É rara a pessoa que nunca recebeu um par de meias no Natal da parte de avós, tios ou outros parentescos. Meia preta, cinzenta ou até branca são prendas tradicionais em Portugal. Mas nos últimos tempos, cada vez mais pessoas escolhem pôr com meias coloridas nos pés – e o projeto Volta quer sublinhar a tendência da meia colorida.
Tudo é português, de uma ponta à outra da cadeia da produção: “Desde a fábrica, que é na Lousã; à empresa que trata do packaging, em Guimarães; à empresa que faz a comunicação, que é na LxFactory, em Alcântara; à empresa responsável pelo site, na Costa da Caparica; às lojas que vendem as nossas meias", enumera Tiago Rodrigues, um dos cérebros do projeto. Isto passando também pelas associações e parceiros nacionais com que vão crescendo.
Foi assim que aconteceu
Tudo começou com dois Tiagos, amigos desde o jardim de infância. Um formado em Economia e Gestão. Outro com estudos também em Gestão.
Quando Tiago Rodrigues decidiu dar conselhos no LinkedIn nunca pensou que o amigo Tiago o fosse contactar, desafiando-o.
"Durante o confinamento, escrevi um artigo sobre como podemos contribuir para a retoma económica. Era algo tão simples como lembrar de coisas que podemos pôr em prática durante a quarentena". Entre os exemplos estava a preferência por produtos portugueses - tomates, mel, bananas - em detrimento de importados; ou pedir comida de um restaurante "para garantir que depois da quarentena estejam abertos."
Tiago Esteves viu o artigo e ligou a Tiago Rodrigues: "Adorei o teu artigo e acho que é mesmo isto. Porque é que não vamos mais além?", parafraseia. A ideia foi pensar num projeto que ajudasse a economia do país, numa altura em que Portugal via empresas a fechar por falta de liquidez.
Uma pergunta guiou o caminho: "Quais são os setores que estão a ser afetados pela Covid-19?". Tiago Rodrigues diz que na altura de pensar o projeto, por volta de fins de março, as fábricas têxteis estavam a adaptar a sua produção, produzindo máscaras, batas cirúrgicas. "Até as próprias fábricas de meias se reconverteram".
Ficou definido que era no setor têxtil que estava o caminho a seguir. Pensavam num produto democratizável e que não fosse muito caro para comprar. "E chegámos às meias!". Com alguma pesquisa decidiram envolver artistas já que "o trabalho deles tinha parado", conta Tiago Rodrigues, co-criador da marca Volta.
“As meias passam de um item a que não se ligava nenhuma para um item de alguma chacota e tema de conversa entre os amigos.”
Mas porquê meias? Tiago Rodrigues diz que “podia ser outra coisa qualquer”. A ideia era ajudar um setor em dificuldades, apoiar a economia portuguesa ao produzir tudo em Portugal - e não numa perspetiva de “pensar um produto apenas do ponto de vista comercial”. Conta que não viam muitos portugueses a optar por meias coloridas e que, em contrapartida, “em Inglaterra ou Espanha, as meias coloridas estão muito na moda e assim teríamos um produto diferente”.
Explica ainda o raciocínio que tiveram, na altura da criação do projeto: “Pensámos que quando voltássemos a sair de casa, depois da quarentena, podia ser que meias divertidas alegrassem os nossos dias”. O pós-confinamento veio dar-lhes razão: “quando vamos a casa de amigos, normalmente descalçamo-nos à porta e ter um par de meias coloridas pode ser divertido”.
“As meias passam de um item a que não se ligava nenhuma para um item de alguma chacota e tema de conversa entre os amigos”, aponta.
Foi assim que decidiram, os dois Tiagos, caminhar juntos, mas havia que alargar os esforços.
