Este acordo entre a União Europeia e o Mercosul, concretamente com os mercados do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, equivale a 25% da economia global e atinge 780 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial.
Ursula Von der Leyen está desde esta quinta-feira no Uruguai para tentar colocar preto no branco algo que tem vindo a ser discutido há 20 anos. Discutido, mas também criticado, sobretudo por produtores da União Europeia.
Semanas antes da viagem da líder da Comissão Europeia à América do Sul, por exemplo, em França, houve quem se juntasse a esta luta dos produtores, concretamente duas cadeias internacionais de hipermercados, o Carrefour e os Mosqueteiros. A forma de luta foi avançar com uma medida que previa não comprar carne a qualquer país do Mercosul.
"Em toda a França, ouvimos a confusão e a raiva dos agricultores em relação ao projeto de acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul e ao risco de transbordar no mercado francês de uma produção de carne que não respeita as suas exigências e padrões. É fazendo um bloqueio que podemos tranquilizar os produtores franceses. No Carrefour, estamos prontos para isso", disse em novembro o CEO desta multinacional, que alguns dias depois voltou atrás na palavra.
"Este acordo prevê que estes quatro países aumentem as suas quotas na União Europeia, mas os sindicatos europeus dizem que será uma concorrência desleal, pois a produção no Mercosul não está submetida à mesmas exigências ambientais, sociais e mesmo sanitárias"José Moreira, economista
Ainda assim, é bem visível a insatisfação dos produtores para com este acordo que poderá ser assinado esta sexta-feira, em Montevideu. Há razão para alarmismos?
"Se pensarmos que só o Brasil produz mais carne bovina e de aves que toda a União Europeia junta, isso só por si explica a preocupação dos produtores da União Europeia. A França a mais preocupada? Claro, são os principais exportadores de carne a nível europeu, tanto a nível interno do bloco como para o exterior do mesmo, mas há outros descontentes, como a Polónia, daí que o acordo ainda não tenha sido assinado. A pressão francesa é muito forte", diz o economista José Moreira ao SAPO24, tentando explicar as razões para que o acordo ainda não tenha sido passado para o papel.
"Na prática, este acordo prevê que estes quatro países aumentem as suas quotas na União Europeia, mas os sindicatos europeus dizem que será uma concorrência desleal, pois a produção no Mercosul não está submetida à mesmas exigências ambientais, sociais e mesmo sanitárias. E a verdade é que eles não vão conseguir competir com o Mercosul. A União Europeia enfrenta uma redução na produção e não é autossuficiente em produção de carne. Se os preços não forem equilibrados, os produtores europeus poderão sofrer grandes perdas", refere o especialista.
O acordo, ainda não assinado, prevê que 92% dos produtos originários do Mercosul fiquem livres de taxas na UE, sendo que de momento apenas 24% das exportações que chegam à Europa estão isentas. Estará o Mercosul a entrar numa disputa global de mercados, concretamente com a China e os Estados Unidos?
"Não, mesmo os quatro juntos serem uma importante fatia do comércio mundial não conseguem competir com os Estados Unidos e a China, tanto na Europa como no resto do mundo. Acima de tudo isto é uma luta entre produtores europeus e a União Europeia. É uma questão de taxas e compromisso com os produtores europeus. É por isso que o acordo está para ser assinado desde 1999. E mesmo que seja assinado, cada país será livre para entendimentos individuais. A França e os franceses são os que mais lutam pelos seus direitos, nomeadamente no setor agrícola. Este boicote, por exemplo, dos hipermercados foi só um sinal daquilo que eles estão prontos para fazer. A principal razão pela qual a França se opõe ao acordo é a resistência organizada de agricultores do país. Apesar de ser uma das principais potências industriais do bloco europeu, o lóbi da agricultura é visto como poderoso e influente em França.", refere o economista, salientando que "caso o acordo não seja assinado, desta feita, poderá mesmo vir a cair no futuro".
Em declarações à Euronews, um produtor francês e também secretário-geral de um dos principais sindicatos agrícolas daquele país explicou as razões para o não ao acordo.
"Temos regulamentos para produzir alimentos em quantidade e qualidade. Atualmente, outros países, nomeadamente os da América do Sul, não têm a mesma regulamentação. É isso que estamos a denunciar. Não podemos pedir aos agricultores que produzam respeitando todas as normas e depois importem produtos que não respeitam o bem-estar animal, as regras ambientais ou mesmo as leis laborais", disse Stéphane Joandel.
Refira-se que apesar da Comissão Europeia ter já garantido que os países do Mercosul terão de cumprir as regras, um relatório recente afirma, por exemplo, que o Brasil, a terceira maior potência na produção de carne bovina e de aves, não tem garantias suficientes para assegurar que a carne com hormonas proibidas na UE não chegue ao continente. Este problema, recorde-se, fez mesmo que em outubro último a UE e o Reino Unido tivessem proibido a importação de carne bovina deste país da América do Sul.
Ainda assim, Von der Leyen revelou esta quinta-feira esperança na conclusão do acordo.
"A linha de chegada do acordo UE-Mercosul está próxima. Vamos trabalhar, vamos atravessá-la. Temos a oportunidade de criar um mercado de 700 milhões de pessoas, a maior parceria comercial e de investimentos que o mundo já viu. Ambas as regiões serão beneficiadas", escreveu a presidente da Comissão Europeia no X.
A última jogada de França
A França, sozinha, não conseguirá travar este acordo entre a UE e o Mercosul, daí que Macron, que já referiu ser contra este entendimento, tenha já delineado uma estratégia, de acordo com alguns especialistas: formar uma minoria qualificada no Conselho da União Europeia.
Esta estratégia terá que ser assinada por pelo menos quatro países, que terão de representar mais de 35% da população da União Europeia. Resumidamente, a França precisa conquistar o apoio de mais três países que, no total, representem 156 milhões de pessoas.
Quem negoceia o acordo é a Comissão Europeia, que já se manifestou favorável ao mesmo. Depois de encerrada a fase de negociações, o texto do entendimento será depois submetido à aprovação pelo Conselho da União Europeia.
Para ser aprovado é preciso que 55% dos países do bloco (15 dos 27) concordem com o mesmo, ou seja 65% da população total da UE.
A França conta já com o apoio da Polónia, totalizando 104 milhões de pessoas, e acredita que países como Itália, Países Baixos e Áustria se juntem, formando assim a minoria qualificada necessária para travar a proposta no Conselho Europeu.
Portugal, por sua vez, foi um dos Estados-membros que mais apoiou a conclusão de um acordo ambicioso com os parceiros do Mercosul.
Quem ganha e quem perde com este acordo?
Segundo alguns especialistas, do lado europeu quem sairá a ganhar serão os mercados especializados em comércio e agricultura, a indústria transformadora em setores como o automóvel, o farmacêutico, a maquinaria, os têxteis, e ainda os produtores de vinho e queijo.
Um dos países que mais poderá ganhar com este acordo é a Alemanha, que atravessa uma das suas piores crises. Os principais ganhos têm a ver com a sua indústria automóvel alemã, nomeadamente com as marcas Mercedes, Volkswagen, Audi e BMW.
Como já referido, os principais perdedores, na Europa, serão os setores da carne de bovino e de aves.
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