“O programa de estímulo fiscal anunciado para depois da emergência do vírus deveria ser uma peça essencial da resposta europeia à crise” disse Vítor Constâncio numa declaração à Lusa, a propósito da constituição de um Fundo de Recuperação Económica, acordado na última reunião do Eurogrupo e que deverá ser trabalhado pela próxima reunião do Conselho Europeu.
Segundo Constâncio, para que tal aconteça, será, todavia, “crucial que [o fundo] tenha dimensão significativa e seja financiado de forma comum, de preferência usando a Comissão Europeia”.
Concretamente sobre o pacote aprovado na reunião do Eurogrupo, o ex-vice-presidente do BCE resumiu à Lusa a sua posição, desenvolvida num webinar organizado pelo Instituto Europeu de Florença na semana passada: “é significativo mas insuficiente. Positivo, mas vai ser preciso mais. Dívida em comum continua a ser necessária. A minha ideia é a Comissão ir ao mercado e fazer transferências para os países”.
O ex-vice-presidente do BCE já tinha expressado publicamente a ideia de emissão de dívida pela Comissão, mas acrescenta agora que o dinheiro assim obtido deveria ser utilizado para “financiar uma rubrica orçamental da UE, ou para criar um fundo gerido pela Comissão de acordo com as regras orçamentais, a fim de proporcionar transferências para os países membros para cobrir as despesas nacionais relacionadas com a crise do coronavírus”.
Esta posição de Vítor Constâncio consta de um artigo publicado no seu blogue “Macroviews” (macroviews.net/wp), sob o título “Realidades e perceções na resposta europeia à crise do coronavírus”, e no qual desenvolve a ideia da emissão de dívida pela Comissão.
Constâncio propõe ainda que “a emissão de obrigações pela Comissão ou as garantias prestadas [pelos Estados] não seriam acrescentadas à dívida global dos países” e indica que já existe um precedente do Eurostat.
“O Eurostat decidiu que a ‘contracção de empréstimos do MSE [Mecanismo Europeu de Estabilidade] nos mercados financeiros será registada como dívida do MSE e não reorientada para os Estados-Membros da zona do euro'”, escreve Constâncio.
“Esta decisão — sublinha — “aplica-se, apesar do compromisso assumido pelos países membros de aumentar o capital da MSE, se necessário, uma condição para que as obrigações da MSE tenham uma notação triplo-A. Os países participantes não veem a sua dívida nacional aumentar quando o MSE emite obrigações. O mesmo se aplica à emissão efetuada pela Comissão para o efeito proposto”, remata.
Sob esta abordagem, conclui Constâncio, “não seriam emitidas euro-obrigações formais, algo que os países da Europa Central recusaram ferozmente no passado, e os países de baixa classificação evitariam o estigma e obteriam algum alívio”.
Por outro lado, adianta, “esta abordagem poderia fazer parte da panóplia de soluções, substituindo a emissão de euro-obrigações ad-hoc (…) ou para financiar o estímulo orçamental adicional que será necessário dentro de alguns meses para impulsionar a recuperação económica” — o Fundo de Recuperação Económica.
Para Vítor Constâncio, se a alternativa que propõe não for possível ou for rejeitada, “a implicação é que os défices orçamentais serão, de uma forma ou de outra, financiados pela dívida nacional direta, com um aumento considerável dos rácios da dívida”.
Na sua previsão, os défices orçamentais deste ano podem atingir um máximo de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em alguns países, sendo que a recessão em 2020 ultrapassará a que a área euro teve em 2009 (-4,5%).
A combinação dos défices com uma recessão profunda poderá, segundo Constâncio, “provocar aumentos dos rácios da dívida em relação ao PIB em países altamente endividados até 20 pontos percentuais ou mais”, com a eventual consequência da descida dos seus “ratings” e pressão dos mercados.
Entre esses países, estão a Grécia, Itália, Portugal e Espanha. “A incerteza que esses países enfrentam pode, de facto, tornar-se angustiante”, escreve o economista.
Constâncio enumera, assim, uma série de interrogações que coloca aos responsáveis destes países: “Irá o BCE continuar com o seu elevado nível de emergência de aquisição de obrigações depois de o vírus ter desaparecido, ou será então permitido que as taxas de mercado subam significativamente? Irá o seu endividamento testar os limites da sustentabilidade? Será que terão de passar por um novo período de dura austeridade? A recuperação após a emergência do vírus será suficientemente forte sem um novo estímulo orçamental e sem mais dívida?”
Tentando responder a estas questões, o ex-vice-presidente do BCE conclui que será preciso um “novo Plano Juncker para o investimento europeu, mas desta vez com fundos públicos significativos para gastar e atrair mais investimento do setor privado”.
O ex-vice-presidente do BCE não quis, contudo, pronunciar-se em quanto deveria orçar o Fundo de Recuperação Económica, o qual, segundo disse hoje o ministro Mário Centeno em entrevista conjunta a quatro jornais europeus, deveria ser da ordem dos “biliões de euros”.
Fazendo um paralelo com a recuperação depois da Segunda Guerra Mundial, Constâncio considera que, atualmente, não se pode contar com o dinamismo verificado na reconstrução.
Pelo contrário – afirma — “esta recuperação será lenta, num contexto de baixo crescimento associado à tendência de estagnação secular nas economias avançadas”. Isto, por sua vez, levanta questões sobre o papel dos bancos centrais.
Independentemente de tudo, Vítor Constâncio vê como “premente” a necessidade de proteção das pessoas e da economia, “custe o que custar”, bem como de “salvaguardar o projeto europeu e manter a coesão entre os países membros”.
“A condição primordial para o conseguir é que os governos cheguem a acordo sobre a utilização de vários tipos de instrumentos que possam garantir o financiamento do nível de proteção que os cidadãos europeus exigem e merecem, em termos que contenham um elemento de solidariedade europeia”.
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