“A vulnerabilidade da situação patrimonial das famílias portuguesas e o risco do período prolongado de transição turbulenta e de crises pode conduzir a uma rápida e profunda destruição da poupança interna ao longo da próxima década”, alerta o trabalho, intitulado ‘Foresight Portugal2030' e hoje divulgado.
É que, explica, “um período prolongado de estagnação económica ou de crescimento baixo pode originar uma transformação patrimonial e modificações na estrutura de propriedade com implicações sociológicas relevantes”.
Como exemplos, avança a possível “mudança da propriedade do património habitacional das famílias portuguesas para os estrangeiros, como resultado dos efeitos das crises económicas e do nível de endividamento com a aquisição de habitação”.
“Na próxima década, Portugal pode deixar de ser um ‘país de proprietários de casa própria’ para se transformar num ‘país de inquilinos de estrangeiros’, através de um processo de ‘venda forçada’ do património imobiliário a preços de saldo, com uma grande destruição do valor da riqueza acumulada pelas famílias”, alerta.
Neste contexto, sustenta a Gulbenkian, saber “como gerir e mitigar esse processo constitui uma das prioridades da sociedade portuguesa e das políticas públicas”.
Citando dados do Banco de Portugal (BdP), o estudo refere que, em 2019, o património total das famílias portuguesas ascendia a 847.000 milhões de euros, dos quais 435.000 milhões de euros em ativos financeiros (depósitos, ações e seguros) e 413.000 milhões em ativos não financeiros.
Já o valor total da dívida das famílias era de 162.000 milhões de euros, cinco vezes inferior ao valor do seu património total, pelo que o património total líquido das famílias rondava os 686.000 milhões de euros.
Segundo salienta, os 847.000 milhões de euros de património total das famílias portuguesas em 2019 era superior em mais de 120 mil milhões de euros ao total da dívida portuguesa de 719 mil milhões, quase o dobro do valor do ‘stock’ de capital líquido de 544.000 milhões e quatro vezes o Produto Interno Bruto (PIB) de 2019, de 202.000 milhões de euros.
Nesse mesmo ano, e em média, cada família portuguesa possuía 109 mil euros em ativos financeiros (48 mil euros em depósitos e numerário), uma dívida de 40 mil euros, um património financeiro líquido de 68 mil euros, casa própria com um valor patrimonial de 103 mil euros, 212 mil euros de património total e 172 mil euros de património líquido.
Números que, sustenta, evidenciam que “a riqueza acumulada pelas famílias constitui um recurso endógeno de grande dimensão e um ativo de elevado potencial”, ou seja, “um tesouro macroeconómico que deve ser valorizado, rentabilizado e encarado pelas entidades públicas como um meio para reestruturar e relançar a economia portuguesa”.
“Apesar da dimensão da crise e dos elevados níveis de endividamento, os portugueses detêm um ‘pé-de-meia’ razoável, na ordem dos 170 mil euros, dos quais 68 mil em ativos financeiros, com elevada liquidez”, destaca o estudo, notando que estes números contrariam “uma certa perceção generalizada de que a grande maioria das famílias não dispõe de património”.
Pelo contrário, diz, estes números “evidenciam que as famílias portuguesas demonstraram, ao longo dos últimos anos e em contextos macroeconómicos muito diferenciados, uma capacidade invulgar para valorizar e multiplicar o seu património”.
No ‘Foresight Portugal2030’, a Fundação Calouste Gulbenkian nota ainda que os ativos patrimoniais associados à posse de habitação constituem “a principal componente da riqueza das famílias” portuguesas, correspondendo, em 2019, a 60,2% do seu património total líquido e a 48,8% do seu património total.
E, se é um facto que “o nível de endividamento da sociedade portuguesa é relativamente elevado – 356% do PIB, em particular – como resultado do elevado nível de endividamento do Estado (157% do PIB) e das empresas privadas (130% do produto interno)”, o trabalho considera que “o elevado endividamento dos agentes económicos só se transforma num problema estrutural se a sociedade portuguesa não demonstrar capacidade para utilizar de forma produtiva e eficiente o elevado nível de riqueza acumulada pelas famílias”.
Neste contexto, defende a “necessidade de redefinir e reorientar o foco das políticas” para, por um lado, valorizar os ativos patrimoniais das famílias e, por outro, “criar as condições macroeconómicas adequadas, os instrumentos e as garantias necessárias que permitam mobilizar a poupança interna para financiar o investimento, o emprego e o crescimento”.
Paralelamente, a Gulbenkian destaca a importância de “revalorizar os ativos imobiliários, que representam mais de 50% da riqueza das famílias”, já que, num contexto em que quase três quartos dos agregados familiares são proprietários da sua habitação, “a evolução do preço dos imóveis afeta, direta e indiretamente, os alicerces da riqueza nacional”.
“Quando os preços das casas desvalorizam, três quartos dos portugueses empobrecem; ao contrário, quando se valorizam, a economia nacional beneficia por via do consumo e do investimento das famílias”, nota.
O estudo do projeto 'Foresight Portugal 2030' é apresentado como “um exercício de prospetiva”, que cruza questões económicas e financeiras com questões demográficas, sociais, tecnológicas, ambientais, geoeconómicas e geopolíticas.
Coordenado pelo economista José Félix Ribeiro, mas com contributos de vários especialistas, o estudo tem três objetivos assumidos: “retomar o crescimento do país, após décadas de quase estagnação; contribuir para a mitigação e a adaptação às alterações climáticas, sem travar o crescimento; e promover a coesão e a mobilidade sociais, num contexto de mais forte solidariedade intergeracional”.
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