Dar o “pé” aos artistas
Inicialmente, esticaram o “pé” a “três ou quatro” artistas, mas depressa perceberam que o que estavam a alinhar interessava a mais nomes. “Surgiu a ideia de fazer estes pares de meias, associados a uma classe de trabalhadores bastante afetada pela pandemia, já que fecharam as exposições. Ilustradores, designers, artistas, pararam e pensámos que podíamos ter um tema”.
Criou-se a coleção “Ilustração” com o tema à roda de ajuda a “setores afetados ou da linha da frente”. Acabaram por ter envolvidos 12 artistas.
As meias vêm assinadas por Aka Corleone, Cesáh, Contra, Diogo Matos, Glam, Lara Luís, Margarida Fleming, Oker, Teresa Murta, The Caver e Uivo. Os Tiagos, criadores da marca, também desenharam um par.
Paulo Albuquerque, de nome artístico Césah, foi desafiado a participar por uma das artistas envolvidas no projeto Volta. Teresa Murta, que desenhou as Meias Tela, pô-lo em contacto com David Sampaio e com os Tiagos, que gostaram do estilo de ilustração e pintura que Césah faz.
“Obviamente que disse logo que participava. Gostei muito do projeto, principalmente pela missão que tem. Estamos a passar uma fase muito difícil e se pudermos ter uma maneira de ajudar o próximo (que já devemos fazer no dia-a-dia) é ótimo”.
Césah nasceu em Rio de Janeiro e viveu quase toda a vida em Portugal. As meias que desenvolveu passam a ideia de positividade e alegria. “A ideia que tenho de Portugal é de energias positivas. O pôr-do-sol de Lisboa é uma coisa inacreditável, para mim”.
Foi o fascínio pelas cores portuguesas que o orientou: “Peguei nalgumas cores que emanassem essa vibração positiva e, com os movimentos da ilustração, mostrar o dinamismo de Lisboa.”
Este par de meias apoia o setor do Turismo, nomeadamente o Turismo de Portugal. Como tal, não só a capital tem lugar nestas meias. Numa segunda abordagem da ilustração, “acabei por pegar em zonas turísticas”. Estão presentes a Torre de Belém, em Lisboa; a Ponte D. Dinis, do Porto. “Depois peguei numa máquina fotográfica, num avião, e de uma maneira engraçada fiz um pastel de nata. Na base estão duas pessoas com uma luz nos olhos”.
Apesar de trabalhar muito com preto e branco, Césah ilustrou as meias Nómada, umas das mais coloridas da coleção. A história que conta no par de meias está escondida nos detalhes: “o objetivo era ter muitos elementos, mas que não fossem óbvios. Queria que fosse um abstrato figurativo”. Só olhando a fundo se consegue apontar os elementos e perceber a história que conta.
“O resultado foi brutal. É como ter uma obra de arte nos pés. Comprei de quase todas as meias”. Guarda com cuidado alguns pares das meias que desenhou – incluindo a nova coleção que aí vem.
Uma dúzia de setores já são apoiados
A parceria com 12 associações dá um cariz solidário ao projeto. Cada par de meias custa 12,5 euros e por cada par vendido, o Volta faz uma doação de 1 euro a uma instituição social/económica.
Com pouco mais de dois meses no mercado com o lema #CaminhamosJuntos, o balanço é “muito positivo”, considera Tiago Rodrigues, sem hesitação. A meta que tinham era vender mil pares de meias até ao momento. Venderam 500 pares, o que quer dizer que cerca de meio milhar de euros seguiram para as associações. Tiago Rodrigues diz que não são maus números tendo em conta que é “um mercado super sazonal” e que o verão não é quando as pessoas mais adquirem meias.
Entre as meias mais vendidas estão também as Meias Fadista, as Meias Cura e as Meias Casta, tendo em conta os apoios para as associações de cada meia.
Mas há dois meses, ainda sem nada para oferecer aos clientes, o problema era como comunicar a ideia solidária em forma de meias. Num instante passaram a ideia a uma fotógrafa freelancer, que ficou entusiasmada com o projeto.
