Amílcar Falcão não acredita que tenhamos no horizonte um Nobel português e vê como urgente que se mantenham jovens no ensino – mesmo nas áreas onde saem a meio do curso para ganhar o dobro dos pais. É defensor da relação com as empresas, mas considera que é necessário uma disrupção desde as formas de financiamento até ao orgulho com que os ex-alunos se mantêm ligado à universidade.
Portugal não tem uma única Universidade no Top 100 das melhores Universidades do mundo, olhando para o ranking de Xangai. A primeira que aparece é a Universidade de Lisboa e a Universidade de Coimbra surge mais à frente.
Está no lugar quinhentos e qualquer coisa, sim.
É possível termos a ambição de ser uma startup nation, usando a terminologia do setor da inovação, sem ter universidades posicionadas ou pelo menos uma universidade posicionada neste grupo das 100 primeiras?
Para se fazer transferência de conhecimento, o primeiro requisito é fazer conhecimento e ter conhecimento. Gosto mais de utilizar a palavra “partilha” de conhecimento do que transferência de conhecimento, porque a partilha significa que se troca conhecimento de um lado para o outro e isso é muito importante. Aliás, acho que é o segredo de funcionar bem, porque a ideia é passar conhecimento das Universidades para a sociedade civil, mas se não houver conhecimento a passar, também, da sociedade civil para as Universidades, a coisa não funciona.
É óbvio que as universidades têm de estar bem posicionadas do ponto de vista da investigação porque sem investigação e produção de conhecimento não há partilha de conhecimento e, portanto, esse é um aspeto importante. Há muitos rankings e uns têm mais a vertente de investigação, enquanto outros têm mais a vertente da sustentabilidade, por exemplo. Acho que estamos a nivelar por baixo o ensino superior e se nivelarmos por baixo e não tivermos umas quantas universidades de referência que possam competir internacionalmente e estar bem posicionadas em rankings internacionais, vamos necessariamente diminuir a produção de bom conhecimento e também, consequentemente, a partilha de bom conhecimento. Portanto, a médio ou longo prazo, se as universidades não tiverem uma boa posição ao nível da investigação, pagaremos isso mais tarde em termos de sociedade.
"A médio ou longo prazo, se as universidades não tiverem uma boa posição ao nível da investigação, pagaremos isso mais tarde em termos de sociedade"
Para quem não sabe o que é o ranking de Xangai, sei que não é o único, mas é pelo menos o mais usado…
O ranking de Xangai é Investigação, só. Não tem nada a ver com Inovação, há outros que avaliam essa parte. Mas sim, é o mais usado.
Para si, enquanto reitor da universidade mais antiga de Portugal, qual é o impacto que estes rankings têm?
Tenho muitos anos de Investigação quer como investigador quer como vice-reitor de Investigação que fui durante oito anos. É preciso saber ler os rankings – é um número, mas é uma posição relativa. Temos de perceber que, por exemplo, no Top 100 do ranking de Xangai estão universidades com as quais Portugal nunca conseguirá competir, não por ser pior, não por ter pessoas de menos qualidade, mas porque os orçamentos não são comparáveis – os nossos são na ordem de 10 vezes menos, 20 vezes menos. Portanto, é muito difícil, com muito menos dinheiro conseguirmos fazer o mesmo tipo de trabalho.
Mas quando vê o posicionamento quer de Portugal, quer da sua universidade, o que é que isto lhe diz?
Aquilo que para mim é muito importante ver nos rankings, e eu sempre trabalhei nesse sentido, é percebermos, quando se olha para a posição da nossa universidade ou de uma instituição, num ranking, como é que evolui num espaço de 5 a 10 anos, ou seja, se estamos numa tendência ascendente ou estagnados ou a decrescer. Esse é o aspeto mais importante para mim. Por exemplo, a Universidade de Coimbra, no ranking de Xangai, tem mantido uma posição no Top 500, mais ou menos, mais 20 menos 20 lugares. Mas é preciso ter noção de que no ranking de Xangai, por exemplo, nos últimos 5 a 10 anos, entraram muitas universidades que não existiam, especialmente universidades do Médio-Oriente que basicamente, e entre aspas, “compram” investigadores, prémios Nobel, e assim conseguem rapidamente ascender a lugares que nós não conseguimos alcançar.
