Mentia-vos se dissesse que não sou um grande fã da neutralidade. Estou a adorar esta forma de ser e pensar, adotada por cada vez mais gente, incluindo até Portugal, enquanto país na presidência do Conselho da União Europeia, na já tão badalada carta de condenação à lei da protecção da família tradicional (alguns qualificam-na como homofóbica, mas não vou nessa corrente porque me quero manter neutro).
Tenho notado com agrado a crescente adesão de tantas pessoas a esta tendência filosófica, de indubitável superioridade moral, que não só se abstém de tomar partidos em questões tão complexas como, por exemplo, a dicotomia racista/anti-racista, como tem sempre o discernimento de dizer a todos os outros que há sempre dois lados que devem ter ouvidos em todas as histórias. “There’s very fine people, on both sides”, como disse um grande arauto da neutralidade.
Há quem diga, por um lado, que a vida é bastante mais fácil quando se opta pela neutralidade, mesmo quando o que está em causa são os direitos humanos. Isto porque, sendo neutro, a grande vantagem é que não se está contra quem defende os direitos humanos, nem contra quem os quer destruir. Verdade, mas isto não quer dizer que a vida seja mais fácil. Viver sem espinha dorsal pode ter grandes constrangimentos, como dificuldade para nos dobrarmos para apertar os atacadores, ou para fazer a saudação ao sol no retiro espiritual zen feng shui “Ter Personalidade é Não Escolher Lado Nenhum”.
Por outro lado, também não é preciso cair no exagero de ser sempre completamente despolarizado em tudo. Claro que é muitíssimo importante que despolarizemos em várias questões. Por exemplo, temos de ser moderados, e manter uma posição neutral, na questão do anti-racismo, anti-capitalismo, direitos LGBTIQA+ ou feminismo. Isto porque há quem ache que são questões fraturantes e binárias. Como só se pudesse ser racista ou anti-racista, e não pudéssemos ficar no meio, que é qualquer coisa como “eu não sou racista, mas isto do anti-racismo agora também já é um exagero” (julgo ser coincidência serem sempre pessoas brancas a dizer isso). Mas noutros assuntos como o socialismo, o comunismo, o politicamente correcto, ou outros, já podemos ter posições muito concretas (ser contra) e assertivas. Não é preciso despolarizar nestas questões.
É que isto da neutralidade, da moderação e da despolarização, mesmo que seja algo apenas ao alcance de quem atingiu esta superioridade moral, e de parecer – para quem está mais desatento – que é aplicável a todos os assuntos, não tem de o ser. Podemos (e devemos) ser seletivos, consoante a nossa ideologia (que temos, mas que inteligentemente escondemos atrás da neutralidade), enquanto para fora mostramos sempre a nossa sabedoria de ancião, mantendo a despolarização. É realmente fascinante, e só ao alcance das mentes mais brilhantes da humanidade. Quem assim é, não só não tem de se incomodar por tomar uma posição, como ainda tem o direito de olhar os outros do alto da sua aura mística e largar as suas sentenças de grande moderador do mundo.
Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:
-The Experiment: muito bom podcast da revista The Atlantic;
- O Salão do Jimmy: adorei este filme. Está no Filmin;
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