Na noite em que escrevo este texto há gente de bigode a desfilar pelos canais televisivos de informação. É gente que aparentará sempre ter bigode (mesmo que desse ornamento infra-nasal se tenha livrado há muito) e que hoje tem estado nos telejornais a recordar e homenagear um homem bom. Notem, não são (ou eram) daqueles bigodes fininhos e matreiros de vilão de folhetim; falo de bigodes fartos cuja sinceridade raramente é posta em causa, ainda menos quando se entrega a homenagens condolentes. Morreu um homem bom, afirmam. Muito bom e sábio, asseguram. Eu acredito. Porque quero, porque sempre colhi essa imagem do Mário Wilson e porque sei que a bondade é 100% permeável à morte.
Duas das frases mais repetidas nesta segunda-feira são de uma riqueza estilística que tenho dificuldade em identificar. Não são eufemismos, não são disfemismos, não são propriamente ironia. A primeira, expressada num gargarejo germânico, aponta para a probabilidade de Portugal se ver submetido a novo resgate ser “maior do que 0%” e não me pareceu que, ao afirmá-lo, o comissário Günther Oettinger estivesse a copiar-me na matemática inconsequente. Um “maior do que 0%” que o alemão assegurou mais tarde não se tratar de ameaça ou aviso, como se hoje em dia fosse possível recuar em palavras, mesmo que sejam números, mesmo que seja o zero. Riqueza estilística para pobreza estatal.
A segunda frase, recuperada por quase toda a gente que falou em público sobre o falecimento do “Velho Capitão” Mário Wilson, pode parecer um mero aforismo futebolês, mas não é. “Quem treina o Benfica arrisca-se a ser campeão.” tem logo à partida esse condão literário de tornar os érres carregados e sentenciais da palavra “arrisca-se” numa espécie de vogais serenas de indulgência plenária. Mas muito para além da proeza estilística, ou da inspiração e inteligência que imortalizaram a frase no contexto desportivo, é no carácter e na conduta que o Velho Capitão aqui se revela. Numa frase curta, o treinador remete o potencial de vitórias da sua equipa de volta ao clube; se o Benfica ganhar é porque está a ser Benfica, e assim Wilson pôs a Instituição à frente do mérito próprio. Da mesma forma se infere que, em caso de derrota, o treinador dava a mão à palmatória por ter desvirtuado o “risco” mais evidente: ser campeão pelo Benfica. Falhar só porque não se é bom o suficiente/ganhar porque a instituição é maior do que nós – 40 anos volvidos e é a antítese deste pensamento que confere carisma a um líder. O que é que correu mal entretanto com o futebol? Com o mundo?
Não é justo colocar o gutural da frase de Oettinger ao lado da voz agradável que agora se calou. Pronúncia serena, sotaque moçambicano, era assim que falava Mário Wilson. Até ao fim, não desabotoou Lourenço Marques da sua dicção. É precisamente quando sotaques, etnias, tons de pele, parecem não fazer diferença que eu gosto de assinalá-los. Cada vez que as barreiras raciais desaparecem, há que fazê-lo notar, porque afinal temos capacidade de não ser assim tão imbecis. Percebo que haja algum simplismo nesta conclusão, mas isto era a ponte para outras duas ideias: primeiro, que a honradez de uma pessoa pode ser a melhor semente para fazer florescer qualquer coisa robusta que ensombre preconceitos (honra é palavra pespegada a Mário Wilson, garantem-me amigos comuns e garante-me a noção que dele escolhi). Segundo, o futebol não é só um vício de massas pernicioso.
Nem percebi bem como se deu a transição, mas cresci com as vozes críticas da cultura futebolística por ser estupidificante e estupidificada, entregue a gente desinstruída e grosseira, para agora ouvir outras tantas vozes a queixarem-se dos intelectuais que cederam à bola, das figuras de relevo que se assumem adeptas, da excessiva argumentação ordenada em torno de uma coisa menor. Desonesto será ignorar o fenómeno futebolístico, quer como reflexo, quer como condicionante da sociedade. Por exemplo, para todos os ofendidos com Eusébio no Panteão – já que afinal se tratava só de um simplório que dava chutos numa bola - pergunto que chutos explicam que um africano de pele escura fosse o herói maior dum Portugal, continental e europeu, em plena guerra colonial? Em Eusébio, o símbolo, vinha a rara sensação de liberdade para um país cativo, a esperança personificada, a ilusão de paz numa nação em guerras. Que panteão rejeitaria essas ossadas heróicas com um joelho desgastado?
Escapando ao foco futebolístico que ainda agora advoguei, resta-me contrariar o mundo desportivo enquanto único palco onde desfilam saudações ao Velho Capitão. A herança de Mário Wilson estará intimamente ligada à minha geração via cultura popular, nomeadamente pelo legado de sangue: os filhos. As pessoas da minha idade muito provavelmente lembrar-se-ão da Ana Wilson, um expoente da beleza exótica portuguesa, Miss Portugal, actriz e entrepeneuse. Já Pedro Wilson será por muitos recordado como o Gil da Rua Sésamo, possivelmente o personagem que mais fez pelo nosso modo de vida saudável sem que disso nos tenhamos apercebido. Prole sorridente e marcante que nos chama à tal máxima: quem tem um pai como o Mário Wilson arrisca-se a ser campeão.
Também fora do contexto dos futebóis, recupero de forma resumida a história do Mário Wilson com o Artur Jorge. Lançou-o na Académica, este tornou-se um grande jogador, depois treinador de sucesso e finalmente chegou ao comando do Benfica. Lá estragou muito, desfez um plantel, deixou uma equipa a sangrar. E a quem coube estancar a ferida? Sim, Mário Wilson, a mão que lançou Artur Jorge era a mão que suturava os danos por ele deixados. Colheu frutos inglórios do que tão bem plantou. Se acham que isto era futebol, nunca leram nenhuma forma literária de tragédia.
Em 2005 eu vivia em Coimbra e na jornada inaugural do campeonato defrontavam-se Académica e Benfica. Estava na fila da bilheteira quando se deu esta má história: abeirou-se o Mário Wilson, muito curioso com um grupo de invisuais que, de cachecol encarnado, estavam próximos de mim na fila. Ao chegar-se ainda mais perto não me contive e interpelei-o “Capitão, vai torcer pela Académica ou pelo Benfica?”. Fitou-me, sorriu, sorriu muito, e afastou-se sem me responder. As pessoas boas nem sempre têm respostas certas, mas têm sempre respostas boas.
Sítios certos, lugares certos e o resto:
Já que hoje o tema era futebólico, receita-se agora o lado mais bem disposto (que não exclui azias e impropérios). Depois da página de facebook, o Azar do Kralj ataca a Tribuna Expresso com as mais incisivas análises aos jogadores do Benfica a seguir aos jogos. Filhos enjeitados, insanos e lampiónicos, de Gabriel Alves.
Largando o futebol, e provando que a minha Tondela é mais do que um clube na primeira divisão, ponho-vos a par da insuperável mesa beirã nos 3 Pipos. Face à infalibilidade do cardápio, ainda assim arrisco uma frase tão estranha que pode acordar agentes adormecidos: o arroz de costelas é uma obra-prima.
Será que a civilização chinesa vem do Egipto? Lamento se este artigo sobre uma das dúvidas mais fixes da História não contiver devaneios sobre extra-terrestres.
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