Na verdade, uma leitura atenta do ranking de Xangai para a Universidade de Coimbra diz-nos que temos vindo sempre a melhorar. Acontece é que a nossa melhoria não é suficiente para subirmos muitos lugares porque, entretanto, aparecem universidade que nos “passam por cima”. Mas a lição principal é que a tendência tem sido a de melhorar.
"Nas universidades pode ser um pouco como no futebol, imagine que aparece um excelente investigador, não conseguimos reter pessoas a que são oferecidos outros contratos. Pagar a alguém 2 ou 3 mil euros por mês quando pode ir ganhar 10 ou 12 mil noutro sítio, é complicado"
O que é que torna uma universidade apelativa do ponto de vista da Investigação? Ir buscar um Nobel que viesse para Portugal ensinar durante um ano ou investir em professores como futuros Nobel seria uma estratégia a adotar para atrair alunos?
Uma universidade para conseguir ganhar posições nos rankings tem de ter investigação de muita qualidade, investigadores de muita qualidade, recursos financeiros. É muito difícil as universidades, especialmente se são universidades de largo espetro, como é o caso de Coimbra e, também, de Lisboa e do Porto, onde temos Ciências Sociais, Medicina, Engenharia, Economia – focarmo-nos em temas específicos. Em Coimbra, por exemplo, estamos muito focados na área da saúde, no envelhecimento e na área da engenharia, nos materiais. São áreas que privilegiamos, ao nível da sustentabilidade e que nos tem dado bons resultados.
É óbvio que, mal comparado, nas universidades pode ser um pouco como no futebol, imagine que aparece um excelente investigador – temos um brain drain, não conseguimos reter pessoas a que são oferecidos outros contratos, lá fora, que nunca conseguimos acompanhar. Porque temos, naturalmente, uma tabela salarial que está indexada à Função Pública e isso limita muito: pagar a alguém 2 ou 3 mil euros por mês quando pode ir ganhar 10 ou 12 mil noutro sítio, é complicado.
A única solução que temos é ganharmos um conjunto de massa crítica de investigadores de grande qualidade, de tal forma que mesmo que saia um ou outro não se note tanto. Mas é difícil de reter talento porque o talento tem um preço.
Mas o que poderia ser feito? Quando pensamos nas universidades de referência do ranking, dominado pelas americanas, têm processos de financiamento completamente diferentes. É possível fazer isso num país com as características de Portugal?
Tudo é possível, desde que se queira fazer.
Mas faz sentido? Na estrutura que temos, seria uma total disrupção ou é algo que consegue imaginar, do que conhece do sistema educativo?
Para conseguirmos acompanhar a forma de funcionamento das grandes universidades de Investigação do mundo, nomeadamente as anglo-saxónicas, as mais poderosas, a disrupção teria de ser enorme. Por várias razões, em primeiro lugar o tipo de financiamento que têm é um tipo muito competitivo e isso faz com que os investigadores tenham de ser realmente muito bons e tenham de saber corresponder às expectativas, contrariamente ao que acontece na Europa em geral, tirando o Reino Unido.
Um investigador nos EUA ou no Reino Unido, pode ter 60 anos e perder o emprego porque já não é competitivo, não angaria financiamento e isso aqui é algo impensável. As pessoas aos 30 anos já querem ter uma carreira para o resto da vida. E também é impensável em termos práticos, teria vários efeitos colaterais sobre os quais não vou agora divagar. Portanto a disrupção teria de ser muito grande.
