhar, falhamos juntos. O ruído é tramado. Vamos fazer o caminho em silêncio para o sucesso fazer muito barulho. Em Portugal sempre foram muito críticos com o Kikas. Quem ia dar era o outro. Aquele que estava na barriga da mãe ...
O Kikas que diz que o pai é a razão disto tudo, tem-no como herói. E o pai tem no Kikas o herói (para além da filha). É assim?
O Kikas é o herói do pai. Conseguiu o sonho a curto prazo. Agora vai construir outro. Ele vira um bocado herói, porque é um miúdo com sorriso fácil, não cria atritos, é o antivedeta. Humilde. Tira fotos com todos...
João Aranha, presidente da Federação Portuguesa de Surf disse no final do ano passado, após o Kikas ter-se qualificado para o Circuito Mundial, que ele pode um dia ser campeão do mundo. Partilha dessa opinião?
Está tudo em aberto. Ninguém pode dizer que é o melhor do mundo. O que é isso? Isso é estar a perder o respeito pelos adversários. Quero que esteja dentro dos melhores e quando aparecer a oportunidade, ele tem que estar lá.
E está entre a elite do surf. Chorou nesse dia ou um homem não chora?
Chora sim! Chorei quando o Kikas garantiu o lugar entre a elite do surf mundial e chorei pela morte do meu pai. Dois opostos, felicidade e tristeza.
Quantas voltas ao mundo já deu ao lado do Kikas?
Quantas? Já dei seguramente sete voltas ao mundo. São muitos anos e milhares e milhares de quilómetros. De avião, de carro sempre à procura das ondas ... Recordo-me dele em miúdo com 14 anos, quando íamos para França, no carro, ouvíamos música, eu não sei nada de música, e ia a ouvir os Hot Peppers, é assim? (Red Hot Chili Pepers).
De certo deve ter milhares de episódios. Há algum marcante?
Sei lá ... são tantos. Deixe-me pensar... quando vínhamos dos campeonatos e ele não apanhava ondas, vinha a discutir com ele no carro. E ele ouvia tudo. A olhar para baixo. Passado um bocado, perante o silêncio eu dizia: é pá tens razão, não é nada disto, tens razão! E ele começava a rir-se. E íamos comer um cachorro. Vivia intensamente. Exagerava e pedia desculpa, mas ele bebia um pouco daquela força e energia.
Uma das características do Kikas é a calma que tem em todos os momentos. E foi com calma que ajudou a que ele construísse uma carreira. Já sabemos que se multiplicava, mas quem tratava do resto, dos patrocínios?
A mãe tratava dos patrocínios. Eu disse uma vez ao Kikas: 'não vou procurar um patrocinador que te dê mais dinheiro. Se tu fizeres o teu trabalho, vêm ter contigo'.
E vieram...
Sim. Mas eu dizia-lhe sempre:'vai surfar. E surfas bem quando na praia disserem uau grande onda! Se for indiferente ... és igual aos outros. Procura sempre mais'.
Olhando para trás: e se não fosse o surf?
Sempre disse que se ele não quisesse, podia ir para outro lado. Recordo-me do que um dia disse o tio do Rafael Nadal (tenista): “Primeiro formei-lhe o caráter e depois a técnica. Por isso é que o Nadal ainda hoje não sabe servir” (risos). Na onda que classificou o Kikas no Havai e que lhe mudou a história, ele pôs a cabeça e não a técnica. 'Tenho que fazer isto, pensou. E fez'.
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