Em busca do “postal da Portugalidade”
Atrás de uma das lentes que fotografam o projeto está Inês Costa Monteiro. É esta jovem fotógrafa freelancer que calça o cargo de direção criativa do projeto Volta. O prazo era curto (cerca de um mês para desenvolver ideias), mas aceitou o desafio. A história começou com um pedido de uma proposta de comunicação. Inês passou duas noites a delinear uma ideia global. Após discussão de ideias, uma palavra ressoava na sua cabeça: Portugalidade.
“Todos temos raízes nalgum lado e se é para puxar pela Portugalidade, vamos para o interior do país”. Inês propôs que o local a fotografar fosse Viseu e a equipa seguiu para a terra dos avós da diretora criativa do projeto que começava a ganhar forma.
Para a imagem da campanha acabou mesmo por fotografar os avós de 86 anos, que são agricultores. E a inspiração surgiu a olhar para uma televisão ligada à MTV, onde passava o videoclip da música “Vai Ficar Fixe”, de Gohu. “A linha visual do vídeo é de um Portugal de campo: uma senhora de bata antiga, um senhor a ordenhar as vacas… e adorei aquela estética”.
Inês conta que o projeto permitiu concretizar um objetivo antigo: “Sempre quis fazer um projeto inspirado nos meus avós e pôr à prova até que ponto a roupa define a nossa personalidade”.
Para a proposta, também se inspirou na figura famosa Baddie Winkle, uma senhora de 92 anos de estilo pop, “cheia de glitters em tons de rosa”, que tem quase quatro milhões de seguidores no Instagram.
E como é que se comunica a Portugalidade? A fotógrafa de 25 anos tentou “sair da caixa” com as ideias que apresentou. “Foi tudo muito engraçado porque estava em Viseu quando recebi a chamada. Era a primeira vez que tinha lá ido, depois do estado de emergência”. Desenhou a proposta e, passada uma semana, voltou a Viseu para fotografar. “Foi incrível porque a minha mãe tratou da produção toda. Eu dizia ‘se calhar vou precisar de umas botas de pescador, ah não, se calhar preciso de ovelhas’. Ela arranjou-me tudo".
A neta, Inês, conseguiu também assim mostrar aos avós “o que é ser fotógrafa”. Um dos momentos que vão ficar para sempre gravados na memória de Inês é a alegria dos avós durante a produção: “A primeira reação da minha avó ao ver o meu avô com as Meias Palha, que têm uma vaca, uma galinha e um porco, foi inacreditável. Partiu-se a rir com ele”.
São os avós Agostinho e Isabel Costa, de mãos dadas e com as meias que representam o “postal da Portugalidade”que adorna a entrada do site do projeto Volta e que segue impresso com cada encomenda.
As meias por quem as passeia
Estas meias sem costuras são produzidas em teares de 168 agulhas com algodão penteado, que traz um equilíbrio entre “frescura e durabilidade”. Estão disponíveis do tamanho 31 ao 46, são unissexo e estão à venda online e em Lisboa (Crack Kids), Porto (Circus Network) e em Leiria (Projeto 84).
O projeto Volta já envolve o trabalho de mais de 100 pessoas, do ponto de vista da logística, produção, embalagem, comunicação.
A coleção “Ilustração” vai, em breve, ter companhia. Por volta de setembro, chega ao público a coleção “Padrão”. Tiago Rodrigues explica que, no caso das Meias Fadista, ilustradas por Margarida Fleming, podem, por exemplo, pegar em elementos da fadista desenhada na meia, como os lábios e repetir o padrão. “É uma meia um pouco mais sóbria.”
Para isso, vão juntar-se novos artistas, que têm mostrado interesse em envolver-se; vão alargar o apoio a novas associações e novos setores.
Por não serem uma marca de meias, mas sim uma “marca que colabora com os artistas”, pensaram também em desenvolver meias técnicas, de desporto, e outras peças poderão vir a ser desenvolvidas.
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