Há mais dois pontos que creio que são muito relevantes para a cultura saxónica e que também são difíceis de implementar em Portugal. Um tem a ver com a mentalidade: um antigo estudante, um alumni, nos EUA ou no Reino Unido é alguém que, anualmente, faz um donativo à universidade de onde veio e estamos a falar de muitos milhões de euros de receitas de mecenato. Isso em Portugal não existe, na nossa mentalidade, uma pessoa pode tirar um curso na universidade que quiser, pode ficar bilionário e nunca se lembrará de dar nada à universidade. Mesmo pedindo, pode conseguir-se uma bolsa para acompanhar um estudante, ou outra coisa qualquer, mas nunca valores realmente importantes.
A Feedzai fez um acordo de quase 1 milhão de euros com a Universidade de Coimbra.
É verdade, e por 3 anos. Mas é um caso bastante isolado e estamos a falar de um unicórnio.
E o outro ponto que ia referir em relação à tal disrupção, por um lado e uma parte importante do problema, em termos de financiamento, tem a ver com a forma como os antigos alunos olham para a escola onde se formaram e têm orgulho nela e sentem que quanto melhor for a escola onde se formaram, também melhor é a sua imagem porque vieram de uma escola de prestígio e, portanto, sentem que devem dar de volta alguma coisa à universidade. Isso é uma mentalidade que não temos em Portugal, nem na Europa, em geral.
E um outro aspeto tem a ver com a dimensão do país. Como sabemos, a capacidade de trabalhar com empresas depende muito de um bom relacionamento, do posicionamento, mas depende das empresas. E Portugal, como sabemos, é fundamentalmente composto por 95% ou mais de pequenas e médias empresas e a pequena e média empresa em Portugal é uma microempresa na Alemanha, por exemplo. Nós não temos cá a Google nem a Microsoft nem outras grandes empresas que facilmente despejam milhões e milhões nas universidades para fazerem trabalhos em conjunto, desenvolverem produtos, etc. Temos um mercado de financiamento, via empresas, que é muito débil. Porque as empresas, normalmente, tentam ir buscar conhecimento às universidades a custo o mais baixo possível, com fundos estruturais, etc., e mesmo assim, já é um esforço, muitas vezes, grande para a própria tesouraria da empresa.
E isto, não parece, mas também condiciona, porque é um campeonato diferente. É como um artista português ter um êxito e vender discos ou espetáculos e comparar com o Brasil. Não tem comparação, o mercado brasileiro é muito maior e mesmo que não seja um êxito tão grande como em Portugal, vende 10 vezes mais. Esta escala é quase insuperável.
“Acredito que temos pessoas com qualidade para receber um prémio Nobel, mas tenho dúvidas que a curto prazo isso venha a acontecer. Ficaria muito feliz se me enganasse, como português”
Portugal teve dois prémios Nobel, um na área da medicina e outro na área de literatura. Temos falado muito sobre a nossa geração mais qualificada, na democratização do acesso ao ensino superior e, se bem que nem sempre a quantidade é qualidade, é verdade que mais pessoas leva também a ter mais e melhores pessoas. Qual é a nossa possibilidade de ambicionar ter um Nobel, no país?
No curto prazo, não. Os dois prémios Nobel portugueses tiveram características muito diferentes, um é Egas Moniz que começou o trabalho em Coimbra e terminou em Lisboa, na Universidade de Lisboa, onde foi galardoado com o prémio Nobel – estamos a falar de um trabalho já com mais de um século, muito específico na área da medicina e que, na altura, foi muito disruptivo, apesar de hoje quase poder ser considerado pouco ético. Mas, na altura, foi considerado um trabalho excelente. Depois temos Saramago, mas Saramago nem sequer seguiu os cânones habituais, não saiu da academia e, portanto, a sua obra é muito pessoal, não é atribuível a nenhuma universidade em particular.
Neste momento temos, de facto, bastantes excelentes investigadores, a começar pela nossa atual ministra Elvira Fortunato, mas não creio que, no curto prazo, estejamos bem posicionados para esperar um prémio Nobel a nível nacional, embora a ambição deva existir.
Para termos, neste momento, um prémio Nobel a nível nacional, teríamos de ter alguém, ou várias pessoas ou grupos a trabalhar em publicações – Nature, Science e coisas dessas – em grande quantidade e muito disruptivo. Esse trabalho é muito difícil porque, como disse, o dinheiro também conta, nestas coisas.
Mesmo os nossos melhores investigadores não conseguem atingir esses patamares se não estiverem em redes internacionais e, normalmente, nas redes internacionais Portugal não coordena, Portugal colabora. Acredito que temos pessoas com qualidade para receber um prémio Nobel, mas tenho dúvidas que a curto prazo isso venha a acontecer. Ficaria muito feliz se me enganasse, como português.
“Portugal originou um país único, o Brasil e isso tudo passou pela universidade de Coimbra”
Fez um comparativo, por outras razões, com o Brasil e Coimbra é uma cidade muito procurada por estudantes brasileiros. Isso significa uma oportunidade pela dimensão?
Sim. Claro que para Coimbra, a lusofonia em geral, é absolutamente crucial. É preciso lembrar que durante muitos séculos, fomos a única universidade da lusofonia e, portanto, as elites que falavam português, até finais do século XIX, foram todas formadas em Coimbra. Aliás, um dos aspetos pelos quais o Brasil é um país uno, na América do Sul, ao contrário dos que falam espanhol, deriva também desse facto. Quando, no que é hoje o Brasil, houve tensões entre estados, (os dirigentes) tinham sido colegas em Coimbra e eram amigos. Ao contrário do que aconteceu com os países de língua espanhola, que derivaram dos diferentes reinos de Espanha, que à época não era um país, portanto cada reino de Espanha originou um ou dois países na América do Sul. Portugal originou um país único, o Brasil e isso tudo passou pela universidade de Coimbra.
A Universidade de Coimbra tem classificação de Património Mundial da Humanidade, da UNESCO, atribuída em 2013. Só há cinco universidades no mundo que têm essa classificação e só uma tem essa classificação com uma componente material e imaterial; a material são os edifícios e a imaterial foi a influência que Portugal teve no mundo, especialmente no mundo lusófono. Portanto, naturalmente que a lusofonia, e o Brasil em particular, é um objetivo estratégico para a Universidade de Coimbra.
Que problemas existem? Fundamentalmente, o Brasil é um país fantástico, como todos sabemos, mas muito instável – a instabilidade financeira do Brasil é conhecida de todos, o Brasil muda de moeda de vez em quando, tem momentos em que a sua cotação está no dólar, depois passa a 10 vezes menos que o dólar, e esta instabilidade financeira do Brasil não ajuda muito a relações muito estáveis. O fascínio do brasileiro atual é mais pelos EUA do que a Europa, as elites brasileiras olham mais para os EUA do que para a Europa, portanto temos aí concorrência séria. Por outro lado, a globalização faz com que existam no Brasil, neste momento, muitas universidades anglo-saxónicas com campus instalados, portanto, a concorrência é bastante grande. A mentalidade dos brasileiros também evoluiu, continuamos a ter uma atratividade grande por parte do Brasil, continuamos e continuaremos a trabalhar para que seja cada vez maior e melhor, mas digamos que é uma situação, hoje, mais difícil do que era há 20 anos.
Do ponto de visto do que é o posicionamento da universidade falou de algumas áreas em que estão a apostar bastante, a área da saúde e envelhecimento, e a outra área, a de engenharia de materiais. Foi algo premeditado ou foi acontecendo à medida que iam aparecendo bons projetos nestas áreas?
A área da saúde tem um histórico enorme em Coimbra, o primeiro curso de medicina do país foi em Coimbra, durante séculos. Os Hospitais Universitários de Coimbra sempre foram, e são, uma referência a nível nacional. Portanto, a área da saúde é forte por natureza (em Coimbra) e temos nichos distintivos nessa área.
A área dos materiais tem a ver com a nossa e com a minha própria visão, para a universidade. Uma visão muito focada na sustentabilidade, na agenda 20/30 da Nações Unidas, nos objetivos de desenvolvimento sustentável e, nesse sentido, a área dos materiais é muito importante, por exemplo a questão dos plásticos, a questão da economia circular, a questão da energia, do ambiente. Todas estas áreas, hoje em dia, são muito relevantes e vão continuar a ser, para o futuro.
Depois temos uma área que ainda não mencionei, mas que é uma área obviamente estratégica que é a do património porque temos um acervo absolutamente único na lusofonia e mesmo a nível mundial. Temos um acervo único a vários níveis – obras de arte, literatura, património edificado, etc.
A diferença entre estas três áreas é que tanto a saúde como a áreas dos materiais está muito vocacionada para aquilo que é o dia-a-dia empresarial, para a sociedade, ao passo que a componente patrimonial tem uma importância muito grande na cultura, mas diria que do ponto de vista científico, vende menos e é menos valorizada do que as outras, injustamente, talvez, mas temos de encarar a realidade de frente e é esta.
Noto que não referiu a parte tecnológica pura e dura, nomeadamente mais ligada à engenharia informática e, no entanto, Coimbra é a cidade de duas empresas absolutamente determinantes quando se conta a história das startups e da Inovação em Portugal, como é o caso da Critical Software e da Feedzai. Qual é o papel destas duas quando falam no currículo da Universidade de Coimbra?
Quando falo de materiais e de engenharias e não refiro explicitamente a parte informática e de multimédia e design, embora sejamos aí muito fortes…
É só uma provocação. Quero ouvi-lo sobre estas duas empresas porque têm uma ligação óbvia com a cidade e acredito que sejam para a Universidade de Coimbra um cartão-de-visita.
Quer a Critical Software quer a Feedzai nasceram na Universidade de Coimbra, de professores da universidade. Mas são áreas muito de nicho, a Critical Software nasce de um conceito que tem a ver com falhas críticas de sistemas, na altura, conseguem um contrato com a NASA o que lhes deu uma visibilidade fantástica e fizeram um trajeto exponencial enorme. A Feedzai, na sua atividade inicial, também mexe numa área crítica – as transações financeiras, o seu controlo e a possibilidade de fraude financeira. Também é uma área muito crítica e com um mercado fantástico.
Ambas nasceram da investigação feita na Universidade de Coimbra, e esta é a parte interessante da história, ambas foram incubadas e aceleradas no Instituto Pedro Nunes (IPN), que é a incubadora universitária de base tecnológica que temos em Coimbra há mais de 20 anos. O IPN é uma incubadora que está sempre no Top 5, Top 10 mundial das melhores Incubadoras da área das Tecnologias da Informação, tem tido inúmeros prémios nacionais e internacionais e a quantidade de empresas que já lá foram incubadas e aceleradas é enorme.
Nesta componente da informática, lato sensu, tem um relevo muito grande para o país, para a cidade e para a universidade, naturalmente. É uma grande partilha de conhecimento num ecossistema de inovação que está bastante afinado e que passa por uma divisão dentro da universidade que se chama UC Business – Gabinete de Transferência de Tecnologia (TTO) da Universidade de Coimbra – que trabalha o scouting interno e o scouting externo com empresas, para tentar fazer o match do que se investiga ou do que se deve investigar e do que as empresas precisam ou que gostariam de ter.
Felizmente, no caso da Feedzai, faz parte dos unicórnios portugueses e temos muito orgulho, porque dos unicórnios portugueses é o único que tem sede em Portugal e em Coimbra.
Qual o âmbito do acordo entre a Feedzai e a Universidade de Coimbra?
Na altura tivemos uma reunião entre o departamento de engenharia informática, onde eu estava também e da Feedzai estava o Paulo Marques que foi nosso professor e que agora é CEO da Feedzai. O protocolo baseia-se na perceção que ele próprio tem, como professor e como CEO da Feedzai, da necessidade de haver Inovação, também, no ensino e na capacidade de formarmos pessoas mais qualificadas e com competências mais dirigidas às necessidades do mercado.
Uma parte importante centra-se na inovação pedagógica e na capacidade que o departamento informático e a universidade, em geral, tem ou pode ou deve ter, para conseguir criar disrupção nas metodologias de ensino e no envolvimento com as empresas. O Paulo Marques dizia-me “aquilo que gostaria, ou que nós gostaríamos, na Feedzai, era de ver, daqui a 10 anos, uma universidade diferente, com professores diferentes, a dar aulas diferentes, com uma relação diferente com os estudantes.” É exatamente aquilo que eu gostava que acontecesse também.
A região centro tem 260 mil PMEs. Como é que a universidade pode ajudar as PMEs?
Fazemos um trabalho que é muito interessante e que é o de procurar estudar as empresas. Estudamos empresas, quando temos um contacto, e vemos que fraquezas podem ter e no que poderiam melhorar. Normalmente, aproximamo-nos das empresas e dizemos qualquer coisa como: “analisámos o seu portfolio (ou as suas faturações, os seus clientes, o que for) e detetámos que (imagine uma tinta, uma empresa de tintas) a sua tinta se fosse mais aquosa ou se fosse a um preço mais baixo ou se fosse ecológica, teria uma vantagem competitiva.”
Tentamos trazer a empresa para junto de nós, num projeto de copromoção que é uma tipologia de projetos do Portugal 20/20 e que há de ser do 20/30, também. São projetos onde a empresa tem de ter o mínimo de 30% do projeto, normalmente com um cofinaciamento, mas podem imputar salários de funcionários. Demonstramos à empresa que vale a pena apostar, a empresa percebe que os custos não são muito elevados e fazemos aqui um papel de brokers.
Para ter uma noção, quando a CCDRC (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro), porque passa pela CCDRC, abre uma call deste tipo e tem um pacote financeiro, a Universidade de Coimbra, sozinha, apresenta projetos que esgotam o pacote financeiro. Claro que não consegue todos os projetos, porque há outras instituições que também apresentam bons projetos e porque não podem dar tudo só à universidade, mas quase sempre, esse pacote financeiro é esgotado, entre nós e o IPN, com as nossas propostas. É precisamente, porque temos esse trabalho e procuramos muitas empresas para tentar puxá-las para a Inovação.
Um dos problemas que temos nas empresas, em geral, é a baixa formação dos empresários. Geralmente os empresários são pessoas bastante inteligentes, bastante argutas, mas não têm formação de base na área da gestão, do empreendedorismo e por aí fora. Nós tentamos explicar a vantagem competitiva que têm em, por exemplo, desenvolver um produto, fazer um upgrade de um produto ou ter um novo produto e o seu posicionamento no mercado. São pessoas que compreendem bem o que estamos a dizer e que conseguimos, depois, angariar para fazer estes projetos.
“Há muitos jovens que nem terminam os cursos, arranjam empregos e preferem ir trabalhar porque o que lhes pagam é mais do que o que os pais recebem e veem-se com um ordenado que os pais nunca tiveram”
Vai ficar mais difícil reter talento, nomeadamente em várias áreas onde há uma elevada procura e onde, muito cedo, as empresas procuram recrutar, como todas as áreas das engenharias, as áreas tecnológicas, as Life Sciences. Como se vão reter pessoas?
A resposta poderia ser muito longa e muito complexa, e não estou a usar a palavra para não responder, mas é multifatorial. Creio que há vários aspetos que tocou e que são muito relevantes. O primeiro aspeto tem a ver com o facto de efetivamente, desde muito cedo, por exemplo na área de informática, design, essas áreas mais ligadas às redes sociais, ao digital, com a transição digital, há, de facto, muitos jovens que, muitas vezes, nem terminam os cursos, falo só das licenciaturas, e que entretanto arranjam empregos e preferem ir trabalhar porque o que lhes pagam é mais do que o que os pais recebem e eles veem-se, de repente, ao fim de dois anos de curso com um ordenado que os pais nunca tiveram e os pais têm mais 20 ou 25 anos do que eles.
Há um deslumbramento inicial que acho bastante perigoso para a carreira desses jovens porque, na minha ótica, deviam fazer uma formação base sólida e então depois, sim, ir para o mercado de trabalho onde não teriam nenhum problema, antes pelo contrário, ganhariam ainda mais. Muitas vezes antecipam, eu compreendo que a juventude é assim mesmo, há aquela ideia da independência, de viver sozinho. E, também, ter um ordenado muito acima da média do país é algo que favorece.
Mas estamos a falar de áreas que é preciso ter noção de que evoluíram e irão evoluir muito rapidamente e, portanto, para essas áreas que faz referência, o segredo, se é que há segredo nisso, é a formação ao longo da vida. Nós, as universidades, temos de ter a capacidade de perceber que temos de estar com as empresas, e tentar fazer essa formação ao longo da vida, porque se isso não acontecer, um jovem com 22, 25 anos quando chegar aos 30 anos está desatualizado porque as coisas evoluem a uma velocidade brutal. E temos de ter o cuidado de que essa aprendizagem ao longo da vida seja feita, também, com o envolvimento da sociedade civil porque os nossos professores, uma parte importante dos nossos professores, naturalmente que também se atualizaram, mas quando começaram a trabalhar, foi com linguagens que hoje não existem, com computadores que eram mais fracos do que o meu ou o seu telemóvel.
Quando eu era aluno na Universidade de Coimbra, havia um supercomputador – sempre tivemos um supercomputador em Coimbra, vamos já na terceira geração. O primeiro que tivemos era uma coisa funcionava com uns cartões perfurados, a pessoa perfurava o cartão, introduzia o cartão, para fazer cálculos muito simples. Era o que havia na época, anos 80. Entretanto tivemos melhores computadores e continuámos a ter uma evolução tecnológica brutal. É necessário que os jovens estudantes tenham noção de que é necessário fazer formação ao longo da vida. Há brain drain, mais do que o que pensa, nesta área, é mesmo work drain.
Temos, por exemplo uma dificuldade enorme, em ter um aluno de doutoramento na área de informática. São casos raríssimos – as pessoas não querem fazer o doutoramento porque o que recebem de uma bolsa não é minimamente atrativo para aquilo que podem receber (no mercado). Hoje em dia vivemos numa sociedade onde o dinheiro conta muito, não estou a dizer que não é importante, mas na minha idade, na minha geração e mais velhas, nós olhávamos sempre à frente, projetávamos o nosso futuro a 20 anos e pensávamos no que ia ser dali a 20 anos, “quando tiver 40”. Hoje as pessoas vivem muito o dia-a-dia, são muito imediatistas e a velocidade com que a vida se desenrola é muito mais rápida. Isso traz-nos desafios muito grandes. Traz desafios aos jovens porque não olham para a frente, se calhar, com a maturidade com que deviam olhar, mas também nos traz desafios a nós, nas universidades, pela forma como os jovens se comportam.
Como vê esse impacto no ensino superior?
Em relação ao ensino superior, creio que vai sofrer alterações muito profundas na próxima década. Vamos chamar Ensino Superior, não no sentido clássico do termo, mas vamos ver entrar, as grandes empresas como a Microsoft, a Amazon, a Google e outras, que vão claramente posicionar-se para esta estratégia de aprendizagem ao longo da vida com o acompanhamento ao longo da vida das pessoas, nas várias áreas, e na tecnologia com toda a certeza. E isso irá ser uma competição para as próprias universidades que terão de procurar o seu espaço e perceber em que podem ser distintivas e como podem constituir-se mais-valias e ser atrativas.
Como veria uma solução de ter pessoas de humanidades, de ciências sociais, a aprender programação?
Nós estamos a fazer isso! Com a própria Feedzai, esse é um dos caminhos. E não só com a Feedzai, também com a La Caixa, temos um programa de conversão das pessoas para a área digital.
Aquilo a que chamamos de reskilling ou upskilling das formações das pessoas, em geral, e se pensarmos nas pessoas de Humanidades, em particular, que poderiam aprender programação, é muito interessante. A adesão ainda é mais ou menos, porque as pessoas quando escolhem uma área, se a pessoa quer ser historiadora, por exemplo, mostra alguma resistência em ir para outro tipo de áreas, mas a experiência diz-nos que quando se adaptam conseguem criar uma mistura de conceitos e de conhecimentos muito interessantes. A pessoa que é programadora pura, programa aquilo que lhe pedirem, a pessoa que tem um background diferente, é historiadora, filósofa, programará aquilo que lhe interessa para conseguir ir mais longe ou ter a mensagem mais fácil ou trabalhar de uma forma mais eficiente.
Eu sou farmacêutico de formação de base, mas sempre trabalhei muito em bioinformática, dou-me bem com a informática e sei programar, em algumas linguagens, portanto sei do que estou a falar.
"Em Coimbra, vamos perder 1/3 dos nossos professores. Estamos a falar de pelo menos 350 do quadro, mais os restantes, talvez um total de mais de 500 professores"
A idade é um fator de resistência?
Esse é um dos grandes problemas das nossas universidades e até da escola secundária, do ensino básico, porque temos professores uma faixa etária mito elevada, com médias já acima dos 57. 58 anos de idade e com muita gente acima dos 60 anos e uma pessoa que está a 2 ou 3 anos da reforma não sai facilmente da sua zona de conforto. No nosso caso, em Coimbra, temos o trabalho de casa feito, mas até 2030 vamos perder 1/3 dos nossos professores. É muita gente, nós temos à volta de 1.000 professores, com os convidados serão cerca de 1.600 professores. Portanto 1/3 desta gente, estamos a falar de pelo menos 350 dos do quadro, mais os restantes, talvez mais de 500 professores. É muita gente em oito anos.
É o tempo que temos para nos conseguirmos rejuvenescer bem! E creio que esse vai ser um tempo decisivo tanto para a Universidade de Coimbra como para muitas outras instituições, o perceber que a saída das pessoas para a aposentação ou jubilação, a substituição dessas pessoas tem de ser feita por gente mais nova, capaz de mudar o mundo.
Temos 7 unicórnios. Para a dimensão do país e olhando para os rankings mais uma vez, foi extraordinário conseguirmos fazer isto nos últimos 10 anos, mas ainda não conseguimos perceber como chegámos até aqui e sobretudo, o que fazemos com isto daqui para a frente.
Os sete unicórnios que Portugal tem, olhando do ponto de vista relativo, é um resultado excecional, o que não é excecional é não sabermos como lá chegámos. E só lá chegámos porque sete pessoas ou sete grupos excecionais o conseguiram, mas não o conseguiram com base num planeamento estruturado do país para conseguir ter unicórnios. Foram pessoas muito empreendedoras, que saíram do país, que arriscaram, tiveram ideias fantásticas, tiveram de se esforçar muito. Eu conheço vários casos, não conheço só o da Feedzai e devíamos aprender com eles e tentar perceber de que forma poderíamos colocar no terreno uma estratégia nacional para podermos ter mais unicórnios, não por acaso, mas porque sabemos como isso se pode fazer.
E não têm todos de ser unicórnios. Mas a verdade é que se fizermos um trajeto que pode levar a unicórnio, nem todos o serão, porque na verdade é uma exceção, mas se todos tiverem um crescimento de meio unicórnio, já seria muito interessante. Mas isso só se consegue com planificação.
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Entrevista realizada no âmbito da edição de 2022 do Startup Capital Summit e exibida em televisão no programa The Next Big Idea em maio de 2022. Editada e publicada em artigo a 14 de março de 2023.
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